O QuilomboCinema não é apenas uma tendência, mas uma ação política e cultural
*por Tatiana Carvalho Costa
"O quilombo é memória, que não acontece só pros negros, acontece pra nação. Ele aparece, surge, nos momentos de crise da nacionalidade. A nós não nos cabe valorizar a história. A nós nos cabe ver o continuum dessa história." Maria Beatriz Nascimento em "Ori".
Neste mês de novembro, pela primeira vez, celebramos o Dia da Consciência Negra como um feriado nacional. Fruto de uma luta histórica, a data de 20 de novembro lembra a morte de Zumbi dos Palmares. Em 1978, o manifesto inaugural do Movimento Negro Unificado defendia a substituição do 13 de maio pelo 20 de Novembro como data central da luta negra em referência a Zumbi como o "responsável pela primeira e única tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática, ou seja, livre, em que todos – negros, índios [sic] e brancos – realizaram um grande avanço político, econômico e social. Tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos."
Naquele final dos anos 1970, mesmo que com uma "abertura lenta e gradual", o sentimento de nação ainda estava capturado por um grupo político que dominava o país numa ditadura civil-militar. Uma ditadura que defendia o mito da "democracia racial" e que reprimia as manifestações negras contra o racismo. A ideia de Quilombo, representada pela dimensão mítica de Palmares, ganhava uma conotação, segundo Maria Beatriz Nascimento, "basicamente ideológica, basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta [...], como se reconhecendo pessoa que realmente deve lutar por melhores condições de vida, porque merece essas melhores condições de vida desde o momento em que faz parte dessa sociedade". Para a historiadora, o Quilombo representava uma possibilidade de "correção da nacionalidade", em oposição ao que tentava impor o patriotismo restrito e violento da ditadura.
Abdias do Nascimento nos lembra que "Quilombo não significa escravo fugido"”. Para o ator, dramaturgo, ativista e ex-senador, ele representa, em sua dimensão também ideológica, "uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico". Maria Beatriz Nascimento também chama a atenção para a "paz quilombola", que nos permite compreender essa organização social em sua dimensão gregária, de produtividade, acolhimento e de vida para além das lutas. Tanto Abdias quanto Maria Beatriz nos ajudam a compreender a importância emancipadora dos Quilombos no que eles representam de proposição para a existência negra fora das regras de uma sociedade racista como a brasileira sempre foi e insiste em ser. Quilombo é a nossa utopia.
A ideia de um Quilombo do Cinema Brasileiro, incorporada pela Apam, se inspira nas lutas históricas, nessa dimensão mítica, nessa utopia. No cenário atual do audiovisual brasileiro, a presença de profissionais negros tem se consolidado como um fenômeno de transformação, não apenas no campo da produção audiovisual, mas também na crítica, curadoria, pesquisa e gestão de políticas públicas. E essa presença foi sonhada por tantos outros que vieram antes de nós – no cinema e nas outras artes. A compreensão da presença negra nas imagens e sons, especialmente no Brasil contemporâneo, vai além de filmes ou indivíduos isolados. Esse fenômeno é parte de uma rede crescente de sujeitos negros no audiovisual, interconectados direta ou indiretamente, com atuação em todas as regiões do país, e com uma forte consciência de sua racialidade.
O termo "Cinemas Negros Brasileiros" faz referência a essa multiplicidade de sujeitos e práticas que formam um verdadeiro aquilombamento na indústria cinematográfica. Essa rede não se resume à realização de filmes, mas inclui também na formulação e gestão de políticas públicas focadas na ampliação do espaço para o audiovisual negro, na organização de eventos, a distribuição e exibição de produções, a gestão de plataformas de conteúdo e a participação ativa de um público negro cada vez mais engajado. Um Quilombo. Um QuilomboCinema.
O conceito de Quilombo, que evoca a resistência e a luta histórica dos negros no Brasil, é central para entender a formação e a continuidade desse movimento no cinema. Ele não se limita ao passado, mas se estende ao presente-futuro, marcando a resistência simbólica e à fabulação e proposição de novas formas poéticas, expressivas e representativas. Assim, o QuilomboCinema é um espaço de reafirmação da identidade negra, que resiste e se articula em um campo predominantemente branco, desafiando as estruturas estabelecidas.
Embora o número de profissionais negros no audiovisual ainda seja pequeno em relação à proporção da população negra no Brasil, que ultrapassa a metade da sociedade, sua presença no cinema nunca foi tão forte e impactante. Nas últimas duas décadas, essa rede tem se consolidado como uma provocação direta ao modelo hegemônico do cinema nacional, confrontando e reconfigurando as narrativas dominantes, ofertando ampliações para o imaginário coletivo. Uma "correção da nacionalidade": Cinema Negro é Cinema Brasileiro.
O QuilomboCinema, portanto, não é apenas uma tendência, mas uma ação política e cultural que se firma cada vez mais. Ele é um reflexo da luta por visibilidade, igualdade e espaço, mas também um movimento transformador, oferecendo novas perspectivas e vozes que enriquecem a diversidade da produção audiovisual do país. São gerações do presente de um futuro sonhado e inventado por Zumbi e Dandara dos Palmares.
Trechos de fala de Maria Beatriz Nascimento no filme "Ori" (dir.: Rachel Gerber, 1989), disponível no Itaú Cultural Play. Os trechos de Abdias do Nascimento estão em "O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista" (editora Perspectiva, 2020).
*Tatiana Carvalho Costa é presidente do Quilombo do Audiovisual e do Cinema Negros (Apam).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires