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Breaking, dança ou esporte? Uma quebra dos paradigmas de corporalidade e de gênero

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O breaking surgiu em meados da década de 1970 nos guetos de Nova York e logo se espalhou pelo mundo - Fábio Piva/Reprodução
Somente nos anos 2000 foi perceptível uma chegada mais expressiva de mulheres em rodas de dança

Por Jefferson de Assis Fleming*

No artigo O corpo da antropóloga e os desafios da experiência próxima, a antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Silvana Nascimento discute a noção de corpo, com atenção especial à objetificação de corpos de mulheres, tendo em conta espaços e contextos em que estas estão inseridas. Estar de corpo presente – seja fazendo pesquisa, seja na rua, seja no espaço público – sempre implicou desafios empíricos muito específicos tanto entre mulheres como para o público LGBTQIAPN+ ao longo da história. A presença desses corpos desloca as estruturas que definiram gênero na história ocidental, marcando uma cisão entre os gêneros e justapondo a diversidade desses corpos em dois polos: feminino e masculino. Dessa forma, a presença do “não masculino” na vida pública incomoda, historicamente, a moral tanto cristã, como científica, tendo como única explicação de mundo “o homem como centro do universo”, o antropocentrismo.

Ser mulher em espaços públicos, entre outras coisas, é estar implicada com questões e contradições históricas e culturais. Todavia, sua presença é constantemente localizada na fronteira do “entre mundos”. Silvana destaca que, “ao começarmos com o mundo vivido dos fenômenos perceptuais, nossos corpos não são objetos para nós. Muito pelo contrário, eles são parte integral do sujeito que percebe”.

Dito dessa forma e pensando nos corpos das mulheres e nas práticas corporais da cultura hip hop, a dança conhecida como breaking vem marcada por uma masculinidade imperativa. Desde o início da cena da dança no Brasil, e em específico na São Paulo dos anos 1980, as mulheres pouco aparecem em narrativas sobre a história da cultura hip hop com recorte na dança. Prova disso está grafado no piso do Marco Zero do Hip Hop, entre as ruas 24 de Maio e Dom José de Barros, onde se verifica somente alguns poucos nomes que, a despeito da importância, acabam por não dar conta de outras pessoas que fizeram parte dessa memória.

Outro dado relevante é que não se percebem nem nomes de mulheres, nem o termo da mulher que pratica a dança breaking, “b. girl”. Muitos podem dizer o que já se convencionou no meio: “Não tinham mulheres na dança nesse período (1983-1984)”.

Ao mesmo tempo, um pouco diferente foi o que se observou na estação do metrô São Bento a partir da narrativa de alguns dançarinos da primeira geração (1985-1992). Nesse contexto, já surgiram algumas mulheres: Celina, Baby, Reka, Renata, Fernanda e Kika Maida, todas integrantes de grupos como Fantastic Force e Back Spin Crew, duas das mais antigas crews de breaking que co-fundaram o território. Essas mulheres estiveram no início da dança no metrô da estação São Bento. Contudo, são pouco citadas em entrevistas ou materiais históricos relacionados à dança de rua em São Paulo.

Pois bem, diante dessa pequena contextualização em terras paulistanas, o que é importante capturar é que ser mulher dentro de uma prática de rua não era tão comum; e, segundo, não se tinha um cenário favorável para a presença da mulher, haja vista que a noção heteronormativa era imperativa dentro da cultura hip hop. As mulheres eram aceitas, mas suas narrativas eram pouco ouvidas e difundidas. Ou seja, não era simples a nenhuma mulher nos anos 1980 se inserir num ambiente predominantemente masculino. Paradigmaticamente, a presença da mulher foi se tornando mais regular a partir de 1986. Embora sua presença tenha sido menor nesse momento, já se observam algumas mulheres que iriam inspirar gerações seguintes.

Somente nos anos 2000 foi perceptível uma chegada mais expressiva de mulheres em rodas de dança, participando de espetáculos de breaking, batalhando e competindo nos eventos com essa finalidade, a battle (batalha). No entanto, essas ainda faziam parte de crews (grupos) de homens com poucas mulheres integrantes. Tanto a chegada como a permanência de mulheres na dança cresceu gradativamente. Portanto, as lutas e conquistas das mulheres em vários âmbitos da cultura hip hop, dança, música precisam ser mencionadas. De acordo com a pesquisadora e socióloga Tricia Rose, que observa o fenômeno hip hop desde os anos 1970, as mulheres sempre estiveram na cena.

Ainda segundo Rose, "as mulheres, embora em número menor que seus colegas homens, foram membras integrantes da cultura Hip Hop muito antes da música, 'Rappers Delight' colocar o rap no cenário dominante da música popular estadunidense. A política de gênero foi uma faceta importante para o desenvolvimento do hip hop".

Rose fala da importância da presença da mulher no início da cultura Hip Hop observando o contexto dos anos 1970-1990 na cidade de Nova York. Todavia, tanto nos Estados Unidos como no Brasil a presença das mulheres continua sendo essencial para o cenário não só da musicalidade no Rap, mas para a corporalidade da mulher no Breaking, propondo assim, outras maneiras de dançar e romper paradigmas na estrutura da dança e do esporte de alto rendimento.

O fenômeno olímpico e o Breaking 

Os Jogos Olímpicos da Juventude de 2018 aconteceram em Buenos Aires, Argentina. Essa foi a terceira edição do evento e a primeira na América do Sul sem nenhum representante brasileiro(a). Na ocasião, houve a estreia do breaking, com a presença de países europeus e asiáticos em sua grande maioria, e alguns poucos sulamericanos. Os vencedores da disputa foram o russo Bumblebee (Sergei Chernyshev) e a japonesa Ram (Ramu Kawai). Foi nesse evento que o breaking pôde apresentar ao circuito olímpico as habilidades de dança ligadas às práticas esportivas de alto rendimento.

Logo, o debate em torno da dança breaking ser incluída nos Jogos Olímpicos se tornou intenso nas matérias de jornal, programas esportivos de televisão e no meio empresarial, que via formas de impulsionar suas marcas com estas novas práticas, incentivando maior presença de jovens e da diversidade nos esportes olímpicos de alto rendimento, vide a inserção do skate nos últimos jogos. Isso pode explicar um pouco a presença do Breaking como expressão da juventude e da diversidade nas olimpíadas.

Vale destacar, ainda, a presença equiparada entre os gêneros b.girls e b.boys nos Jogos Olímpicos. A disputa ocorreu entre os dias 9 e 10 de agosto de 2024, na Place de la Concorde, em Paris. Pela primeira vez na história, tivemos o mesmo número de mulheres e homens disputando uma medalha olímpica no breaking. No entanto, sem a presença de mulheres nem de homens representantes da dança brasileira.

Nem todas as mulheres, tão poucos homens

O Brasil não conseguiu ser classificado na etapa para a vaga nos Jogos de Paris. A última competição pré-olímpica ocorreu em junho de 2024 em Budapeste, Hungria, tendo como representante feminina a b. girls Mayara Collins, conhecida como mini Japa, e no masculino, Leony Pinheiro, conhecido como b. boy Leoni.

Segundo o b. boy Bispo, gerente de breaking do Conselho Nacional de Dança Desportiva (CNDD), "o Brasil tinha total condições de competir nos Jogos Olímpicos de Paris, mas, para começar, tivemos investimentos do Comitê Olímpico Brasileiro no CNDD somente em junho de 2022. Dessa maneira, começamos já com desvantagem. Outro complicador, não tínhamos árbitros nem do Brasil nem da América do Sul, a maioria europeus, asiáticos e homens, ou seja, estavam ali para garantir que seus países participassem. Na Hungria a mini Japa disputou com a Ayumi do Japão. Que pais você acha que os jurados iriam dar preferência?”

E isso não porque não tínhamos bons nomes de mulheres, a exemplo de Natana, Maya, Nayara e da própria mini Japa, mas porque não estivemos em pé de igualdade desde o início, já la nos Jogos da Juventude na Argentina.

É possível adotar uma linha histórica de compreensão dos dominados versus dominadores, em que a antiga concepção sobre um "norte desenvolvido" e um "sul subdesenvolvido" vigora ainda em nossos tempos. Tal linha de pensamento parece ter influenciado, segundo conta Bispo, nas decisões nesse circuito olímpico, ou seja, os países ditos de primeiro mundo mantiveram sua hegemonia diplomática, cultural e política dentro da estrutura dos Jogos Olímpicos, tendo Ásia e Europa como o centro do mundo.

Além disso, o breaking só pôde participar dos jogos em Paris sob condições bem desproporcionais se comparadas a outras modalidades olímpicas e esportivas. Muitas delas tinham delegações de 50 ou mais atletas no breaking, o máximo eram 16 b.boys e 16 b.girls; desses, somente dois seriam os melhores qualificados para disputar uma medalha olímpica em Paris 2024. 

O b.boy Leoni, único brasileiro que conseguiu pontuação para a final, teria que superar os melhores do mundo para conseguir se classificar em Budapeste e, assim, garantir uma das vagas para os Jogos de Paris. Mini Japa se classificou entre as top 16 mais bem colocadas, mas não conseguiu vencer a japonesa Ayumi Fukushima – a b.girl Ayumi – e ir para a final com a b.girl Ami, também do Japão.

De qualquer forma, o Brasil tem exímias dançarinas, sendo necessários mais espaços e investimentos públicos para o estímulo à prática e aos encontros voltados às mulheres. Da mesma forma, mulheres vêm presentificando cada vez mais o circuito esportivo e da dança, apropriando-se cada vez mais dos modos de fazer hip hop na contemporaneidade.

E é nessa contemporaneidade que será observada uma quebra dos paradigmas por meio da corporalidade feminina, transgênero, intersexo e negra, como se constatou no caso da polêmica entre a boxeadora argelina Imane Khelif e a italiana Angela Carini. A argelina foi questionada sobre sua feminilidade após obter a vitória sobre Carini em apenas 46 segundos. Esse debate acende a discussão novamente sobre a presunção de feminilidade nos esportes de alto rendimento e uma estrutura fortemente racializada na atribuição de quem vence e de quem é vencido. 

No Brasil, as medalhistas Rayssa Leal e Rebeca Andrade deram mostras de habilidade inquestionável no circuito olímpico, o que nos certifica a tese de que no Breaking, tal como nestas outras práticas corporais, existem dançarinas tecnicamente excelentes. Mas o que vem sendo, além dos enfrentamentos e contradições acima destacados, um dos maiores desafios a ser superado é o de ampliar a participação de mulheres, assim como da população LGBTQIAPN+ nestes espaços historicamente consagrado pelos homens para os homens. Esse é um dos maiores desafios das práticas que podem quebrar os paradigmas no esporte olímpico e na dança das ruas.

 

* Jefferson de Assis Fleming é mestre em ciências sociais e humanas pela Universidade de São Paulo, pesquisador associado ao LabNau, b.boy, locker e capoeirista.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Felipe Mendes