Coluna

Os golpistas e a democracia: enfrentar o presente para garantir o passado

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O general Braga Netto e o ex-presidente Jair Bolsonaro - Marcelo Camargo/Agência Brasil
É preciso que se faça Justiça hoje para que a história não se repita

"O passado não está morto. Nem sequer é passado".

A famosa frase do escritor estadunidense William Faulkner pode ser uma boa metáfora para pensarmos que a herança da ditadura militar no Brasil, que durou 21 anos, está longe de ser superada.

A deturpação clara do significado de anistia, utilizando-a como perdão e esquecimento a crimes graves contra a própria democracia, assegurando a impunidade aos assassinos do regime, torturadores, estupradores de mulheres presas, é justamente o que foi feito pelo regime militar que vigeu no Brasil de 1964 a 1985, quando teve início o processo de redemocratização do país.

A anistia ocorrida naquele tempo histórico acabou sendo o preço a pagar, a moeda de troca para o fim da ditadura. Até hoje sofremos as consequências da tentativa de apagamento da memória do que foi vivido. Grande prova disso é a presença de militares de altas patentes na política.

Há mais de 4 anos, em março de 2020, período ainda pré-pandemia, eu escrevi o primeiro artigo em que apontava o risco de ameaça à democracia nas falas de Jair Bolsonaro, então presidente da República, alertando que suas aventuras verbais testavam cotidianamente os limites da tolerância das instituições, cujos dirigentes, àquele tempo, reagiam de forma tímida e protocolar às ações do governante que atentavam contra a Constituição.

Bolsonaro havia encaminhado um vídeo de convocação para manifestação no dia 15 de março de 2020 pedindo o fechamento do Congresso Nacional, e deu uma declaração durante um encontro com a comunidade brasileira em Miami de que tinha provas de fraude no primeiro turno das eleições de 2018.

Não é necessário brincar de adivinhação do futuro para entender que, ao alimentar a militância bolsonarista radicalizada, Bolsonaro criava, desde então, as bases para uma tentativa de golpe caso perdesse as eleições futuras ou, mesmo ganhando, estabelecer novas formas de governar sem obedecer às regras democráticas. Ele não usava entrelinhas, suas intenções eram evidentes.

Havia, contudo, a escolha das instituições e mesmo de pessoas, grupos e partidos de esquerda de relativizar suas ações.

A revelação feita hoje, 19 de novembro de 2024, pela investigação da Polícia Federal de que o plano golpista contra o resultado das eleições em 2022, comandado por generais, tendo como artífice o próprio candidato a vice da chapa de Bolsonaro, General Braga Neto, envolvia o assassinato do presidente e vice-presidente eleitos, Lula e Alckmin, além do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, é prova cabal de que subestimamos a capacidade da extrema direita de tentar viabilizar um golpe em nosso país da forma mais vil e extremista que se possa, eliminando fisicamente as maiores autoridades políticas.

Os fatos também evidenciam a necessidade urgente de uma reforma estruturante nas Forças Armadas, para que sirvam verdadeiramente ao seu papel de defesa da soberania do Brasil, sem que seus membros se envolvam na política por uma vertente ideológica com a intenção de uso de armas contra o próprio país, suas instituições e governantes.

A verdade é que, desde o discurso em Miami em 2020, passando por diversas manifestações antidemocráticas e ataques frontais, bomba em aeroporto, acampamentos em quartéis, uma rede de mentiras e desinformações sem precedentes, dentre vários outros fatos, fomos acumulando ameaças explícitas e veladas contra a democracia em uma tolerância intolerável. O famigerado 8 de janeiro de 2023 foi o ápice, mas aparentemente longe de ser o fim de atos radicais protagonizados por seguidores do ex-presidente.

O candidato a vereador pelo Partido Liberal em Santa Catarina – não por acaso mesmo partido de Jair Bolsonaro – que detonou bombas no Supremo Tribunal Federal há uma semana pode ter agido sozinho, mas certamente motivado e estimulado por discursos de incentivo e de ódio que povoam as redes sociais, encorajados pelos líderes políticos bolsonaristas.

O que temos no Brasil, como em grande parte do mundo, é um grande desafio estratégico de enfrentar a "direita que saiu do armário", em uma luta no dia a dia em ação contínua de mobilização e participação, capaz de garantir a própria efetividade da democracia em criar sua resiliência, ao reconhecer direitos e garantir políticas socioambientais que os tornem irreversíveis.

As revelações trazidas pela Polícia Federal nos obrigam a entender sem hesitar que, além do arsenal de ódios e intolerâncias nas redes sociais, depredação do patrimônio público, manifestações públicas de desprezo pelas instituições, apelação para valores morais e religiosos, camuflando o seu discurso, essas pessoas são capazes de violência armada e assassinato de adversários políticos.

Dentre os enormes desafios que teremos pela frente, dada a realidade do poder do mercado na economia, tão bem representado no Congresso Nacional, e sua enorme capacidade de vetar mudanças necessárias aqui e agora, temos que zelar pela integridade do que estamos construindo e buscando modificar, as vitórias conquistadas nesse processo de governo democrático, como garantia de futuro possível, acimentando uma resistência ao autoritarismo vivo em nosso seio.

Isso só é possível se não houver qualquer hesitação em garantir a responsabilização civil, administrativa e penal dos que cometem crimes contra a democracia, definindo que há obrigações e condições para as disputas democráticas, dentro das regras constitucionais. O oposto, portanto, de falar em anistia para golpistas.

É preciso que se faça Justiça hoje para que a história não se repita, nem como tragédia, nem como farsa, como diria o velho Marx. Para que o passado do amanhã seja contado como aquele em que a impunidade não prevaleceu.

Edição: Nicolau Soares