A gente está num mundo muito mais complexo, e essa complexidade que é Malu
Em cartaz nos cinemas do país, o longa Malu, premiado quatro vezes no Festival Internacional do Rio, conta uma parte da vida da atriz Malu Rocha, grande estrela do Teatro Oficina e que enfrentou a ditadura militar (1964-1985) em cima dos palcos.
O filme tem direção do filho da artista retratada, Pedro Freire, que assina também o roteiro.
Malu Rocha é interpretada pela artista de teatro Yara de Novaes, que define o longa como "um filme que te ajuda a pensar na sua própria contradição".
A reflexão da artista vem da relação multigeracional que conduz o filme entre mãe, filha e avó. No longa, as três personagens vivem na mesma casa enfrentando dilemas cotidianos da vida brasileira, o que segundo, Novaes, fez o "público [sair] no final das sessões muito emocionado", lembra em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda (18).
Embora o filme retrate muitas cenas cotidianas, há elementos que tornam a história do longa particular. "Quando estreou [no festival de Sundance, nos EUA], já na primeira sessão, as pessoas vinham nos procurar, falando de si mesmos, falando da própria família, às vezes ela mesma se identificando como alguma das personagens do filme", diz Novaes, que recebeu o prêmio de melhor protagonista no Festival do Rio. "Isso acontece é porque se trata de uma obra que tem um caráter universal."
Malu Rocha nasceu na década de 1940 e vivia o auge de sua carreira quando a ditadura militar apertou o cerco, e a postura dela foi enfrentar o regime por meio dos palcos.
"Malu era uma mulher que tinha um papo reto, ela falava realmente o que ela achava e se indignava. Ela tinha uma insubmissão, que é uma insubmissão que toda pessoa que preza pela liberdade, pela justiça, como eu disse, pela democracia, se não tem, tem vontade de ter."
"Mas é claro que a ditadura adoeceu ela. Ou o Brasil moralista, racista, misógino, que ali é representado pela mãe dela [Dona Lili, interpretada por Juliana Carneiro da Cunha]. Então é impossível que a gente não compreenda a Malu como um fruto político e social também", finaliza.
Confira a entrevista na íntegra
Embora o filme retrate a vida de uma artista, ele pode ser lido como uma obra ficcional que dialoga com os dilemas cotidianos das famílias brasileiras, certo?
Você sabe que, na estreia oficial, no Festival Sundance, nos EUA, a gente ficou um pouco receoso, porque o filme tem essa embocadura brasileira.
A gente se perguntou: "Será que ele vai comunicar?" E quando estreou lá, já na primeira sessão, as pessoas vinham nos procurar, falando de si mesmas, falando da própria família, às vezes ela mesmo se identificando como alguma das personagens do filme.
Nós temos um público no final das sessões muito emocionado. Pessoas que às vezes não conseguem nem falar com a gente direito.
Então, quando isso acontece é porque se trata de uma obra que tem um caráter universal. E isso é uma coisa interessante, porque isso mostra que quanto mais particular você é, mais você comunica com todo mundo.
É nesse particular, nesse lugar meio subjetivo, que é que você encontra a maior profundidade, porque você fala realmente com propriedade disso.
Mas eu costumo dizer que o Pedro Freire não biografou a mãe, tanto é que são dois irmãos e ele escolhe uma personagem que não é nem ele, nem o irmão. Ele faz uma síntese dos dois, uma personagem que se chama Joana. E essa personagem que vai então estabelecer essa trinca de mulheres, essa trinca multigeracional.
E como foi o desafio de interpretar a mãe do diretor?
É uma pergunta que causa muito curiosidade nas pessoas. "Você vai interpretar a mãe o diretor?!? Já tá com a corda no pescoço?"
Agora eu vou te dizer uma coisa. O Pedro é um diretor que adora atores e se dedica, inclusive, a estudar a atuação. Está fazendo o mestrado dele em atuação agora.
É uma pessoa que não terceiriza o trabalho com os atores, ele não chama nenhum preparador. Ele realmente lida com toda a elaboração das personagens juntos com seus atores.
Ele foi com a gente para a sala de ensaio e ficou três semanas. A gente trabalhando todos os dias, de manhã e à tarde. E ali a gente lia todo o roteiro e improvisava todas as cenas.
Por quê? Porque é um tipo de técnica que você vai criar nesse improviso uma vida interior da personagem. Uma personagem como essa, todas essas que são retratadas no filme, são personagens que nascem da contradição. Porque elas são super humanas.
Mas mesmo assim o Pedro tem um roteiro, que é um roteiro muito bem elaborado. A gente só improvisou durante esses ensaios. A gente não improvisou depois, quando a gente foi para o set, a gente estava falando exatamente o texto que estava ali no roteiro.
Num determinado momento do processo, ele me mostrou um vídeo da Malu, que era uma entrevista dela, da Malu Rocha, uma entrevista de uma hora e meia, mas isso só depois de eu ter tido contato e ter experimentado um tipo de Malu que eu compreendia.
E aí é tão louco, Lucas, que tem muitos amigos da Malu que vão assistir, né? E eu ouvi muitas pessoas, "Meu Deus, o que que você fez, você tá cara da Malu, é a mesma coisa que é Malu!"
Mas em nenhum momento a ideia foi de imitá-la.
Um elemento central do filme é a ditadura militar, certo? Como isso influenciou na personalidade de Malu?
Qualquer um que viveu sabe que a gente precisa lembrar disso o tempo inteiro, porque uma pessoa que passou por uma ditadura, ela não vai ser a mesma.
Ela vai realmente propagar os momentos terríveis que ela viveu, de cerceamento de liberdade, de percepção, de injúria, de morte, de ameaças.
A gente acabou de passar por um momento... Eu não sei nem dizer o que que foi, porque me dá às vezes até gatilho pensar naquele desgoverno que a gente teve.
Na verdade, um governo, é bom que se fale, que é de extrema direita.
Malu era uma mulher que tinha um papo reto, ela falava realmente o que ela achava e se indignava. Ela tinha uma insubmissão, que é uma insubmissão que toda pessoa que preza pela liberdade, pela justiça, como eu disse, pela democracia, se não tem, tem vontade de ter.
Isso que é maravilhoso na Malu, mas que vem também contra ela. E é claro que isso adoece a uma pessoa. É claro que a ditadura adoeceu a Malu.
É claro que a ditadura, ou o Brasil moralista, racista, misógino, que ali é representado pela mãe dela, adoeceu a Malu.
Então é impossível que a gente não compreenda a Malu como um fruto político e social também.
Você que vivenciou o filme, que reflexões você compartilha sobre essa relação multigeracional proposta no longa?
Eu acho que o que o Pedro fez foi um filme de amor. Porque fica todo mundo ali tentando amar e ser armado.
Nós estamos no momento também de muito maniqueísmo, como se houvesse só bons em maus. Se você não está desse lado, você está desse outro lado.
Então, em algum momento, você acha que a Dona Lilí que é uma racista, sim, que é uma mulher moralista, sim, mas você tem afeto por ela.
Em outros momentos, você tem uma raiva muito grande da Malu. Você discorda absolutamente de algum tipo de ação que ela faça.
Então ele é um filme que está em dialética. Não é um filme que vai dizer "isso tá certo" ou "isso tá errado".
A gente teve agora essa extrema direita emergindo e se colocando em um lugar político brasileiro, e a gente tem famílias que brigaram. Outras não necessariamente, mas isso dividiu famílias.
Então essas contradições existem e elas precisam ser enfrentadas e eu acho que o Malu ajuda a lidar com isso. É um filme que te ajuda a pensar na sua própria contradição.
A gente não está nesse mundo de dois lados, a gente está num mundo muito mais complexo, e essa complexidade que é Malu.
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Edição: Martina Medina