NEOCOLONIALISMO

'Não existe terrorismo, existe a França', afirma presidente da Organização dos Povos da África do Oeste

Philippe Noudjènoumè culpa a França por presença terrorista no Sahel e critica conluio de governo do Benim com Macron

Brasil de Fato | Enviado especial à Niamei (Níger) | |
Todos os países africanos de hoje, especialmente os países da África Ocidental, estão todos olhando na mesma direção que o povo do Sahel, diz o beninense Philippe Noudjènoumè - Pedro Stropasolas

Em 11 de agosto de 2023, duas semanas após o golpe de estado no Níger, Philippe Toyo Noudjènoumè, secretário-geral do Partido Comunista do Benin, escreveu uma carta ao presidente de seu país, Patrice Talon e fez uma pergunta precisa e simples: “quais interesses levaram o Benin a entrar em guerra com o Níger para matar de fome sua população “irmã”? 

E continuou: “Vocês querem comprometer o povo do Benin a sufocar o povo do Níger pelos interesses estratégicos da França. Eu exijo que vocês se recusem a envolver nosso país em qualquer operação agressiva contra a população irmã do Níger. Ouçam a voz do nosso povo, pela paz, harmonia e desenvolvimento do povo africano”. 

Naquele momento, ele denunciava uma situação que perdura até hoje na África do Oeste: o papel estratégico que o Benin ocupa para os interesses da França na região, inclusive permitindo a presença de militares franceses na fronteira com o Níger e Burkina Faso. 

“Infelizmente, o meu país serve hoje de base para a estratégia militar e geopolítica da França e da OTAN. De fato, assim que as forças militares francesas e americanas foram expulsas do Níger elas estão focadas no Benin e na Costa do Marfim. Os dois países supervisionam os países da AES (Aliança dos Estados do Sahel), os dois países da costa que fazem fronteira com o Níger, Mali, Burkina Faso. Eles escolheram estes dois países e, infelizmente, o meu país Benin está lá”, explica Noudjènoumè, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.

O crescente sentimento anti-França observado atualmente na população dos países do Sahel, que culminou na derrubada dos governos em Mali, Burkina Faso e no Níger nos últimos anos, aumentou depois que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) invadiu a Líbia em 2011 numa guerra supostamente para “proteger civis” e contra a continuidade do regime do líder líbio Muamar Gadafi, que estava há 42 anos no poder. 

O interesse da França na invasão da Líbia, no entanto, também era econômico. Em 2009, Kadhafi propôs que as nações africanas adotassem uma moeda única: o dinar de ouro. Isso iria permitir aos países africanos se livrar do domínio do dólar americano e, no caso da África do Oeste, também do franco da África Central (CFA) – uma moeda colonial usada em 14 países da região e controlada inteiramente pela França.

Na guerra que derrubou o líder libio, a OTAN trouxe combatentes jihadistas, como veteranos do Grupo de Combate Islâmico da Líbia, da fronteira Síria-Turquia, e encorajou outras forças jihadistas que já haviam sido derrotadas na Guerra Civil Argelina (1991-2002). 

Foi a partir do fim do conflito que um conjunto de grupos secessionistas, contrabandistas trans-saarianos e ramificações da Al-Qaeda marcharam ao sul do Saara e passaram a ocupar grandes partes do Sahel. Hoje a região também é marcada pela presença da Província do Estado Islâmico do Sahel (EI Sahel), uma ramificação do Estado Islâmico na região. 

A presença dos grupos fundamentalistas islâmicos nessa vasta área entre o deserto do Sahara e a floresta do Gabão foi a justificativa ideal para a intervenção militar francesa e americana no Sahel, com a instauração da Operação Barkhane (2013) e a criação do projeto neocolonial G-5 Sahel. 

A presença militar francesa, no entanto, não resultou em um combate efetivo dos terroristas. Pelo contrário, as denúncias são de “ineficiência” e “falta de parceria” na contenção destes grupos ao longo da última década. 


Chefes dos governos militares do Níger, Abdourahamane Tiani (c), do Mali Assimi Goita (3º à dir.) e Burkina Faso Ibrahim Traore (2º à dir.) / AFP

Atualmente, os três países se ajudam mutuamente no combate a esses grupos por meio da Aliança dos Estados do Sahel (AES), após expulsarem, com a força das manifestações de rua, os militares franceses de seus territórios. 

“Na verdade, não existe terrorismo. Existe a França. Não existe terrorismo, existe elementos criados pela França para criar insegurança nos países africanos. Eles são criados, fomentados, montados, organizados, financiados e treinados militarmente pelos franceses. E vemos que onde quer que existam bases militares francesas, o número de terroristas aumenta e suas ações se tensionam. É uma formação do imperialismo, a partir das forças da OTAN na África Ocidental”, conta Noudjènoumè . 

A ousadia para enfrentar as estruturas neocoloniais e pôr fim à submissão à França na região foi o que motivou a criação da Organização dos Povos da África do Oeste (OPAO), da qual Noudjènoumè é hoje presidente. 

Ao lado da Pan Africanism Today, a OPAO foi uma das organizadoras da Conferência Internacional de Solidariedade Anti-Imperialista com os Povos do Sahel, que ocorreu entre os dias 19 e 21 de novembro, em Niamei, capital do Niger. 

“O objetivo inicial era que o mundo conhecesse a experiência da AES (Aliança dos Estados do Sahel), todos os povos do mundo, especialmente os latino-americanos, que não conhecem. O segundo objetivo era dar confiança ao povo do Níger naquilo que estão fazendo, na realidade e na grandiosidade do que estão construindo aqui no Níger. Por último, permitir que o povo da África Ocidental faça como eles, porque esse é, de fato, o único caminho para a libertação da África”, pontua Noudjènoumè .

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Phillipe, vamos começar falando da  Conferência Internacional de Solidariedade Anti-Imperialista com os Povos do Sahel. Você pode fazer um balanço de tudo que foi visto e discutido durante os três dias? Você está contente com o resultado?

Philippe Toyo Noudjènoumè: A primeira coisa a declarar é que tem ocorrido grandes acontecimentos nos últimos três, dois anos e meio no Sahel , especialmente nos três países Mali, Burkina Faso e Níger. Um grande movimento popular está acontecendo e os governantes estão a tomar medidas patrióticas de libertação anticolonial, especialmente da colonização francesa, medidas paralelas a nível político, a nível económico, a nível cultural e a nível científico, Isso constitui uma situação nova a nível global. 

Estamos neste momento a testemunhar uma situação especial em que os países africanos conseguem se libertar da dominação estrangeira, notadamente a francesa, e das forças da OTAN. E para que essa situação se torne mais conhecida decidimos, como OPAO, e com o apoio de amigos internacionais, realizar uma conferência internacional de apoio ao povo do Sahel, em Niamei. A conferência foi organizada com o apoio do governo nigerino, que nos ajudou enormemente na preparação e organização deste evento.

Na verdade, os três dias que tivemos por aqui, do 19 ao 21 de Novembro, assistimos a uma atenção especial do governo nigerino conosco, que colocou tudo ao nosso dispor, sem contar o apoio de todo o povo nigerano. Desde a abertura desta conferência, no dia 19 de novembro, que contou com a participação do primeiro-ministro do Níger, até o último dia, onde fomos recebidos pelo Chefe de Estado, o presidente do Conselho Nacional pela Salvaguarda da Pátria, Abdourahamane Tiani. Isso mostra que são duas vontades que se uniram, a vontade dos apoiadores mundiais e a vontade dos dirigentes do Níger, para termos conseguido ter sucesso neste ciclo. 

O objetivo inicial era que o mundo conhecesse a experiência da AES (Aliança dos Estados do Sahel), todos os povos do mundo, especialmente os latino-americanos, que não conhecem. O segundo objetivo era dar confiança ao povo do Níger naquilo que estão fazendo, na realidade e na grandiosidade do que estão construindo aqui no Níger. Por último, permitir que o povo da África Ocidental faça como eles, porque esse é, de fato, o único caminho para a libertação da África. Dito isto, acreditamos que a nossa conferência foi um sucesso total


Conferência em Niamei reuniu líderes progressistas de mais de 30 países / Pedro Stropasolas

Nós observamos que a formação da Aliança do Estados do Sahel (AES) foi importante para fortalecer os países em meio às ameaças de invasão militar por parte da Cedeao.  Quais são os principais desafios para esses três países no caminho de independência e enfrentamento às forças imperialistas, sobretudo a França na região?

Na verdade, os três países têm um desafio pela frente. Os três países têm em comum uma agressão imperialista francesa por parte de elementos terroristas. Os três países, Mali, Burkina, Níger, são objeto de agressão francesa e da OTAN,  que trouxeram terroristas para criar insegurança. Esses países têm interesse em lutar juntos, em se unir contra um inimigo comum. 

Portanto, a AES (Alianças dos Estados do Sahel) é um resgate para eles. Eles reúnem suas forças militares para se defender, reúnem as suas economias, é a única maneira de vencerem e terem sucesso, de vencerem em todos os lugares. E ao fazer isso, estão ajudando toda a África a fazer como eles. E todos os países africanos olham nessa direção.

Todos os países africanos de hoje, especialmente os países que os rodeiam, os países da África Ocidental, estão todos olhando na mesma direção que o povo do Sahel. Porque todos querem fazer como eles para se libertar da dominação, digamos, imperialista, encarnada pela França e pelas forças da OTAN. Portanto, é do interesse deles se unirem. Ao se unirem, eles ficam mais fortes e são mais fortes, podem se defender melhor. 

Por isso digo isto, repito, o interesse deles está na consolidação de uma grande unidade, no fortalecimento da AES e na até mesmo na constituição de uma federação de África, permitindo espaço para integrar as estruturas militares, económicas e industriais.

Você pode explicar o que é a Organização dos Povos da África do Oeste (OPAO) e porque foi criada? 

A Organização dos povos da África Ocidental (OPAO) foi criada por revolucionários patriotas africanos da África Ocidental, com a ajuda de internacional, ajuda de outras organizações de revolucionários mundiais que nos ajudaram. Era preciso criar uma organização para reunir todas as forças revolucionários da África Ocidental, movimentos políticos, movimentos sociais, movimentos económicos, movimentos sindicais e revolucionários juntos, para criar uma força, para fazer a revolução patriótica na África Ocidental.

Essa região hoje compreende cerca de 16 países, isto é, contando também com a Mauritânia. São todos os países da CEDEAO, mais a Mauritânia que vem acima. O objetivo é consciencializar o povo da África Ocidental para a necessidade de se organizarem e lutarem para se libertarem da dominação, chamamos de dominação imperialista, em particular das forças imperialistas da OTAN

É por isso que foi criado. E trabalhamos a partir dos setores populares, pela organização dos trabalhadores da África Ocidental, a organização das mulheres, a organização de camponeses, todos juntos para ajudar a aumentar a consciência popular sobre todos os trabalhadores, agricultores, mulheres, jovens da África do Oeste, para nos permitir conjuntamente nos libertarmos. É por isso que a intervenção da AES para nós é uma coisa boa. Esta é a concretização dos nossos objetivos. Estamos felizes por estar com eles e acreditamos que outros países irão juntar-se às fileiras da AES. Outros países farão a revolução patriótica.

Agora, vamos falar do Benin. Os governos da AES e os movimentos populares da África do Oeste vem denunciando a presença militar francesa no norte do país, principalmente na fronteira do país com o Níger e Burkina Faso. Como você vê essa relação entre a França e o Benin atualmente? O país pode ser um lugar estratégico para os interesses da França na região?

Infelizmente, o meu país serve hoje de base para a estratégia militar e geopolítica da França e da OTAN. De fato, assim que as forças militares francesas e americanas foram expulsas do Níger elas estão focadas no Benin e na Costa do Marfim. Os dois países supervisionam os países da AES, os dois países da costa que fazem fronteira com o Níger, Mali, Burkina Faso. Eles escolheram estes dois países e, infelizmente, o meu país Benin está lá. 

Na verdade, desde fevereiro de 2023, o governo do Benin assinou um acordo para a instalação de bases militares francesas. É real. Foi assinado no Palácio do Eliseu [sede do governo francês, em Paris], em fevereiro de 2023, um acordo de cooperação militar para a instalação de bases militares francesas no Benin. E de fato, assim que as forças francesas foram expulsas do Níger, elas chegaram ao Benin. E posso afirmar que estas forças ainda estão no Benin hoje.

Difundidas por lá, em pequenas forças ligeiras, para apoiar as forças beninenses, nas regiões próximas das fronteiras do Níger e Burkina Faso. Benin faz fronteira com os dois países, Burkina Faso e Níger. Então eles estão lá. Isso é uma coisa séria. E, portanto, compreendo a desconfiança do governo do Níger, que não concorda em reabrir as suas fronteiras enquanto as bases militares, apoiadas pelos franceses, que estão espalhados por lá, ainda estiverem em vigor no Benin. É muito sério.


No Benin, em apoio à França, a fronteira fechada com o Níger paralisou caminhões e afetou a economia local: sanções aplicadas ao Níger após o golpe de Estado prejudicam toda a região / AFP - 

Como você vê a presença dos grupos terroristas hoje nesta região fronteiriça do Sahel?

Na verdade, não existe terrorismo. Existe a França. Não existe terrorismo, existe elementos criados pela França para criar insegurança nos países africanos. Eles são criados, fomentados, montados, organizados, financiados e treinados militarmente pelos franceses. E vemos que onde quer que existam bases militares francesas, o número de terroristas aumenta e suas ações se tensionam. É uma formação do imperialismo, a partir das forças da OTAN na África Ocidental. 

Então temos que combatê-los firmemente. E ao combater a França, ao combater, digamos, o governo francês, ao combater os falsos militares franceses, nós vamos erradicar também o problema de segurança com os terroristas. E é isso que deve tornar possível mobilizar todos os povos africanos. Isto significa que quando você foi conquistado pela guerra, você deve ser libertado pela guerra. É este o caso atualmente, esta é a guerra anticolonial que os povos da África Ocidental estão enfrentando. A chamada guerra de segurança, mas uma guerra na verdade, contra a França colonial

Presenciamos durante esses dias da Conferência, em Niamei, uma sinergia entre o governo e a sociedade civil no caminho desta ruptura anticolonial e revolucionária no Níger. Na sua opinião, qual a perspectiva de futuro para essa relação entre o povo e os militares?

O que fortalece o movimento popular no Níger é a sinergia entre os governantes e o povo. O que torna o governo forte. E notamos também que o governo está fazendo um esforço para satisfazer as reivindicações do povo, tomando medidas favoráveis ​​ao povo, reduzindo impostos, os preços dos produtos, um grande esforço para ouvir as pessoas. Portanto, como observamos, existe de fato uma sinergia entre o governo e as pessoas aqui. Penso que deve ser a mesma coisa no Mali e em Burkina Faso. Eu não estava lá para ver se isso está acontecendo, mas penso que deve ser a mesma coisa, dado o tamanho do movimento. A sinergia do governo e do povo é decisiva para qualquer revolução. 


Para fechar Philipe, gostaria que você falasse um pouco da relação dos movimentos populares na África do Oeste com o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, que esteve representado aqui em Niamei por Neuri Rossetto, também uma liderança da Assembleia Internacional dos Povos (AIP). Háespaços para parcerias entre o MST e os países da África Ocidental?

Sou um admirador. Admiro o MST no Brasil por seu trabalho formidável. Há pelo menos seis anos, desde 2018, que eu conheço o movimento. E meu desejo é que as relações se fortaleçam entre o MST e as organizações camponesas da África do Oeste. Temos coisas enormes para fazer juntos. Aqui produzimos o cacau, o café, tudo isso é brasileiro também. Em suma, temos muitas coisas em comum. Temos problemas agrários quase igualmente em comum.

Então, queremos, a nível da OPAO, inspirar-nos nas experiências do MST e reforçar as relações entre esse movimento e os povos africanos. Estamos, de fato, abertos a qualquer discussão, a qualquer troca de ideias, informações e experiências que um ou outro possa dar no contexto atual. Então desejamos que nos dias que virão possamos fortalecer as relações entre o MST e as organizações camponesas existentes na África Ocidental.

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho