TRABALHO DE 4 ANOS

Mobilização social e segurança pública: como a esquerda venceu as eleições no Uruguai

Comitês de base foram fundamentais para vitória de Yamandu Orsi; objetivo é aumentar programas de segurança e educação

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Yamandu Orsi e Carolina Cosse formam uma chapa entre o ex-governador de Canelones e a última chefe do executivo de Montevidéu - DANTE FERNANDEZAFP

A eleição de Yamandú Orsi como presidente do Uruguai foi marcada por um trabalho que começou muito antes da campanha eleitoral. Os 49,8% dos votos recebidos pelo candidato de centro-esquerda neste domingo (24) refletiram uma mobilização feita pelos principais partidos progressistas nos últimos 4 anos que tiveram como foco uma reaproximação com a população e uma integração profunda com os bairros e cidades uruguaias.

A coalizão Frente Ampla conseguiu superar um chavão conhecido na esquerda. O grupo fez uma profunda reformulação que teve como objetivo organizar e fortalecer as estruturas de bairro para conseguir não só retomar a credibilidade com a população, mas reforçar a organicidade com os uruguaios. E esse processo começou logo depois da derrota eleitoral de 2019, que teve Luis Lacalle Pou como vencedor. 

O primeiro passo foi a organização do 7º Congresso da Frente Ampla em 2021. A organização completava 50 anos e reuniu militantes e representantes da sociedade civil para discutir quais haviam sido os principais erros que levaram à vitória da direita no Uruguai depois de 15 anos de governos de esquerda. Chamado de Balanço e Autocrítica, o grupo encaminhou um documento elencando os principais pontos de debilidade do governo em relação a políticas sociais e diálogo com a população. 

Um dos principais pontos levantados foi o “rompimento de vínculos” com as comunidades e a necessidade de fortalecer e colocar como prioridade os chamados comitês de base. O instrumento é uma forma que os partidos de esquerda do Uruguai construíram para manter um contato permanente com todos os bairros do país, recebendo demandas e conhecendo o território com profundidade. 

A ideia é que os moradores se organizem nesses espaços para discutir não só as suas necessidades, mas também o contexto político do Uruguai, debatendo medidas do governo, do Congresso e do Judiciário e reunindo propostas para a gestão da Frente Ampla. Essa foi uma das principais ferramentas que a coalizão do ex-presidente Pepe Mujica usou para formar o plano de governo de Yamandú Orsi. 

“Os comitês de base são saídas para os bairros e uma forma de aproximação. Sempre há um representante político da Frente Ampla nos comitês. Se organizam com movimentos sociais e de vizinhos e vizinhas. É uma organização que recebe doações e tem uma estrutura política para discussão de medidas e de mobilização. Não é só ter votos, mas se informar e se aprofundar na política, para compreender os processos”, disse a militante Sandra Noe ao Brasil de Fato

Segundo o presidente de Assuntos Internacionais da Frente Ampla, Pablo Alvarez, a grande conquista nesse período foi fortalecer esses comitês para construir um ponto de virada em relação à legitimidade com a população. 

“Fizemos as eleições internas e teve um claro vencedor com Yamandú. A partir disso, percorremos todo o país, já com uma estrutura fortalecida e tendo os comitês de base como grandes pilares. Os comitês já eram uma estrutura que tínhamos e que conseguimos fortalecer. Aí está o coração da Frente Ampla e que é algo que entendemos que não se pode perder mais”, afirmou ao Brasil de Fato.  

Além do congresso e dos comitês, a Frente Ampla também abriu um canal de diálogo direto com organizações populares. O chamado Frente Ampla Te Escuta começou em 2022 e levou representantes da coalizão para 303 cidades em todo o país para ouvir dos movimentos porque eles entendiam que a esquerda havia perdido as eleições em 2019. 

Esse debate não foi feito só com a base política dos partidos, mas principalmente com empresas, agricultores, entidades religiosas, representantes comerciais, cooperativas, associações de bairro, representantes do esporte e da cultura, grupos de mulheres, dissidências políticas e sindicatos. A ideia foi compor também o programa de governo com base nessas conversas e “fortalecer o sentido de unidade”. 

Vazio da direita

O governo de Lacalle Pou foi avaliado como um alvo fácil durante a campanha, principalmente em questões de segurança pública. Com uma gestão de direita, o Uruguai viu a taxa de homicídios crescer em três anos. No primeiro ano da gestão do Partido Nacional, eram 8,9 por 100 mil habitantes. Esse dado saltou para 11,2 por 100 mil em 2023. Nas regiões noroeste e nordeste de Montevidéu, esse valor chegou a 37 por 100 mil. 

Em um país com 3,4 milhões de habitantes, o dado assustou os uruguaios, reduziu a sensação de segurança e fez com que a segurança pública se tornasse o principal tema das eleições. As propostas da Frente Ampla focaram naquilo que toca a insegurança da população. 

Abrir 2 mil vagas para polícias, aumentar o número de câmeras de vigilância para 20 mil em todo o país, instalar bases móveis para a patrulha nas ruas e melhorar os salários dos policiais. Esses foram os motes da campanha de Orsi orientada no lema: “Meus inimigos são o tráfico de drogas, o crime e a corrupção”. O tráfico de drogas também foi algo indicado como prioritário e o presidente eleito prometeu desarticular 50 facções em seu governo. 

Não só remediar as situações, a ideia de Orsi também é prevenir a partir da aplicação do programa Policiamento Orientado aos Problemas (POP), que tem como objetivo atacar as causas dos crimes.

Pablo Alvarez afirma que esse é o grande trunfo da campanha da Frente Ampla. Para ele, um governo que seja referência na segurança pública precisa focar na raíz da criminalidade e não só correr atrás para resolver algo que já se expressa na sociedade. 

“Os uruguaios têm a questão da segurança como principal ponto. O governo de direita não resolveu isso, então é uma questão central. O eixo da Frente Ampla é ser contundente contra o delito, mas também perseguir as causas que, do nosso ponto de vista, envolvem uma bateria de políticas sociais. A desigualdade é um componente central. Então é preciso trabalhar os dois lados”, disse.

Diálogo e transparência

A avaliação interna da Frente Ampla é que, além de um trabalho de mobilização e uma campanha bem executada, Yamandú Orsi também foi um trunfo para a vitória, por reunir características importantes para uma aproximação com a população, inclusive por ter sido um gestor reconhecido. 

Professor de História, Orsi foi secretário-geral do estado de Canelones por 10 anos e, de 2015 a 2024, foi governador deste mesmo Departamento. Em fevereiro, no último mês da sua gestão antes de renunciar para as eleições presidenciais, a gestão de Orsi no estado era muito muito bem avaliada. Segundo a pesquisa do instituto Cifra, 64% dos moradores de Canelones aprovavam o governo do frente-amplista, enquanto cerca de 24% desaprovam e 2% não sabiam ou não responderam.

Por causa disso, Orsi também é visto dentro da coalizão como um governante muito próximo da população e que tem a capacidade de escuta como uma das principais características. Isso foi avaliado como um ponto que deu credibilidade ao novo presidente durante a campanha.

Apadrinhado por Mujica, Orsi participou desse processo de reconstrução promovido pela Frente Ampla e viu o resultado de perto a partir de uma terceira característica bem avaliada pela direção da coalizão: o diálogo. O grupo entendeu que o presidente eleito era uma pessoa capaz de falar com todos, não só o frente-amplista, como de outros partidos.

Esse último ponto também foi fundamental para o diálogo com o atual governo, que tem casos na Justiça. O chefe de segurança de Lacalle Pou, por exemplo, foi preso em 2022 por falsificar documentos para cidadãos russos. Segundo Pablo Alvarez, a ideia é que não haja uma judicialização da política com Orsi e, muito menos, uma caça às bruxas.

“Há causas que estão sendo analisadas. Não vai ter uma caça às bruxas, não vai ter uma judicialização da política, não é o que queremos. Precisamos fazer política. O governo anterior teve graves denúncias de falta de transparência. Tudo que está relacionado com isso precisa ser feito porque é uma alta demanda. temos um conjunto de políticas concretas para saúde, condições de pobreza e política exterior também”, afirmou.

Outro ponto levantado foi a mistura entre um candidato à presidência vindo de uma região do interior, ao lado de uma vice que foi governadora da capital Montevidéu. Carolina Cosse comandou o estado de 2020 a 2024. 

Relação com vizinhos

A política externa também terá um giro no Uruguai. Se com Lacalle Pou a orientação era de fortalecer acordos com União Europeia e reduzir a participação no Mercosul, com Orsi as relações exteriores também serão diferentes. O objetivo é garantir instrumentos de cooperação na América do Sul e manter uma linha de não-ingerência nos assuntos internatos de outros países.

“A Frente Ampla tem uma visão a favor da integração, portanto, vai ser um governo nesse sentido. Isso significa promover instituições existentes. Ou seja, trabalhar o Mercosul como um dos instrumento de ancoragem mais importantes. Vamos ter uma política internacional que tenha uma sintonia com nossos vizinhos. A ideia é manter o princípio da não ingerência e a da autodeterminação, resolução pacífica dos conflitos, respeito ao direito internacional e aos direitos humanos”, disse Pablo Alvarez.

Como presidente dos Assuntos Internacionais da coalizão, ele não quis comentar como será a política específica com Brasil, Argentina e Venezuela. Alvarez, no entanto, afirmou que a relação bilateral com cada um desses países será construída a partir da posse de Yamandú Orsi.

Sucessor de Mujica

Yamandú Ramón Antonio Orsi Martínez, 57 anos, é apadrinhado pelo popular ex-presidente Mujica. Nasceu na zona rural, em uma casa sem luz, e cresceu na pequena cidade de Canelones, onde estudou em escola pública.

Em 1991, formou-se professor de História e lecionou em escolas de Ensino Médio do interior até 2005, quando iniciou sua carreira no governo de Canelones, primeiro como secretário-geral por quase 10 anos e depois como prefeito por dois mandatos.

Ele renunciou ao cargo para disputar as internas partidárias de junho, que venceu com mais de 60% dos votos, superando em muito a ex-prefeita de Montevidéu Carolina Cosse, que contava com o apoio de comunistas e socialistas e se tornou sua companheira de chapa.

Quando jovem, Orsi cuidava da loja de seus pais, foi coroinha na Igreja Católica e dançarino de folclore. Em 1989, aderiu ao Movimento de Participação Popular fundado por Mujica. Ele foi casado duas vezes, a última com a mãe de seus filhos gêmeos de 11 anos.

Com perfil moderado, diz que se prepara para ser presidente há muito tempo. No entanto, não apresentou um plano de governo antes das eleições, o que suscitou críticas. Ele também foi questionado por não participar de debates ou conceder entrevistas a diversos veículos de comunicação.

A derrota da esquerda em 2020 marcou o fim da chamada “onda rosa” de 15 anos no Uruguai, como foi chamado o período da América Latina com grande ascensão das lideranças de esquerda.

Embora o atual governo tenha uma orientação neoliberal e defenda a redução do papel do Estado na sociedade, Lacalle Pou não conseguiu revogar diversas conquistas alcançadas durante os anos de governos progressistas.

Entre as propostas de Orsi para o mandato está o estabelecimento de um diálogo amplo para reduzir as aposentadorias para 60 anos. Na saúde, a meta é ampliar o acesso a medicamentos gratuitos, e construir um hospital de referência em Montevidéu, Maldonado e na costa de Canelones. 

O objetivo para a mobilidade é ampliar as vias de tráfego rápido para transportes públicos e  implementar, até o fim da gestão, veículos elétricos. A meta é que 50% dos ônibus sejam movidos a bateria até 2028.

Na educação, Orsi propõe aumentar a quantidade e o valor das bolsas para estudantes. Segundo seu plano de governo, a gestão vai ampliar o investimento com educação para 6% do PIB e com ciência e tecnologia para 1%. Construir moradia para pessoas em situação de rua e criar 12 mil postos de trabalho para jovens por ano também estão entre as propostas de Orsi. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho