A mídia comercial brasileira até aventou a possibilidade de desacordo entre os países do G20 na declaração final da Cúpula de Líderes, que termina nesta terça-feira (19), no Rio de Janeiro, encerrando assim a presidência brasileira à frente do bloco. O que não ocorreu. A declaração foi divulgada na noite de segunda-feira (18), com a informação de que havia sido adotada por consenso entre os membros permanentes do G20, incluindo a Argentina conservadora de Javier Milei. Isso porque todas as resoluções contidas no documento devem ter a adesão de todos os países do bloco. As divergências são automaticamente excluídas.
“O G20 só faz recomendações se elas são em consenso, isso significa que todos os países têm que consentir. Para dar um exemplo, nunca teve uma recomendação no G20, no campo de direitos humanos, que fale sobre população LGBTQIA+. Porque tem a Arábia Saudita, tem a Rússia, então isso não vai passar”, lembrou o especialista em relações internacionais Pedro Bocca.
Dessa forma, as resoluções, que não têm caráter vinculante, ou seja, os países não são obrigados a segui-las, acabam ficando no papel. Letra morta, como se diz. A própria declaração do G20 reconhece que outras resoluções, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), não resultaram em mudanças reais.
“Com apenas seis anos para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, há progresso efetivo em apenas 17% das metas dos ODS, ao passo que quase metade está mostrando progresso mínimo ou moderado, e em mais de um terço o progresso estagnou ou até mesmo regrediu”, diz a declaração.
Na avaliação de Paulo Velasco, professor de política internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a declaração é previsível, e não apresenta novidades em relação à pauta que já vinha sendo debatida pela presidência brasileira. Embora reconheça que o consenso atribui maior representatividade ao documento, ele destaca a ausência de aplicabilidade prática das resoluções apresentadas.
“Documentos desse tipo carecem de aplicação prática. Talvez a única coisa mais prática de tudo seja Aliança Global contra a Fome. Mas de resto, é um documento que não traz ônus para os Estados. Então, apoiar um compromisso geral superficial em transição energética e combate a mudanças climáticas é possível, mesmo que o país tenha um presidente negacionista”, analisa.
Sobre as guerras, consideradas pelo governo brasileiro como um dos principais empecilhos para a superação dos graves problemas da humanidade, a declaração final do G20 apenas reafirma aquilo que pôde ser aprovado no âmbito do Conselho de Segurança da ONU, o mesmo que é criticado pelo Brasil e outros países emergentes por estar absolutamente submetido aos interesses de tão somente cinco potências mundiais.
Dessa forma, os líderes do G20 declaram “profunda preocupação com a situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza e a escalada no Líbano” e enfatizam “a necessidade urgente de expandir o fluxo de assistência humanitária e reforçar a proteção de civis e exigir a remoção de todas as barreiras à prestação de assistência humanitária em escala”. Sem condenar Israel e seus aliados pela escalada na violência e as graves violações do direito internacional, a declaração defende a solução de dois estados e um cessar-fogo, “em conformidade com a Resolução n. 2735 do Conselho de Segurança das Nações Unidas”.
Já sobre a Ucrânia, o termo cessar-fogo é deixado de lado. O texto destaca o sofrimento da população e os impactos negativos da guerra, sobretudo à segurança alimentar e energética mundial, já que o país é um grande exportador de grãos para todo o mundo. “Saudamos todas as iniciativas relevantes e construtivas que apoiam uma paz abrangente, justa e duradoura, mantendo todos os Propósitos e Princípios da Carta da ONU”.
“O Brasil, como nação anfitriã do encontro, evitou apontar o dedo muito diretamente para Israel, embora certamente fosse o interesse brasileiro fazê-lo. Mas é que culpá-lo de genocídio poderia fazer com que vários países europeus e os Estados Unidos não aderissem ao texto. Da mesma forma, os europeus e os Estados Unidos abriram mão de caracterizar a Rússia como a grande responsável pela crise humanitária da Ucrânia. Até se falou em crise humanitária, mas não se apontou o dedo para a Rússia”, avalia Velasco.
Tendo entre seus membros os maiores detentores de armas nucleares, Rússia e Estados Unidos, a declaração propõe “avançar” sobre a meta de um mundo livre de armas nucleares, e condena “o terrorismo em todas suas formas e manifestações".
No que se refere aos direitos individuais dos cidadãos, o texto afirma que “todas as pessoas, independentemente de idade, sexo, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou qualquer outra condição, devem ter acesso a serviços essenciais que atendam às suas necessidades básicas, a um trabalho digno e a outras oportunidades sociais e econômicas que garantam sua participação plena, igual, efetiva e significativa na sociedade”. Observe-se que não há qualquer menção à comunidade LGBTQIA+, que poderia ser um ponto de desacordo entre os países, já que Rússia e Arábia Saudita, por exemplo, possuem leis específicas que discriminam e condenam a homossexualidade.
Em relação à pauta econômica, se manteve a proposta de tributação progressiva, sem menção aos super ricos, como ferramenta para “reduzir as desigualdades internas, fortalecer a sustentabilidade fiscal, promover a consolidação orçamentária, promover crescimento forte, sustentável, equilibrado e inclusivo e facilitar a realização dos ODS”. A declaração também advoga por uma cooperação internacional para o combate à evasão fiscal, sem a qual a tributação de fortunas não teria efeito prático.
Finalmente, a declaração reafirma o compromisso dos países no combate à fome, à pobreza e à desigualdade, assim como com a promoção do desenvolvimento sustentável e a reforma do sistema de governança global, temas centrais pautados pela presidência brasileira do G20. As ações específicas estarão sujeitas às vontades políticas de cada governo.
O G20 foi criado em 1999 para ser um fórum de cooperação econômica internacional – em outras palavras: um espaço para construir soluções para as crises capitalistas mundiais. Atualmente, reúne África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia, além da União Africana e da União Europeia. Reunidos, eles representam cerca de 85% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, mais de 75% do comércio global e cerca de dois terços da população do mundo.
Edição: Nathallia Fonseca