A participação olímpica mais equitativa conjuga um esforço de muitas mulheres
Depois dos Jogos Olímpicos de Paris, entre julho e agosto de 2024, falar em inclusão das mulheres no esporte internacional pode parecer uma tarefa concluída. Foi uma edição dos Jogos que o movimento olímpico celebrou a marca de uma “total paridade de gênero no campo de jogo”. Sabemos que essa paridade se restringe apenas a participação de atletas – sem contabilizar outras áreas técnicas ou de gestão – e, mesmo que parcialmente completa, já que os Jogos finalizaram com um pouco mais de participação masculina (51% a 49%), foi uma marca arduamente conquistada. A participação olímpica mais equitativa conjuga um esforço de muitas mulheres, dentro e fora do campo de jogo.
Nessa primeira coluna solo retomo um pedaço do histórico de inclusão feminina nos Jogos, atravessando a formalização dos esportes internacionais, para lembrar como essa busca de paridade na competição foi custosa e, na maior parte das vezes, um movimento mediado pela tutela de homens gestores do movimento olímpico. Mais de cem anos antes, na segunda edição dos Jogos Olímpicos, em Paris, no ano de 1900, a participação feminina era de 2% do total de atletas em competição, cerca de 22 mulheres em comparação com 975 homens. Elas competiram em poucas modalidades, apenas golfe no individual, além de tênis, vela e hipismo nos esportes mistos.
Pierre de Coubertin era o presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), movimento olímpico moderno retomado no fim do século XIX. Esse desejo olímpico, de garantir uma competição amadora e cordial entre diferentes nações, esbarrava em um mundo de muitas transformações. Desde processos coloniais e nacionalistas, com grandes guerras, até mesmo a demanda sufragista por voto e participação social em partes de territórios ocidentais.
Para o Barão, assegurar que mulheres participassem dessa empreitada olímpica seria “impraticável, desinteressante e impróprio”, de forma que elas não estiveram nos primeiros Jogos, em Atenas. Coubertin institucionalizou o COI com outros homens influentes da época, cavalheiros e burgueses de vários países, excluindo da participação esportiva mulheres, trabalhadores e habitantes das colônias que não eram considerados dignos de representação olímpica. Nesse primeiro momento, os comitês organizadores locais até tinham certa autonomia para definirem suas regras, conduta que permite uma abertura gradual de certas mulheres nas competições.
Ainda que incipiente, essa pressão feminista era sentida à contragosto de Coubertin. As modalidades eram escolhidas a dedo, acentuando a expectativa em torno dos papéis de gênero, muito restrita, vitoriana e pouco tolerante. Por exemplo, o tiro com arco, permitido em St. Louis 1904 e Londres 1908, sai de cena para dar lugar a esgrima em Paris 1924. O que era considerado gracioso e aceitável em um momento podia ser reavaliado em outro. Os gestores definiam quais modalidades eram possíveis – e esteticamente prazerosas de serem observadas – para as mulheres da época competirem.
Mas Paris 2024 evidenciou outro esforço do olimpismo em refundar suas origens com a reescritura dessa inclusão, ilustrado pelo resgate de Alice Milliat, pioneira pelo avanço do esporte para as mulheres. Em 2021, uma estátua dela for erguida em frente ao prédio do Comitê Olímpico Francês, ao lado de outra estátua de Coubertin; em 2024, uma praça do lado de fora de uma das arenas olímpicas foi batizada em sua homenagem. Escolher como produzir um legado revela os caminhos de releitura do passado olímpico para a promoção contemporânea de equidade. Milliat foi responsável por criar espaços para a prática e a competição esportiva entre mulheres em uma época que os membros do COI não acreditavam no esporte feminino.
Nascida em Nantes, na França, na virada para o século XX, Milliat apreciava praticar esportes que não eram usuais para mulheres naquele contexto, como remo e hóquei. Viúva muito cedo, com apenas 23 anos, Alice se muda para Paris e assume a presidência de um clube associativo chamado Femina Sport. Enquanto o COI não abria seus espaços de competição para as mulheres participarem do movimento olímpico, especialmente durante a presidência de Pierre de Coubertin, entre 1896 e 1925, Milliat desbravava outros lugares para estarem no esporte internacional.
Em 1921, funda a Federação Internacional de Esportes Femininos (FSFI), atuando como presidente. No ano seguinte, consegue uma articulação nacional e internacional com vários parceiros (como jornais, profissionais da educação física e outros clubes associativos) para lançar os Jogos Olímpicos Femininos. O evento foi um sucesso. Reuniu mais de 70 atletas de cinco nações, recebendo 20 mil espectadores nos dias de competição, no estádio Pershing, em Paris. Anos antes, Milliat tinha solicitado que a World Athletics (na época IAAF) permitisse a participação de mulheres em seus campeonatos. Não tiveram um retorno positivo. Seu evento conseguiu o mesmo número de países representados que a federação internacional de atletismo.
Assim, seguiu com as edições de seus Jogos para mulheres em mais três ocasiões: 1926, 1930 e 1934. Quando a visibilidade não era mais possível de ignorar, negociou com o COI para que retirasse o nome “Olímpicos” do evento se a entidade permitisse a entrada do atletismo para mulheres no movimento olímpico. Em 1928, nos Jogos de Amsterdã, o atletismo finalmente foi liberado para as mulheres, mesmo que em cinco provas, “como um teste”. Um grupo foi encarregado de supervisionar as modalidades femininas nos Jogos e Alice foi a única jurada entre os homens.
As provas foram um acerto – com o registro de 18 recordes mundiais. Mas membros do COI ainda estavam insatisfeitos com a participação feminina nos Jogos, vários pediram a exclusão completa das mulheres do programa. Não era possível voltar atrás com a inclusão, ainda que parcial, mas a entidade passou a controlar minuciosamente as modalidades aprovadas para as mulheres. Os 800 metros, prova que tinha sido realizada em 1928, foi banida por risco à saúde feminina e só foi liberada novamente em 1960, nos Jogos de Roma. Nenhuma corrida acima da distância de 200 metros foi incluída durante mais de trinta anos.
Com a saída de Coubertin da presidência do COI, o Conde Henri de Baillet-Latour assume o cargo, com mandatos sucessivos de 1925 até seu falecimento em 1942. Em conversa com outro membro, o Barão Godefroy de Blonay, em 1931, Baillet-Latour escreve que esperava que um dia as mulheres fossem completamente livres da tutela masculina para poderem organizar seus próprios eventos, assim permitiria a exclusão oficial de todas dos Jogos. A inclusão de mulheres foi, portanto, um negócio. Uma mitigação necessária frente a mobilização feminista da época. Novas regulações e desigualdades serão postas em prática para controlar o espaço da mulher no movimento olímpico. Hoje, a história celebra essa resiliência feminina.
Em tempos de disputa por legados dentro e fora do campo de jogo – quem proteger, quem anistiar, os efeitos materiais de não julgar nem lembrar e as tensões de produção de nacionalidade nesse tempo histórico – o esporte, com suas ranhuras e visibilidades pela inclusão de uma feminilidade outrora relegada, pode ser um veículo interessante para refletirmos sobre o esforço de iluminar controles e redefinir tutelas para alargar uma unidade. Seja no movimento olímpico, seja como nação, o esforço para alcançar a igualdade nunca é incólume. Milliat, como outras mulheres que seguiram depois dela, usaram seus corpos como agentes dessa transformação. A luta feminina no esporte internacional é exemplo desse caminho.
* Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a ONU Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca