Rio São Francisco

EnconASA: Semiárido brasileiro avança com propostas inovadoras de convivência e sustentabilidade

10ª edição do Encontro Nacional da Articulação Semiárido foi realizada de 18 a 22 de novembro, entre Alagoas e Sergipe

Brasil de Fato | Canindé de São Francisco (SE) |

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Ato final celebrou a conquista de 40 mil novas tecnologias sociais para a convivência com o semiárido - Neto Santos / Comunicação-ASA Piauí

Às margens do Rio São Francisco, entre os municípios de Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE), cerca de 500 pessoas participaram da 10ª edição do Encontro Nacional da Articulação Semiárido (EnconASA), realizada de 18 a 22 de novembro.

O evento reuniu, em sua maioria, agricultores e agricultoras — cerca de 70% do público — e teve como objetivo fortalecer a promoção do bem viver das comunidades que habitam o Semiárido, região que abrange o Nordeste e o Norte de Minas Gerais, e correspondente a 12% do território nacional.

Organizado pela Articulação Semiárido (ASA), o encontro reforçou a centralidade da convivência com o Semiárido, uma proposta política que alia práticas sustentáveis e saberes tradicionais dos povos da região. Essa é uma abordagem que há décadas reivindica políticas públicas estruturantes.

"Conviver com o Semiárido é perguntar e ouvir da natureza, dos animais, do ambiente e das pessoas como viver bem ali”, explica o educador Naidison Baptista. 

A convivência com o Semiárido prioriza estratégias que promovam a autonomia camponesa por meio do uso sustentável dos recursos naturais. Um exemplo marcante dessa atuação é o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), criado pela ASA em 1999 e que já transformou a realidade de inúmeras famílias.

"A ASA talvez represente a melhor metodologia de trabalho social. Mobiliza a população, conscientiza e aplica recursos públicos de forma exemplar, beneficiando o povo e promovendo organização na base", elogia Gilberto Carvalho, secretário nacional de economia solidária. 

Além do acesso à água, a ASA defende outras políticas públicas, como o estoque de sementes crioulas, criação de sistemas agroflorestais e desenvolvimento de quintais produtivos. No encerramento do encontro, a Carta Política do X EnconASA reafirmou:

"A ASA, em seus 25 anos, mantém o compromisso de construir um Semiárido justo, sustentável e democrático. Convidamos a sociedade civil organizada e o governo federal a unir forças por um futuro digno para as atuais e próximas gerações."


A proposição e construção de políticas públicas para a convivência com o Semiárido conta sobre a diversidade de povos e comunidades / Neto Santos / Comunicação-ASA Piauí

Inovações para o Semiárido do futuro

Durante a programação do X EnconASA, foram apresentadas novas proposições para a convivência com o território. Uma delas é o Programa Um Milhão de Tetos Solares (P1MTS), que pretende democratizar o acesso à energia solar fotovoltaica para as famílias agricultoras.

Em uma fase piloto, o projeto quer beneficiar 4 mil famílias rurais em 60 municípios do Nordeste e de Minas Gerais durante 18 meses. O P1MTS prevê também a criação de dez fábricas-escolas para a produção dos painéis solares e outros componentes, e a capacitação de 200 jovens eletricistas. 

Para tirar o projeto do papel, a ASA estima um investimento de R$ 78,9 milhões. O orçamento previsto inclui o custeio com seleção e cadastramento das famílias, capacitação dos beneficiários e técnicos, recursos humanos, visitas de intercâmbios, produção agroecológica, ações de controle social, gestão e acompanhamento.

Assim como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), que se tornou uma referência mundial na democratização do acesso à água, a ASA espera que o estado brasileiro possa aproveitar o maior potencial de irradiação global horizontal (5,49 kWh/m²) do país, e formular uma política pública verdadeiramente inclusiva.

“O futuro das famílias do Semiárido passa por casas sustentáveis, com água de qualidade e energia acessível. Energia solar não é luxo, é uma necessidade para reduzir o peso do trabalho agrícola e melhorar a produção", defende Maria Cristina Aureliano, coordenadora geral do Centro Sabiá, uma das organizações que faz parte da rede ASA. 

Também em destaque enquanto lançamento, o X EnconASA apresentou o Programa de Saneamento Rural da Rede ASA. A iniciativa propõe avanços na utilização de tecnologias existentes e novas pesquisas na captação, uso e reúso da água. Diversas organizações estão há décadas experimentando formas de uso mais racional desse recurso fundamental a partir dos princípios da saúde das famílias e do meio ambiente. 

Nesse sentido, além da água para beber, produzir alimentos e criar animais, as proposições avançam no sentido de garantir maior qualidade para usos domésticos, como lavar roupa, banho e louça. Pela possibilidade de ajudar na redução da jornada de atividades, essas tecnologias querem garantir “a ‘água do cuidado’, que não é só uma necessidade, é um direito. Ela melhora a qualidade de vida das mulheres e contribui até para o reúso”, defende Maria Cristina Aureliano. 

Também serão implementados “Protocolos de Manejo dos Sistemas de Tratamento de Esgoto e Reúso de Águas”, assegurando a eficiência e sustentabilidade do programa através da capacitação de agricultores e agricultoras. "O desafio é grande, mas a luta por direitos e políticas públicas no Semiárido não pode parar. Então vamos à luta. Sem recursos públicos, não há como transformar essas propostas em realidade", ressalta Maria Cristina Aureliano. 


Representantes da ASA Paraíba celebraram a escolha do estado para sediar a próxima edição do EnconASA / Tarsila Guimarães - ASACom

Metodologia participativa e diversidade no X EnconASA

O público composto por cerca de 350 agricultores e agricultoras do X EnconASA se juntou a lideranças de movimentos populares, corpo técnico de organizações e gestores públicos. Foram cinco dias com plenárias autogestionadas, místicas, visitas a experiências de convivência com o Semiárido, oficinas, intercâmbios, feira de saberes e sabores, terreiro de inovações e ato público.

As atividades ecoam a diversidade de pautas de cerca de três mil organizações que atuam no território e compõem a ASA. São sindicatos rurais, associações comunitárias, cooperativas, ONGs, entre outras entidades que têm distintas naturezas, que defendem também um imaginário de viabilidade da região, diferente das antigas imagem de “território-problema”.

“Eu não sabia nem falar. Eu era aquela pessoa tímida, muda, que não falava com ninguém. Vivia triste, com a cabeça baixa, mas foi na ASA que eu encontrei espaço. Então foi a ASA que disse ‘se souber falar, fale’. Na ASA que eu encontrei esse espaço, capacitação, força, coragem e luz”, disse a agricultora quilombola Josefa de Jesus, na plenária de abertura, entre reflexões, reivindicações e cânticos para todo o público presente. 

Uma das atividades presentes nas edições do EnconASA que apoiam a troca de conhecimentos sobre a convivência com o Semiárido é o intercâmbio nas visitas às experiências. Ao todo, foram vinte visitas entre Alagoas e Sergipe.

"Aprender com os outros e compartilhar o que sabemos é mais importante que qualquer diploma. A prática no campo é essencial. Sempre digo que tragam os alunos para plantar, entender o chão", destaca Carlos Soares de Menezes, conhecido por Seu Carlinhos, que mora em Monte Alegre (SE). Ele foi um dos anfitriões da programação e recebeu cerca de 40 pessoas em sua propriedade.  

"Até fui à África compartilhar conhecimento. Foi a maior riqueza da minha vida. Um matuto como eu teve a chance de estar lá", destacou entre os muitos aprendizados compartilhados com outros agricultores, agricultoras, técnicos e lideranças de movimentos populares.  


Seu Carlinhos recebeu uma delegação de cerca de 40 pessoas, para conhecer sua experiência de convivência com o território / Neto Santos / Comunicação-ASA Piauí

Pela primeira vez, além de contemplar os povos do Brasil, a Carta política do EnconASA engloba a colaboração com os povos das regiões semiáridas da América Latina e da África representados por camponeses da Argentina, Bolívia, Burkina Faso, El Salvador, Guatemala, Honduras e México. A carta será finalizada pela comissão responsável e, em breve, divulgada oficialmente nos canais da ASA.

O documento destaca a diversidade desta edição, que teve participação de indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQIAP+, pessoas idosas, juventudes, população ribeirinha, povos e comunidades tradicionais. Nessa perspectiva, o texto valoriza o legado da convivência com o Semiárido e o fim da estigmatização da seca.

A carta ainda destaca a política pública do Programa Cisternas. A partir desse projeto de democratização do acesso à água para consumo humano vieram novas iniciativas, estas com foco na produção de alimentos e geração de renda no Semiárido, servindo de modelo para países do mundo todo.

“Sem esperança, não há resistência. E sem resistência, não enfrentamos os desafios. O EnconASA é também para alimentar essa esperança e fortalecer o nosso povo”, defende Valquíria Lima, da coordenação executiva da ASA Minas Gerais.

Brasil de Fato acompanhou o EnconASA a convite da ASA. O evento tem o apoio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), da Prefeitura Municipal de Piranhas, da Cáritas Francesa, e patrocínio da Fundação Banco do Brasil.

Edição: Martina Medina