Coluna

Quatro anos sem a cicloativista Marina Harkot e os subterfúgios que atrasam a justiça

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Manifestantes pedem justiça por Marina Harkot durante ato realizado na Avenida Paulo VI, no bairro Sumaré. - Rachel Schein do @sp_de_bike
Atestado apresentado por acusado adiou julgamento; justiça investiga possível fraude

Eu acompanho de perto o processo do julgamento do homem acusado de atropelar e matar a cicloativista e socióloga Marina Harkot quatro anos atrás, na noite de sábado (8), na avenida Paulo VI, bairro do Sumaré, em São Paulo, quando pedalava para casa. Ela teve o infortúnio de estar no caminho do utilitário esportivo do José Maria da Costa Junior que voltava de uma baladinha de sábado com um casal de amigos, pilotando a Tucson em alta velocidade, possivelmente embriagado, como apontaram testemunhas, de modo que ela não teve nenhuma chance dela sobreviver à colisão traseira infligida pelo carro pesando mais de 1.500 quilogramas.

Pesquisando os documentos no website do Tribunal de Justiça, encontrei o mandado de intimação do réu assinada pela juíza da 5ª Vara do Júri, Isadora Botti Beraldo Moro. Ela manda José Maria comparecer ao Plenário 3 do Fórum Central Criminal localizado na avenida Doutor Abraão Ribeiro, 313, no bairro do Bom Retiro, quando se dará, a partir das 12h30, a sessão de julgamento pelo crime de homicídio com dolo eventual que prevê pena de seis a 20 anos de reclusão segundo o artigo 121 do Código Penal.

Quando li no final da intimação a expressão "SOB PENA DE REVELIA", assim mesmo, em caixa alta, deduzi, sem base alguma, que era um expediente extraordinário usado pela juíza para alertar o acusado de que um novo adiamento não seria tolerado e a sessão de julgamento seria iniciada mesmo sem a presença dele, o que, provavelmente, na minha imaginação, daria condenação certa e pena máxima, já que a não presença poderia configurar a admissão de culpa e facilitar a votação unânime dos sete jurados.

Isso porque em 18 de junho, dois dias antes da data original do julgamento, 20 de junho, ele meteu um atestado médico, que é uma expressão popular usada entre trabalhadores CLT, alegando estar com sintomas da dengue e, assim, conseguiu mais seis meses como réu primário, pois a juíza teve que cancelar o julgamento, marcar nova data e refazer todo o processo de intimar júri, testemunhas, advogados, fazer reserva de quartos para jurados escolhidos, agendar uso do plenário e outras necessidades sem as quais um julgamento não ocorre.

E de fato eu estava errado. Descobri, com frustração, que o alerta dado pela meritíssima é padrão nessas intimações e não impede que Costa Júnior use novamente algum expediente semelhante para faltar à sessão. 

Atendido pelo Pronto Atendimento da Santa Casa de Misericórdia de Socorro, o réu saiu com um laudo médico que indicava a dengue a provável causa dos sintomas que ele descrevia sentir. A passagem dele por lá resultou na instauração de um Inquérito Policial no 23º Distrito Policial (DP) de Perdizes, na capital paulista, que está investigando, a pedido do Ministério Público de São Paulo, se a médica que o atendeu teria cometido o crime de falsidade ideológica por emitir o atestado médico que o ajudou a adiar o julgamento.

“De acordo com as respostas confeccionadas pela Santa Casa de Misericórdia de Socorro, todos os exames a que foram submetidos o réu (hemograma e prova do laço) não indicavam qualquer suspeita de dengue. Nem mesmo febre tinha o réu. Ademais, a própria entidade hospitalar afirmou não realizar sorologia para dengue, apenas expedindo guia para que o exame fosse realizado em laboratório particular ou público (cujo resultado, até o presente momento, sequer foi apresentado pelo réu nesses autos)."

Assim escreveu o Promotor de Justiça Rodolfo Justino Morais do 5º Tribunal do Júri, na petição que justificou, além do pedido de abertura do inquérito policial por falsidade ideológica, da abertura de investigação por fraude processual e também de instauração de procedimento disciplinar no Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais para apurar a conduta profissional da médica, que, apesar do relatado, julgou por bem dar ao réu "um atestado médico com a CID 90, com seis dias de afastamento dos seus afazeres”.

Enquanto se aguarda o desenrolar moroso da justiça para atribuir a José Maria a culpa que lhe é cabida, duas semanas atrás, num sábado quente e nublado de 9 de novembro, aconteceu o quarto memorial por Marina e, desta vez, o comparecimento já foi bem menor do que nos anos anteriores, o que é normal nesses casos, pois o tempo passa e só quem era mais próximo da vítima mantém a vigília constante pela justiça.

Entre família, amigas, amigues e amigos, contei 19 pessoas, incluindo eu mesmo, rememoramos a filha, esposa, companheira de luta, a colega de cicloativismo, com o plantio de árvores no canteiro central da avenida, que vem se transformando informalmente no Bosque da Marina. Foi esticada ainda uma grande faixa pedindo justiça e afixado um manifesto no muro com o mesmo pedido. Durante umas duas horas, trocamos ideias e lembranças, combinamos novas ações para manter a memória dela viva e depois seguimos cada uma por seu caminho, posto que a saudade fica, mas a vida continua.

Edição: Martina Medina