As mulheres negras cuidam deste país desde que ele existe
"Ser mulher negra no Brasil é ser um sujeito político coletivo, desenhado na luta coletiva", afirma Bianca Santana. Para a jornalista, autora de Quando me Descobri Negra e Continuo Preta: A Vida de Sueli Carneiro, essa é a essência do que as mulheres negras oferecem ao Brasil: um cuidado que ultrapassa os limites da própria casa e abrange toda a comunidade, por meio de uma solidariedade enraizada em práticas ancestrais.
O Três por Quatro, podcast de política do Brasil de Fato apresentado por Nara Lacerda e Nicolau Soares, traz uma edição especial nesta sexta-feira (22) dedicada ao novembro negro. O episódio aborda a resistência das mulheres negras, destacando a luta antirracista, a sub-representação política e o conceito do bem viver, propondo reflexões sobre práticas e saberes ancestrais como ferramentas de transformação social.
Para Bianca, a “ideia de mulher negra” não deve ser vista apenas como uma pauta identitária, pois ela “ultrapassa a individualidade e está fundamentada em um legado histórico de resistência". Segundo a pensadora, a exclusão da população negra da participação ativa na sociedade brasileira desde o período da escravização está na raiz das desigualdades estruturais marcadas pelo racismo. "Não nomear isso impede que possamos enfrentar o problema", afirma.
O episódio também traz a perspectiva de José Genoíno, comentarista-fixo do podcast e ex-liderança do PT, que recorda a resistência de mulheres negras como Helenira Resende e Dina durante a ditadura militar (1964-1985). “Na clandestinidade, Dina dizia: ‘Vou comandar isso porque faço melhor do que os homens.’ Ela assumia responsabilidades e enfrentava racismo e machismo com coragem. Essas mulheres lideravam em condições de extrema adversidade”, relembra.
A luta das mulheres negras, segundo Bianca, conecta opressões e resistências em escala global, evidenciando como o racismo e o patriarcado estruturam desigualdades transnacionais. "Das mulheres do Saara Ocidental, enfrentando a violência colonial, às lutas contra a privatização da água na Bolívia, o denominador comum é a organização coletiva. É essa união que transforma realidades e combate sistemas opressores como o patriarcado e o racismo", reflete.
As intersecções de gênero, raça e classe são, para ela, pilares que estruturam o capitalismo e explicam a permanência da violência sistêmica que afeta mulheres negras em todos os âmbitos da vida: na casa, no trabalho, na política e na economia.
Genoíno complementa ao apontar que esses pilares “radicalizam as vulnerabilidades para poder penalizar mais ainda”, e ressalta que o capitalismo intensifica essas violências ao se apoiar em discriminação salarial, racismo e violência patriarcal para ampliar o controle sobre esses grupos.
Racismo estrutural e desafios institucionais
Essa realidade reflete um problema estrutural mais amplo. No Brasil, as mulheres negras ocupam apenas 2% das cadeiras no Congresso Nacional. Essa sub-representação política tem raízes em séculos de exclusão. Após o assassinato de Marielle Franco, o movimento "Efeito Sementes", por exemplo, impulsionou mais mulheres negras a se candidatarem.
Contudo, a estrutura patriarcal e racista do Estado brasileiro ainda impede mudanças mais profundas. “Historicamente, as mulheres negras foram excluídas das decisões políticas, econômicas e sociais no Brasil, mas sempre protagonizaram os movimentos mais importantes de resistência”, aponta a jornalista.
Ela cita a trajetória de Benedita da Silva, empregada doméstica que se tornou senadora e governadora do Rio de Janeiro, e de Áurea Carolina, que decidiu não disputar reeleição por conta do peso emocional e pessoal. “O Brasil coloca inúmeras barreiras para as mulheres negras chegarem a esses lugares e quando elas chegam, elas são duramente penalizadas”, reflete Bianca.
Genoíno também rememora os avanços conquistados na Constituinte de 1988 pela "bancada do batom", aliança suprapartidária entre parlamentares para garantir e ampliar os direitos das mulheres, assim como pela criminalização do racismo. "A bancada do batom uniu forças para tornar o racismo imprescritível e inafiançável. Foi um marco, mas ainda precisamos transformar esse avanço legal em mudança prática."
Resistência negra: brechas e fissuras contra o racismo estrutural
Bianca destaca que o racismo estrutural só será superado com mobilização popular e organização coletiva. "Os desafios são enormes, mas a força das mulheres negras, suas práticas e saberes têm sido essenciais para abrir brechas em estruturas opressoras, como mostrou a marcha de 2015", ressalta Bianca.
A Marcha das Mulheres Negras de 2015 — primeira edição do evento, que reuniu mais de 50 mil mulheres negras, quilombolas, indígenas e yalorixás — foi um marco contra o racismo, a violência e a desigualdade social e de gênero no Brasil. Realizada em Brasília, no dia 18 de novembro daquele ano, a marcha também consolidou a proposição do conceito do bem viver.
Inspirada por lideranças indígenas, essa ideia sugere uma convivência harmoniosa entre pessoas e natureza, sem hierarquias ou exploração, como destaca Bianca. “As mulheres negras cuidam deste país desde que ele existe. Nós cuidamos das pessoas, das casas, das relações. Esse cuidado é nossa força, mas também precisa ser reconhecido como uma proposta política para toda a sociedade.”
Nesse sentido, Bianca relembra o pensamento da filósofa Sueli Carneiro de que a resistência “não é assim uma grande revolução". "A gente está falando de movimentos que vão provocando fissuras, que vão se aproveitando das brechas, que vão destruindo essa hegemonia, numa luta muito constante”, explica.
Ancestralidade e cultura como resistência
Iniciativas culturais como o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador fundado em 1974, que durante a ditadura militar já afirmava a negritude como um valor, e religiões de matriz africana são cruciais para romper com as representações negativas da colonização e do racismo estrutural, assim como reafirmar identidades.
“Enquanto a escola ignorava a história da população negra, o Ilê Aiyê educava com suas músicas, trajes e sambas-enredo que exaltavam líderes negros e as tradições africanas”, cita a jornalista sobre a importância do bloco.
Bianca destaca o trabalho de líderes como Mãe Hilda de Jitolu, que, ainda nos anos 1980, criou um projeto educativo no terreiro para crianças negras. “Os terreiros sempre foram espaços de acolhimento e resistência. Quando a escola pública era um espaço racista e excludente, os terreiros educavam. Esses espaços foram fundamentais para formar consciência crítica e preservar a memória negra.”
"Nesse aspecto, é importante demarcar os espaços de lutas e resistência construídos pelas nossas ancestrais, trazendo a memória de Sueli Carneiro, Nilma Bentes, Luiza Bairros, e tantas outras que iniciaram o processo da luta."
Bianca fala sobre como os saberes tradicionais sustentam a resistência negra. “Toda vez que um dos meus filhos [...] não tá conseguindo dormir e eu pego umas folhinhas de boldo e coloco no travesseiro, eu me conecto com uma tecnologia ancestral de bem viver que aprendi no terreiro e com a minha avó Polu, que trouxe esse saber do Rio São Francisco. Essa tecnologia ancestral nos permite estar vivas e vivos.”
Para ela, essas práticas, que incluem cuidados cotidianos e conhecimentos transmitidos por gerações, garantem a sobrevivência de comunidades sistematicamente negligenciadas pelo Estado.
Bianca ainda celebra a memória de sua avó materna, Apolinária, carinhosamente chamada de Polu, e se emociona ao evocar a oração feita antes das refeições, que reflete esse senso de coletividade: “Esse bocado que nós comemos foi dado pela mão de Deus. Nos dai todo dia, toda hora, o pão de cada dia, a nós e a quem em nossa porta chegar.”
Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.
Edição: Martina Medina