Não sabemos para quantas nações Israel vendeu armas nos últimos 50 anos, provavelmente a maioria
O genocídio na Faixa de Gaza pode causar repulsa para milhões de pessoas no mundo, mas gera também admiração em governos interessados nas formas de controle e opressão aplicadas diariamente no território palestino. A declaração é do jornalista e autor judeu Antony Loewenstein, convidado do BdF Entrevista.
"O que vemos em Gaza é quase um modelo de como muitas outras nações querem governar seus povos e controlar populações indesejadas", disse o jornalista australiano ao Brasil de Fato.
"Um modelo de organização do conflito. Você destrói uma área, a isola, ataca as pessoas, como com os palestinos. Apesar do que possam dizer publicamente, muitos países querem seguir esse modelo."
Loewenstein é autor do livro Laboratório Palestina, que investiga como o massacre contínuo da população subjugada pode não ter trazido paz e segurança aos israelenses, mas muito dinheiro, vindo das vendas de tecnologia para ditaduras em todo o mundo. E isso desde a criação do país, em 1948, inclusive, para governos abertamente antissemitas.
"Em 1967, quando Israel assumiu o controle da Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental e das Colinas de Golã, Israel percebeu que muitos países não gostaram do que eles estavam fazendo. Eles se opuseram e disseram: 'Devolva a terra aos árabes'."
"Israel, é claro, se recusou e a forma como tentou se proteger das críticas foi entrar em contato com muitas nações para dizer: 'Podemos ajudar a resolver seus problemas. Se vocês querem 'administrar' seus grupos minoritários, seja uma comunidade indígena, muçulmanos, ou seja quem for, nós vendemos a tecnologia, ensinamos como usá-la e vendemos as armas'."
"Israel usa até hoje essa forma de comercialização de armas e também, eu diria, coerção política para se proteger. Não sabemos exatamente a quantas nações Israel vendeu armas nos últimos 50 anos, provavelmente entre 125 e 150. Ou seja, a maioria das nações do mundo."
Leia abaixo trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Recentemente, recebi a sua newsletter com o título: "Os planos de Israel para Gaza são ainda piores do que se imagina". Você poderia explicar esses planos, por favor?
Antony Loewenstein: Desde os acontecimentos de 7 de outubro de 2023, a narrativa que vem sendo usada na imprensa ocidental e provavelmente no Brasil é de que Israel estava indo para Gaza lutar contra o Hamas, destruir o grupo e talvez matar seu líder do Hamas, coisa que fizeram recentemente. A realidade, no entanto, tem sido bem diferente.
Há cada vez mais evidências de que o governo de Netanyahu pretende construir assentamentos, pelo menos no norte de Gaza. Ainda não há assentamentos, postos avançados, mas Israel está construindo a infraestrutura, as vias e muitos outros elementos para, potencialmente, trazer de volta os assentamentos.
Não veremos 50 mil israelenses mudando para Gaza na semana que vem. Mas é possível que, em 6 a 12 meses, teremos pequenos postos avançados com colonos judeus israelenses radicais morando em Gaza. Isso é em parte o que eu digo lá. Digo também, de forma breve, que Israel essencialmente destruiu Gaza. Gaza não existe mais, a vida não é possível lá. Isso não quer dizer que a população não viva lá. Eles vivem. Mas ninguém vai reconstruir Gaza de fato. Acabou.
E o meu medo, e de muitos outros que escrevem sobre isso, incluindo, é claro, palestinos, é de que o futuro a longo prazo para Gaza, para os palestinos lá, será, indefinidamente, um de "cidades de tendas". Talvez alguns prédios sejam reconstruídos em algum momento. Mas o cenário de longo prazo é bastante sombrio.
Como você vê o futuro para o resto da população sob dominação, na Cisjordânia e Jerusalém Oriental?
Repito, estou muito pessimista. Na Cisjordânia, há cerca de 3 milhões de palestinos e, mesmo já acontecendo antes, desde 7 de outubro vem aumentando a pressão para retirar fisicamente os palestinos de seus vilarejos.
Há dezenas de vilarejos beduínos, relativamente pequenos, mas significativos, que estão sofrendo limpeza étnica. Isso tem acontecido com mais frequência há cerca de 13 meses. As pessoas vão embora e não é por escolha. Elas são retiradas por soldados e aí, é claro, se tornam refugiadas em seu próprio país. Elas não têm para onde ir.
O plano de longo prazo de Israel na Cisjordânia é ter 1 a 2 milhões de colonos, se não mais. E ter o menor número possível de palestinos.
O que fazer com eles?
Tornar a vida deles tão insuportável que eles queiram sair, que tentem ir para o Egito, a Jordânia, ou para outro lugar. O plano declarado pelos ministros do governo israelense agora é que será dada uma escolha aos palestinos: "Você pode ficar aqui e viver sob o controle de Israel para sempre ou, se escolher resistir ou lutar, nós te mataremos ou te deportaremos". Esse é o futuro.
O futuro não está escrito, mas as pessoas com quem eu falei na Cisjordânia temem que o que está acontecendo em Gaza agora aconteça lá também. No meu livro Laboratório Palestina, não previ o 7 de outubro, mas no fim do livro eu falo sobre o meu medo de haver algum grande acontecimento, uma guerra, um ataque – que acabou sendo o 7 de outubro – que daria uma "justificativa" para Israel cometer outra limpeza étnica em massa.
E foi exatamente o que aconteceu em Gaza. E é o que está acontecendo cada vez mais na Cisjordânia. Um aumento massivo do assassinato de civis palestinos, incluindo crianças, nos últimos 13 meses. Acredito que a Cisjordânia ficará cada vez mais isolada.
Eu receio o novo governo estadunidense que começa em janeiro. Por exemplo, o novo embaixador dos EUA em Israel, Mike Huckabee, disse que nem acha que existam palestinos de fato. É com esse nível de racismo e desumanização que estamos lidando.
Sem pressão externa de outros países, não digo dos EUA, mas da União Europeia, das nações do Sul Global, sem pressão, sanções, boicotes sobre Israel, essa situação não vai mudar. Tem que haver algum tipo de ação de outras nações, incluindo o Brasil.
A população israelense não se incomoda de ser vista como pária? Ter uma péssima reputação?
Eu acho que os incomoda, sim. Mas Israel literalmente nunca enfrentou as consequências de suas ações. Não acho que os judeus israelenses gostem do fato de que muitas pessoas no mundo os odeiam e odeiam o que eles defendem, mas isso permite que a maioria dos israelenses se veja como vítimas eternas.
"Nós somos as vítimas eternas, independentemente do que estamos fazendo em Gaza. Nós somos as vítimas, as maiores vítimas da história, sempre seremos vítimas."
Então é uma contradição estranha. Por um lado, somos vítimas, como eles dizem. Mas, por outro lado, somos o exército mais poderoso do Oriente Médio e um dos países mais poderosos do mundo. Não podemos ser ambos.
Edição: Nicolau Soares