Coluna

Das mãos das trabalhadoras negras virá a transformação do Brasil

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Ocupando os piores postos de trabalho, mulheres negras lutam para ampliar seus direitos - Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Passados mais de 130 anos da abolição, o Brasil ainda reflete a herança de um sistema escravocrata

Por Elinoan Silva Cruz* e Levy Santos Nascimento**

Ao longo dos séculos, a população negra trava uma luta histórica pela promoção da igualdade racial, no combate às heranças do sistema escravista colonial brasileiro, marcado pelo racismo, dominação e exploração. O Mês da Consciência Negra, celebrado em novembro, é um momento importante para refletirmos sobre a relevância e contribuição política, histórica e cultural dos povos negros no Brasil. Momento também oportuno para aprofundar as reflexões sobre os desafios ainda presentes para o povo negro, especialmente no que refere ao direito de viver com dignidade, com acesso pleno à moradia, saúde, educação, cultura, trabalho e lazer.

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, em maio de 1888, numa conjuntura marcada pela resistência da elite brasileira às pressões de vários setores da sociedade e também às pressões estrangeiras – desde a luta abolicionista efervescente no Brasil no século XIX até as ameaças de segmentos da burguesia inglesa que, em estágio de desenvolvimento do capitalismo, buscavam aumentar seu mercado consumidor e barrar a concorrência de países que ainda utilizavam mão de obra escravizada.

A luta abolicionista contribuiu diretamente com a derrocada do Brasil Império. Porém, a assinatura da Lei Áurea, por si só, não foi suficiente para garantir a integração dos libertos no novo Brasil republicano. Ex-escravocratas foram indenizados pela mão de obra "perdida", mas nenhuma política de compensação ou reparação à violência perpetrada contra a população negra escravizada foi instaurada, lançando-a à própria sorte, sem acesso a terras, educação, trabalho, saúde, moradia. A falta de medidas para garantir empregos e moradia forçou muitos a viverem em condições precárias, migrando para as periferias das cidades e trabalhando como mão de obra barata, precarizada, em situações de extrema exploração e sem direitos trabalhistas.

Passados mais de 130 anos da abolição, o Brasil ainda reflete a herança de um sistema escravocrata que marca uma realidade profundamente desigual: mesmo sendo mais da metade da população brasileira (cerca de 56,7%, conforme dados disponibilizados no portal do Dieese, referente ao segundo trimestre de 2024), negros e negras continuam ocupando os piores e mais precarizados postos de trabalho, com os menores salários e enfrentando mais dificuldades para ascender profissionalmente. Além de enfrentar a exclusão do mercado de trabalho, estando entre 60% da massa de desempregados, são também a maioria dentro da informalidade, sem os direitos assegurados pela CLT.

Com a consolidação e expansão do modelo capitalista no restante do mundo, na sua prerrogativa maior do lucro acima de tudo e todos, o antagonismo de interesses da burguesia e da classe trabalhadora passou a tomar proporções cada vez maiores. Na história de nenhum país, um povo foi, por muito tempo, passivo à sua própria destruição. Foi pela luta e mobilização de trabalhadores que direitos fundamentais foram conquistados a sangue e suor, como a redução da jornada de trabalho para oito horas diárias, salário mínimo e a proibição do trabalho infantil. Nos últimos anos, enfrentamos diversas ofensivas a esses direitos arduamente conquistados e temos um desses vislumbres através da reforma trabalhista, com desmonte da CLT. Nesse retrato do Brasil contemporâneo, a escravidão ganha novos contornos e se torna fundamental para nós, esquerda brasileira, compreender essa reconfiguração das relações de trabalho ditada pelo capital para melhor nos organizarmos no seu combate e construir uma alternativa que zele pela primazia da vida.

Hoje, a jornada de trabalho 6x1 é uma das maiores expressões da precarização do trabalho no Brasil. Extremamente desgastante, consiste em seis dias consecutivos de trabalho (contando o tempo de ir e vir, muitas vezes dependente de uma mobilidade urbana para lá de precária) para um dia de "descanso", entre aspas mesmo, já que mal sobra tempo para conciliar o repouso necessário com a vida familiar, lazer, entre outras atividades essenciais para se ter o mínimo de qualidade de vida. A sobrecarga somada ao estresse constante da insegurança, do medo do salário não ser suficiente para garantir o básico no fim do mês, mesmo vivendo em prol de trabalhar (dormindo pouco, se alimentando mal e/ou às pressas, etc.) tem levado cada vez mais ao adoecimento físico e mental desses trabalhadores.

O mercado de trabalho brasileiro impõe a maior parte das vagas de trabalho mais árduas e mal remuneradas à população negra, muitos sujeitos a cargas abusivas sem os direitos e garantias trabalhistas devidos. Nesse cenário, o regime 6x1 não só é mais uma forma de exploração, mas uma realidade que torna mais grave a disparidade racial nas condições de trabalho. Pensemos a realidade de boa parte das mulheres negras: o trabalho (mal) remunerado e as tarefas domésticas, que na maior parte das vezes ficam sob sua responsabilidade. Essa dupla carga, somada à pressão de um regime 6x1, torna-se uma das principais causas do esgotamento físico e psicológico entre as mulheres negras no Brasil.

A inserção das mulheres negras no mercado de trabalho é preocupante. Elas têm menor participação e as taxas de desemprego e informalidade são mais altas entre elas do que nos demais grupos demográficos, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) de 2022.

Sendo assim, percebemos o reflexo de um processo de abolição inconclusa, que não inseriu o povo negro no mercado de trabalho, restando para essas trabalhadoras o espaço da informalidade. Quituteiras, cabeleireiros, engraxates, carroceiros são alguns dos diversos ofícios que o povo negro ocupa na informalidade desde o surgimento do capitalismo no Brasil.

Por isso, é salutar destacar o papel da informalidade no desenvolvimento do capitalismo brasileiro e apontar as formas de resistência popular que o povo vem traçando nesse contexto de neoliberalismo, a fim de exigir um trabalho digno. Iniciativas como os Pontos Populares de Trabalho do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) merecem destaque no enfrentamento ao trabalho desigual, principalmente por organizarem esse sujeito que mais sofre: as mulheres negras. Das mãos dessas trabalhadoras virá a transformação de que este país tanto precisa.

* Elinoan Silva Cruz é professora, historiadora e integrante da coordenação estadual do MTD Sergipe.

** Levy Santos Nascimento é graduando em Serviço Social, integrante da coordenação nacional do MTD e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas (Gepem) da Universidade Federal de Sergipe.

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Nicolau Soares