A guerra da Ucrânia entrou em uma nova fase. No início da semana, os EUA autorizaram a Ucrânia a realizar ataques com mísseis de longo alcance contra o território russo. A decisão era aguardada por Kiev há meses. Logo nos dias seguintes à permissão do governo de Joe Biden, a Rússia identificou o uso de armas de longo alcance ocidentais em tentativas de ataques ucranianos realizadas em 19 e 21 de novembro.
De acordo com Moscou, foram identificados seis mísseis de longo alcance ATACMS, dos EUA, e um ataque combinado de mísseis dos sistemas Storm Shadow, fabricados no Reino Unido, e dos sistemas estadunidenses HIMARS, em ataques ucranianos a alvos militares nas regiões russas de Bryansk e Kursk.
Anteriormente, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, já havia declarado que “se mísseis de longo alcance forem aplicados da Ucrânia em território russo” Moscou entenderá isso como “uma fase qualitativamente nova da guerra ocidental contra a Rússia”. “E reagiremos de acordo”, completou Lavrov durante uma coletiva de imprensa no G20, no Rio de Janeiro.
A resposta veio de forma imediata. Na última quinta-feira (21), a Rússia atacou a região ucraniana de Dnipro com múltiplos mísseis, causando muita especulação sobre o tipo de armamento utilizado. Inicialmente, a Força Aérea da Ucrânia acusou Moscou de ter usado um míssil balístico intercontinental, que tem como principal característica a capacidade de atingir um alvo em longa distância, tendo um alcance mínimo de 5.500 quilômetros. Estes armamentos são geralmente equipados com ogivas nucleares.
No entanto, depois foi revelado que o ataque russo foi feito com um míssil balístico de alcance intermediário não nuclear. O armamento trouxe uma novidade para o teatro de guerra.
Novo míssil ‘Oreshkin’
No mesmo do dia do ataque à região de Dnipro, na noite de quinta-feira (21), em pronunciamento à nação, o presidente Vladimir Putin esclareceu as características do novo míssil utilizado, refutando as alegações de que teria sido um míssil de longo alcance. Ao mesmo tempo, o líder confirmou que o armamento é inédito e de caráter “experimental”. Segundo ele, a Rússia utilizou o novo míssil não nuclear de médio alcance “Oreshnik”.
“Em resposta ao uso de armas de longo alcance americanas e britânicas, em 21 de novembro deste ano, as Forças Armadas russas lançaram um ataque combinado a um dos objetos do complexo militar-industrial da Ucrânia. Um dos mais novos sistemas russos de mísseis de médio alcance foi testado em condições de combate, neste caso com um míssil balístico equipado com equipamento hipersônico não nuclear. Nossos cientistas de foguetes o classificaram como 'Oreshnik'. Os testes foram bem sucedidos, o objetivo de lançamento foi alcançado”, afirmou.
De acordo com o presidente russo, o desenvolvimento do sistema de mísseis “Oreshnik” é uma “resposta às ações agressivas dos países da Otan em relação à Rússia”. “A questão da continuação da implantação de mísseis de médio e curto alcance será decidida por nós, dependendo das ações dos Estados Unidos e dos seus satélites”, acrescentou.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador de Relações Internacionais e Estudos Estratégicos da Universidade Estatal de São Petersburgo, Pérsio Glória, explica que o novo míssil utilizado pela Rússia, ao contrário do que foi veiculado inicialmente pela Ucrânia - e reproduzido pelos principais veículos da mídia internacional -, ainda não representa uma mudança de paradigma em termos de tipo de ataque, pois foi um míssil de médio alcance e o seu uso “foi convencional, teve um propósito que poderia ser atingido com outros armamentos”.
No entanto, o analista aponta que, de fato, é uma arma nova sobre a qual ainda não se sabe exatamente a sua capacidade e representa “uma demonstração de escalada” por parte da Rússia.
Um dos pontos centrais do anúncio de Putin sobre o novo armamento foi em relação à sua suposta capacidade de ser indefensável pelos sistemas de defesa aérea antimísseis na Europa. Segundo o presidente russo, “atualmente não existem meios para combater tais armas”.
“Os mísseis atacam alvos a uma velocidade de Mach 10, que é de 2,5 a 3 quilômetros por segundo. Os modernos sistemas de defesa aérea disponíveis no mundo e os sistemas de defesa antimísseis criados pelos americanos na Europa não interceptam tais mísseis, isto está descartado”, frisou.
De acordo com o pesquisador Pérsio Glória, esse movimento representa uma escalada do conflito e “um sinal de que a Rússia está disposta a dobrar a aposta”.
“É uma tecnologia nova. Nesse sentido, não é que vai mudar o contexto do conflito ucraniano, mas é uma demonstração de que a Rússia dispõe de tecnologias que podem ameaçar áreas que estariam teoricamente protegidas pelos sistemas de defesa antimíssil. Esse é o discurso, que é uma arma que teoricamente não pode ser interceptada. Então tem essa nova camada, de ser uma arma nova”, completa.
Desafios para a administração Trump
Apesar do uso dos armamentos ocidentais de longo alcance e do novo míssil russo nesta semana ainda não representar uma expansão do tipo de ataque na zona de combate, a retórica tanto da Rússia quanto do Ocidente apontam para o risco do conflito assumir um caráter mais global.
Ao explicar as motivações do desenvolvimento do novo míssil “Oreshkin”, Putin acusou os EUA de desmantelar o sistema de segurança internacional e “empurrar o mundo para um conflito global” com a decisão de permitir que suas armas de longo alcance sejam usadas pela Ucrânia contra a Rússia.
Para o vice-diretor do Instituto de Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, no que diz respeito ao cenário na linha de frente no leste ucraniano, isso pode fazer com que a Rússia adote “uma ofensiva mais ativa e ampla”.
“Assim como a incursão em Kursk levou ao fato de que a intensidade das ações ofensivas da Rússia em Donbass aumentou significativamente, exatamente a partir deste período. Da mesma forma, isso pode levar ao fato de que a Rússia faça ataques de retaliação na Ucrânia em lugares em que ainda não foram feitos ataques”, argumenta.
Shapovalov aponta também que “um dos motivos de tal decisão [dos EUA] é referente à política interna dos EUA”. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político afirma que a administração de Joe Biden, em vias de sair do poder, busca “criar dificuldades adicionais para o processo de participação de resolução da crise ucraniana, caso a administração de Trump vá nessa direção”.
É interessante notar que foi justamente durante a presidência de Donald Trump, em seu primeiro mandato, que foram criadas as condições para que a Rússia apostasse no desenvolvimento de novos tipos de armamento. Foi durante a presidência do republicano que os EUA se retiraram de diversos acordos internacionais relacionados ao controle de armamentos, em particular, não renovando o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, assinado com a antiga União Soviética ainda em 1987.
Esta política de Donald Trump foi encarada como um sério risco de promover uma nova corrida armamentista. Para o pesquisador Pérsio Glória, a partir deste período “a Rússia começou a desenvolver novos tipos de armamentos baseados nessas plataformas de alcance intermediário”.
Janela de moderação
Outro sinal enviado ao mundo pela Rússia após a autorização dos EUA à Ucrânia foi a aprovação da nova doutrina nuclear da Rússia, que, na prática, permite uma flexibilização dos critérios para a utilização de armas nucleares em caso de ameaça ao Estado da Rússia. Todos estes elementos mostram que a guerra passa por uma evidente escalada. Novos armamentos entraram em cena no teatro de guerra e deixaram o mundo em alerta para os riscos de uma drástica ampliação do conflito.
Ao mesmo tempo, o aumento da tensão ainda é baseado em gestos e demonstrações de força de ambas as partes, visando aumentar o poder de barganha antes de Donald Trump assumir a Casa Branca.
Um sinal de que a Rússia e os EUA ainda mantêm um espaço para a moderação cautela foi a confirmação de que houve um contato entre as partes antes da realização do ataque russo na quinta-feira (21). Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, Moscou pré-notificou a Casa Branca sobre o lançamento de um novo míssil experimental na Ucrânia através de canais diplomáticos de redução de risco nuclear entre os dois países.
A Rússia reitera que mantém o canal aberto para resolver o conflito através de negociações, mas o recado do Kremlin é claro: a paz não será possível enquanto a Ucrânia mantiver em seu poder mísseis de longo alcance que podem atingir a Rússia.
De acordo com Vladimir Shapovalov, “a atual tentativa de aumento das apostas do Ocidente para reforçar sua posição em negociações não irá funcionar, e provavelmente terá um efeito reverso”.
“Está claro que para a Rússia é inadmissível a situação da presença de países que têm tal tipo de armamento nas fronteiras ocidentais russas. Enquanto a Ucrânia tiver este tipo de armamento e permanecer a probabilidade de que estes fornecimentos irão continuar, está claro que as ações militares não terminarão”, completa.
Edição: Lucas Estanislau