Para ser referência, país terá que enfrentar contradições internas em seu posicionamento climático
Por Bruna Balbi*
"Os incas tinham grande conhecimento de astronomia, medicina, matemática, entre outras coisas. Mas os invasores espanhóis tinham a pólvora. Como seria a América hoje se as coisas tivessem sido diferentes?" (trecho do filme Diários de Motocicleta - 2004)
Enquanto líderes globais negociavam o futuro do planeta na COP29, realizada entre os dias 11 e 22 de novembro em Baku, Azerbaijão, os efeitos das mudanças climáticas atingiam territórios, como a Amazônia, com força devastadora. Rios secos deixaram comunidades sem acesso a água, alimento ou transporte – para elas, o rio é tudo isso. Aliado ao calor intenso – que chegou a alcançar 5,1º acima do considerado normal em comparação aos últimos 30 anos, segundo análise do InfoAmazônia – a fumaça das queimadas e incêndios envenena o ar, agravando problemas de saúde e revelando, de forma cruel, o custo socioambiental do modelo predatório de exploração dos territórios e da natureza.
A reflexão de Diários de Motocicleta ecoa os desafios do presente. Estamos, mais uma vez, diante de uma encruzilhada histórica: reconhecer a sabedoria ancestral dos povos indígenas, quilombolas, de comunidades tradicionais e dos territórios do Sul Global como um caminho para enfrentar a crise climática ou persistir em falsas soluções que colocam o lucro acima da vida.
Os impactos vivenciados na Amazônia, no Brasil e por todo o planeta mostram que a crise climática é, na verdade, uma crise do modelo econômico e social que coloca a exploração da natureza e das pessoas acima da preservação da vida. Um modelo que prioriza o crescimento ilimitado e os lucros de poucos, enquanto destrói ecossistemas, concentra riquezas e aprofunda desigualdades. Não há como alcançar justiça climática sem enfrentar essas estruturas e seus efeitos sobre os direitos humanos. Não há justiça climática sem direitos humanos, e ignorar essa interseção é perpetuar as desigualdades que tornam os mais vulneráveis os maiores atingidos.
A COP29 expôs as contradições estruturais dessas negociações. De um lado, países do Sul Global, como Brasil, Colômbia e Índia, lideraram discussões progressistas, apontando caminhos para a mitigação e adaptação com os povos no centro. De outro, os países ricos continuam a dominar o processo decisório, repetindo lógicas coloniais que frustram compromissos reais e negligenciam o financiamento climático necessário para uma transição justa.
A meta de financiamento climático foi aprovada apenas na madrugada do último domingo (24), frustrando as expectativas dos países do Sul Global que reivindicavam um financiamento de US$ 1,3 trilhões. O acordo foi fechado com a destinação de somente US$ 300 bilhões por ano até 2035 – recurso que pode ser público ou privado, inclusive através de mecanismos de empréstimo que representam riscos de maior endividamento aos países do Sul Global.
Essa inércia dos países em avançar em um acordo ambicioso para a mitigação dos impactos climáticos coloca uma pressão ainda maior sobre a COP30, que será realizada no Brasil em 2025. Com os olhos do mundo voltados para nós, há uma oportunidade de liderar pelo exemplo. Essa conferência precisa ser um marco de inclusão, rompendo com práticas colonialistas, garantindo espaço para a participação efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais, e colocando os direitos humanos e a justiça climática no centro das decisões globais. Afinal, são essas populações que, historicamente, preservam ecossistemas essenciais e possuem os conhecimentos necessários ao enfrentamento da crise climática.
No entanto, para que o Brasil se torne referência, será necessário enfrentar as contradições internas em seu posicionamento climático. Apesar de assumir uma postura progressista em negociações globais, como as da COP29, o governo brasileiro ainda mantém posições controversas, como o apoio ao mercado de crédito de carbono, a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, bem como a morosidade e falta de orçamento destinado às demarcações e titulações de territórios de povos indígenas e quilombolas. Essas escolhas colocam em risco a credibilidade do país e a expectativa de que suas ações estejam alinhadas às demandas das populações indígenas, das comunidades tradicionais, dos movimentos sociais e da sociedade civil em geral. Se a próxima COP será lembrada como a COP das "metas climáticas ambiciosas" – como disse a Ministra Marina Silva em Baku –, que seja também a COP da transformação estrutural do sistema que decide as negociações. O Brasil tem a chance histórica de iniciar esse caminho ao incluir os povos indígenas na copresidência da conferência, conforme reivindicado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) durante a COP da Biodiversidade, em Cali. Este é um passo essencial para democratizar as decisões e colocar os direitos humanos e socioambientais no centro da agenda climática.
A crise vivenciada atualmente transcende questões ambientais: é também uma crise ética e social, que demanda a revisão do modelo que guia nossas sociedades. Para superá-la, é indispensável ouvir e aprender com os povos indígenas, com os quilombolas, ribeirinhos, beiradeiros, com as comunidades apanhadoras de flores sempre-viva e tantas outras cujas práticas e conhecimentos são fundamentais para proteger o futuro. Ainda há história por ser escrita. A pergunta que fica é: estamos prontos para fazer diferente?
* Bruna Balbi é assessora jurídica popular da Terra de Direitos.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nicolau Soares