Nosso provincianismo ocidental nos tem cegado para a profunda mudança de eixo da economia global
O último dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O século XX, o Sul Global e a posição histórica da China, escrito pelo historiador da Universidade Tsinghua (Pequim), Wang Hui, um dos maiores intelectuais chineses da sua geração, é um bem-vindo remédio contra o provincianismo ocidental.
O Brasil, que - como disse recentemente o chanceler Mauro Vieira – "é um país do Ocidente", sofre dessa enfermidade política e psicossocial. E ela nos causará tanto mais mal, quanto mais insistirmos em nela chafurdar.
Nosso provincianismo ocidental nos tem cegado para a profundidade da mudança de eixo da economia global – e, portanto, da política –, que se desloca paulatinamente do Norte e do Ocidente, para o Sul e o Oriente.
A China emerge como a nova liderança do Sul Global, é responsável por quase um terço da produção industrial do mundo, dá saltos tecnológicos que já ameaçam o domínio dos países ricos do Norte, e consolida feitos históricos: como se tornar a maior potência econômica medida em PIB por paridade de poder de compra (PPC) – superando os EUA desde 2014 –, ou retirar 850 milhões de pessoas da pobreza extrema em 40 anos, segundo o insuspeito Banco Mundial.
Junta-se a isso o retorno da Rússia (quarta maior economia do mundo, em PIB PPC) como potência global, a ascensão da Índia (terceira economia), do Irã como potência regional e articulador do eixo da resistência à política genocida do Estado sionista na Palestina, da Indonésia - que o FMI projeta como sexta maior economia do mundo até o final da década –, além do dinamismo das economias do Sudeste Asiático, que vêm acumulando razoáveis taxas de crescimento anual de seu PIB/capita na última década (2012-2022), como Vietnã (4,5%) e Malásia (3,5%).
Vale lembrar que China, Rússia, Índia e Irã estão juntos na Organização de Cooperação de Xangai (OCX), bem como no BRICS, que agora também conta com Indonésia (3,1%) e Turquia (4%), além dos citados países da ASEAN. O século XXI é o século asiático - e a Rússia é cada vez menos europeia.
Mas para nós, brasileiros, essa mudança histórica é quase misteriosa. Somos basicamente ignorantes sobre a maior região do mundo. Trata-se de uma cegueira socialmente produzida, é claro. Como estamos tratando de história, peço licença para trazer um exemplo pessoal. Em 2000, me formei no Departamento de História da Universidade de São Paulo, notadamente um dos centros de excelência do ensino superior de história no país. Em nossa grade curricular, tínhamos 10 matérias obrigatórias sobre história da Europa, seis sobre Brasil, quatro sobre Américas. Mas nenhuma sobre África e nenhuma sobre Ásia.
Posteriormente, uma disciplina sobre cada uma dessas regiões foi incluída, minimizando um pouco – mas nem de longe superando – nosso desconhecimento sobre os dois continentes mais populosos do planeta. É notável o eurocentrismo de nossa formação intelectual.
Há inúmeros outros exemplos desse padrão, que reproduz um certo ponto de vista colonizado em nossa formação, ao mesmo tempo em que cria identificações profundas com uma formação social (europeia) cujos interesses nacionais tendem a não se conciliar com os nossos.
Para não falar, claro, do poder da indústria cultural estadunidense e dos sonhos de nossa elite branca de se mudar para Miami. O Imperialismo agradece. Não será fácil superar essa condição subserviente.
Mas voltemos ao dossiê e às profiláticas provocações de Wang Hui. Um historiador sempre lê a história a partir de sua própria época; a cabeça pensa onde os pés pisam. Um historiador chinês em 2024, diante da ascensão chinesa e de todo o continente asiático, não poderia interpretar a história da mesma forma que um historiador britânico nascido em 1917, apesar de ambos serem marxistas. Daí, o enorme interesse do texto da Wang Hui.
Em diálogo com o velho Eric Hobsbawm – referência obrigatória da historiografia ocidental do século passado – ele propõe releituras do "breve século XX". Se o curto século de Hobsbawm começa em 1914 – com a eclosão de uma guerra inter-imperialista – o não tão curto século de Wang Hui – que ele chama de "século das revoluções" - se inicia entre 1905 e 1911, com um encadeamento de evento asiáticos iniciados com a Guerra Russo-japonesa (1904-05), que precipita a Revolução Russa de 1905, e posteriormente a Revolução Constitucional Persa (1905-1911), a Revolução Turca (1908-1909) e a Revolução Chinesa de 1911, criando a primeira República na Ásia (ainda que tenha sido "traída" em seguida).
Diante desses acontecimentos, indaga Wang, como enxergar a Revolução Russa de 1917 somente como consequência do conflito "mundial europeu", e não também como parte da onda de revoluções asiáticas que apostaram em um duplo movimento, buscando romper o sistema imperialista e os "antigos regimes", aproveitando-se de seus "elos fracos"?
Da mesma forma, o "fim do século hobsbawniano", em 1989, com a queda do Muro de Berlim, pode ser nuançado. Não que o fim da URSS em 1991 não tenha sido a "maior catástrofe geopolítica do século XX", como gosta de dizer um famoso líder russo contemporâneo. Mas, se na época, isso teria marcado a "derrota do socialismo" e o "fim da história", como olhar para trás e reinterpretar esses acontecimentos diante do sucesso do "socialismo de mercado" ou do "socialismo com características chinesas"?
Se assim for, então o século XXI, o "longo século asiático", poderia ter começado em dezembro de 1978, quando Deng Xiaoping anunciou a Reforma e Abertura da economia chinesas, lançando as bases para a reinvenção do conceito de socialismo? O ensaio de Wang Hui nos insinua essa hipótese, que, aliás, está mais claramente exposta em uma de suas obras mais recentes: China no século XXI.
Por fim, como entender a longa marcha da construção do socialismo chinês a partir de um ponto de vista de "rupturas da continuidade"? Aqui entram em jogo as peripécias da dialética chinesa.
A China foi capaz, nos lembra nosso autor, de fazer uma revolução republicana em 1911-1912, ao mesmo tempo em que manteve a conformação geográfica e interétnica da Dinastia Qing (1636-1912), cuja unificação dos territórios han, manchu, mongol, tibetano e uigur, garantiu a imensidão espacial e populacional chinesas, uma das chaves de seu atual sucesso econômico.
A revolução socialista de 1949, liderada pelo Partido Comunista, funda a Nova China e realiza o que os nacionalistas liderados por Sun Yat-Sen haviam somente idealizado em 1911-1912, e depois em 1924.
Com uma mobilização extraordinária de forças humanas e produtivas, o país criou uma base industrial e uma força de trabalho bem-educada – além de fazer a expectativa de vida da população saltar de 35 para 67 anos entre 1949 e 1978 –, servindo de alavanca para o grande salto para o período da reforma e abertura.
Da mesma forma, diante dos impasses do modelo soviético socialista, que sofreu a derrota de 1989-1991, o PCCh articulou a conciliação de dois supostos "opostos": o socialismo e o mercado.
Na dialética entre império e república, socialismo e mercado, lá se vão quase 500 anos de paciência chinesa, guerras sanguinárias e a impressionante resiliência do PCCh, cuja construção histórica de longa duração, entre rupturas e continuidades, não só salvou o socialismo da derrota de 1989, como ajudou a criar uma base material inédita no outrora Terceiro Mundo, hoje Sul Global. Lembremos de dois dados ilustrativos:
1. Enquanto em seu auge econômico, a URSS atingiu 58% do PIB PPC dos EUA, em 2023, o PIB chinês representou nada menos do que 119% do PIB estadunidense.
2. Os países do BRICS, recém expandido pela segunda vez, devem representar cerca de 42% do PIB PPC global, comparados aos 29% do G7.
Essa base material propiciada pela ascensão da Ásia, sobretudo da China, é o combustível daquilo que Wang Hui chama de uma era "pós-metropolitana", representada hoje pelos países do Sul Global, herdeiros do Espírito de Bandung, do Movimento dos Não-Alinhados e de iniciativas como a OPEP, em sua luta por criar alternativas concretas à hegemonia atlanticista de Washington e Bruxelas, como o BRICS e a OCX.
Voltando ao nosso chão latinoamericano, cuja economia sofre de uma estagnação de ao menos três décadas, o Brasil terá que decidir em que bonde da história quer viajar. No bonde do velho mundo, do imperialismo decadente e perigoso, ávido por guerras, sanções e golpes, no qual fomos formados objetiva e subjetivamente, ou no bonde "pós-metropolitano", com nossas irmãs e irmãos do Sul Global, com todas as complexidades e contradições que essa construção exige.
Talvez nem seja um bonde, mas um trem-bala. Porém, para embarcamos nele, vamos precisar de tratamento para nosso provincianismo ocidental. Leituras da história a contrapelo, como as de Wang Hui, hão de contribuir com a nossa cura.
*Marco Fernandes é analista de geopolítica do Brasil de Fato e editor da Revista Wenhua Zongheng Internacional
Edição: Rodrigo Durão Coelho