Em seu artigo “Tortura e sintoma social”, a psicanalista Maria Rita Kehl diz que a elaboração pública dos crimes cometidos pelos militares na Ditadura de 64 encerraria não só o luto das vítimas e de seus familiares, que buscam justiça, mas poderia começar a curar as próprias instituições brasileiras, historicamente violentas.
A licença para abusar, torturar e matar, escreve Maria Rita Kehl, acabaria por traumatizar também os agentes da barbárie. Esse choque produzido pelo gozo com a pulsão de morte desorganiza o sentimento de realidade e a identidade: “Não é fácil efetivar a passagem do ‘sou um homem’ para ‘sou um assassino de outros homens’ – ela tem um preço alto. O efeito, para o próprio sujeito, é tão aterrorizante que ele se vê impelido a repetir seu ato mortífero até assimilar de vez sua nova hedionda identidade”.
O mal se retroalimenta. E se alastra.
Democracia desigual
Num país como o Brasil, a Ditadura de 64 não foi pioneira nas práticas de repressão e extermínio. Se nos anos de chumbo ela avançou para dentro dos pacíficos lares de classe média dos grandes centros urbanos, no passado e no presente, as populações negras, indígenas, e pobres das zonas rurais e periféricas, tiveram e têm que conviver cotidianamente com a falta de garantias democráticas. Para alguns corpos e territórios, a democracia nunca chegou de maneira plena. Até hoje. E nenhuma das poucas conquistas está garantida.
Num raciocínio contraintuivo, Maria Rita Kehl afirma, a partir de Paulo Arantes, que polícia brasileira é a única na América Latina que comete mais assassinatos e crimes de tortura na atualidade do que durante o período da Ditadura Militar.
Com uma das maiores populações carcerárias do mundo, o Brasil é um dos países mais sangrentos e desiguais do planeta. Se pensássemos de verdade nessas questões, com uma consciência verdadeiramente ética, como o mesmo desespero cotidiano de quem sofre essa violência na pele, talvez não dormíssemos à noite. Talvez fôssemos um pouco mais radicais, indo à raiz dos problemas com urgência.
Ainda estou aqui
Nesse sentido, a expressão Ainda estou aqui, título do comovente filme de Walter Salles, ganha um duplo sentido. Ainda está presente a ausência do engenheiro Rubens Paiva, sequestrado e torturado, como outros 20 mil brasileiros no período de repressão, e depois assassinado e desaparecido como outros 434 cidadãos, de acordo com números estimados pela Comissão Nacional da Verdade e agências internacionais. Também está aqui presente ainda hoje no Brasil, o aparato repressor do estado: país no qual 71,7% dos mortos por policiais em 2023 eram crianças, adolescentes ou jovens.
O testemunho da família Paiva, que ganhou corpo pela primeira vez em 2015, no livro do jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, é comovente em muitos níveis. Os primeiros planos do filme, intercalando trêmulas montagens de Super 8, algumas ficcionais e imagens que parecem ser originais de arquivo, dão o tom memorialístico do cotidiano feliz da família. A partida de vôlei de praia, o cachorro de rua sendo acolhido, as crianças correndo em bando sozinhas pela rua, garotas bronzeando a pele com coca-coca. Festas, música e muita alegria numa casa pé na areia.
A situação começa a mudar quando um grupo da luta armada sequestra o embaixador suíço, exigindo a soltura de presos políticos. Isso acirra a repressão. A filha mais velha de Paiva, Veruca, que passeava tranquila com amigos num carro, é acossada por uma blitz e “toma uma geral” da PM, com empurrões, armas na cabeça e ofensas. Uma prática cotidiana das forças policiais brasileiras, a depender da sua classe social, raça e lugar geográfico onde se vive. Mas que naquele período se tornou prática generalizada, sendo que grande parte dos militantes contrários à ditadura compunha-se por jovens estudantes.
Enquanto posa para uma foto abraçada com a família, com o mar ao fundo, Eunice Paiva vê caminhões do exército passando e não contém sua apreensão. A segurança da sua família está em risco. Ela ainda não sabia que o marido está distribuindo correspondências clandestinas de exilados. E mais adiante, quando conversa com um amigo que conta as pequenas resistências que o marido fazia, escuta que nada de mau aconteceria a alguém como Rubens Paiva.
Ameaça comunista
Em um dia comum, num clima de pesadelo kafkiano, da maneira mais natural, agentes do Exército Brasileiro entram na sua casa e levam Rubens Paiva para “prestar um depoimento de rotina”. Alguns guardas continuam ali, vigiando a família, monitorando as ligações, jogando totó com as crianças. Como num sequestro. Depois, a própria Eunice e a filha Eliana, então com 15 anos de idade, são levadas encapuzadas e presas. A filha fica uma noite encarcerada.
Numa entrevista de 2012 ao jornal O Globo, quando falou pela primeira vez sobre o assunto, Eliana Paiva contou que os carrascos mostraram um trabalho de escola, de História, sobre a Tchecoslováquia. E a acusaram de ser comunista.
Eunice Paiva ficou presa por 13 dias. As cenas dentro do cárcere são claustrofóbicas e angustiantes. Vemos de relance uma pessoa sendo afogada. Ouvimos gritos de mulheres. Nesse ponto, um dos guardas que a leva da cela à sala de interrogatórios, sussurra informações sobre a filha e diz para ela ficar calada para não causar mais irritação aos torturadores.
Esse cúmplice-sabotador, que diz não concordar com “isso” quando Eunice é libertada, é uma figura ambígua entre o consentimento e a resistência. Não há controle total, nem mesmo nos regimes mais autoritários.
Em 1995, quando a lei reconheceu a morte de desaparecidos como Rubens Paiva, Eunice Paiva e o general-de-brigada Alberto Cardoso se abraçaram. Numa entrevista publicada na Folha de S. Paulo naquela ocasião, o general disse: “Me impressionou o equilíbrio e a simpatia daquela senhora, que, logicamente muito machucada, não exibiu o menor rancor”.
Remontagens do tempo sofrido
O ritmo narrativo do filme de Walter Salles vai muito bem até o ponto que a família precisa mudar para São Paulo, com cenas muito tensas, que chamam a atenção pela sua força e sutileza. Por exemplo, no banco: o gerente e amigo do marido vira as costas quando ela vai trocar o cheque da propriedade vendida às pressas, ou quando a professora que também tinha sido presa deixa seu testemunho debaixo da porta, no meio de uma tempestade. A atuação de Fernanda Torres, impecável, confere muita densidade a toda a luta pela verdade e pela justiça desempenhada por Eunice Paiva. Uma mãe, esposa, mulher dilacerada por um sofrimento incomensurável. Quando explode para cima dos soldados que espionam sua casa, depois que o cachorro Pimpão é atropelado, dando pancadas no vidro, vemos nos seus olhos a raiva e a dor. Uma coragem que nos deixa emocionados e inspirados.
No segundo e terceiro bloco do filme de Walter Salles, o roteiro perde a força do primeiro ciclo narrativo. Talvez uma minissérie fosse a melhor opção para desenvolver toda a luta de Eunice pelo reconhecimento da morte do marido e seu ativismo pelos direitos indígenas, e também sua batalha pessoal contra o Alzheimer, que aparece apenas de relance, com a presença de Fernanda Montenegro. Nesse ponto, como não lembrar do ótimo documentário chileno La Memoria Infinita (Maite Alberdi, 2023), um dos filmes mais comoventes do ano passado, que trata de um tema semelhante, memória da ditadura e perda da memória. Além disso, o uso de imagens de arquivo poderia ser mais ousado. Mesmo os telejornais aparecem timidamente, e poderiam oferecer um jogo interessante, como na solução de uso de arquivos da televisão apresentada no já clássico No (Pablo Larraín, 2012).
Além disso, o salto apressado no tempo e as atuações do novo elenco causam certa desconfiança no público. Estamos vislumbrando um epílogo? Ainda estamos vendo o mesmo filme?
Na cena do recebimento do atestado de óbito, por exemplo, há um detalhe que está no livro mas que não aparece no filme. FHC era amigo pessoal e íntimo de Rubens Paiva. Eleito presidente, desconversou quando a Anistia Internacional cobrou uma posição sobre desaparecidos políticos. Marcelo então pede a um amigo da Veja um espaço para escrever. A partir de um artigo de FHC dos anos 80, o escritor mostra as contradições do “príncipe dos pobres”, outrora um sociólogo “mais crítico”. Com a grande repercussão, e com outro amigo pessoal de Rubens Paiva ocupando o cargo de Ministro da Justiça, a LEI Nº 9.140, que reconhecia o óbito dos desaparecidos, foi redigida e aprovada.
A história dos sem nome
Mesmo uma família rica e poderosa, com muitas relações de poder, teve sua segurança e direitos roubados num regime de exceção. Foram necessários vinte anos para poder enterrar oficialmente um ex-deputado. Uma violência irreparável. O que será que aconteceu com os anônimos e sem nome do passado, já que muitos dos documentos foram destruídos? Judith Butler afirma que nem todas as vidas são dignas de luto em sociedades e regimes de extrema vulnerabilidade. São a esses “sem nome”, sumariamente derrotados, rasurados e apagados, a quem devemos dedicar nossas forças, como diz o imperativo ético da noção de história de Walter Benjamin.
Ainda estou aqui é um filme sensível que cumpre seu papel testemunhal de pautar a memória da Ditadura numa perspectiva da destruição abrupta do cotidiano familiar. E expõe as teias repressivas que alcançavam os mais recônditos campos da luta, como o gesto solidário de Paiva de entregar as cartas daqueles que estavam na clandestinidade.
Muitos trabalhos recentes têm trazido esse período sombrio para o centro de debate neste ano em que Golpe Militar completa 60 anos, como Cinema de Arquivo, da pesquisadora Patrícia Machado ou o áudio livro YAWARA: Uma história oculta sobre o Brasil, narrado por Alice Braga e que conta a história do Relatório Figueiredo e a questão indígena, além dos ótimos trabalhos historiográficos de Lucas Pedretti, com a A transição inacabada.
Os testemunhos das vítimas têm sido um instrumento fundamental para a elaboração simbólica desta memória traumática coletiva. O trabalho ético e político de curar nossas instituições, como propõe Maria Rita Kehl, demandaria também ouvir a voz dos carrascos assumindo seus crimes publicamente. Para isso, se faz necessário revogar a lei da anistia. E julgar e condenar os crimes cometidos pelos militares contra o povo brasileiro. Só assim poderíamos começar a exorcizar esse passado sombrio que ainda está aqui.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
Edição: Nathallia Fonseca