Ainda cercada de tabus, a luta contra o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e a Aids ganhou um novo capítulo em Belo Horizonte, já que a Prefeitura ampliou o serviço de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao vírus e, a partir de agora, também oferece consultas nos 153 centros de saúde da cidade. Segundo especialistas e a própria população, a medida torna o debate sobre a infecção mais acessível e ainda democratiza o acesso ao tratamento.
Quanto mais locais disponíveis, menor o tempo de espera na fila, na avaliação da fisioterapeuta Giulia Ferreira, que faz uso do medicamento desde julho de 2023.
“Eu fiquei um ano e meio esperando e, na época, havia sido classificada como alto risco. Acho que, agora, a gente descentraliza esses pequenos polos que temos hoje e isso reduz o tempo. Mais pessoas utilizam a PrEP como prevenção e isso vai reduzir ainda mais os nossos números de infecção por HIV”, pondera.
Segundo os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde, mais de 1 milhão de pessoas vivem com HIV no Brasil. Desse total, 90% foram diagnosticadas, 81% das que têm diagnóstico estão em tratamento antirretroviral e 95% de quem está em tratamento antirretroviral têm carga indetectável do vírus. Este domingo (1) marca o Dia Mundial de Combate à Aids.
Anteriormente, os atendimentos para utilização do medicamento de prevenção eram prestados somente em cinco unidades de atenção especializada da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) no município. Segundo a PBH, a expansão tem como objetivo, além de facilitar e agilizar o acesso da população, fortalecer as opções de cuidado e garantir a saúde sexual.
A ação do órgão segue as diretrizes do Governo Federal sobre estratégias de prevenção ao HIV, publicadas em protocolos e notas técnicas. O Ministério da Saúde ampliou a prescrição para diversos pontos da atenção, incluindo a Atenção Primária à Saúde (APS).
PBH já registra aumento de usuários
Com a mudança, a PBH já sinalizou um aumento no número de usuários cadastrados nas Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM). Em setembro, antes da medida, estavam inscritas 3,2 mil pessoas. Em outubro, o número passou para 3,5 mil. Além disso, as dispensações saltaram de 716 em setembro para 970 em outubro.
No mês de agosto de 2024, havia 1,8 mil usuários na fila aguardando agendamento de primeira consulta. Desde setembro, a Gerência de Regulação do Acesso Ambulatorial (GERAM) realiza contato individualmente com cada usuário da fila.
“Aqueles com critério para atendimento nos centros de saúde são orientados a procurar a unidade para acolhimento e agendamento da consulta de PrEP. A fila conta agora com, aproximadamente, mil usuários e segue diminuindo gradativamente, à medida que a equipe realiza os contatos para orientação individualizada”, afirmou a prefeitura, em resposta ao Brasil de Fato MG.
A prevenção é destinada às pessoas com 15 anos ou mais, que tenham peso corporal igual ou superior a 35 kg, que sejam sexualmente ativas e que apresentem contextos de risco elevado para a infecção pelo vírus. O usuário que deseja fazer uso do medicamento deve fazer uma consulta com um profissional em seu Centro de Saúde de referência.
Tabus, sexualidade e atendimento
Para descentralizar o serviço, a PBH realizou capacitações para médicos, enfermeiros e farmacêuticos de todos os centros de saúde do município, em 10 encontros, nos meses de agosto e setembro. Ao todo, 1,4 mil profissionais foram capacitados.
Para Giulia, esse aspecto é primordial e precisa ser contínuo, já que as informações sobre a medicação não são satisfatórias para o público em geral, tampouco para diversos trabalhadores da saúde.
“Já vivenciei ser atendida por uma técnica e ela me perguntar o que era, porque ela não fazia ideia do que era. De modo geral, falta muita conscientização sobre o que é a PrEP, sobre a importância dela”, observa.
Enfermeira do SUS, Sofia Barbosa avalia que ainda há muito moralismo em relação à PrEP, visto que há uma associação presente entre o uso à promiscuidade. Para ela, o fato está relacionado, em parte, aos tabus que envolvem a sexualidade e a liberdade de viver a sexualidade da forma que as pessoas desejam.
“Acredito que, muitas vezes, essa dificuldade em aceitar vem da cultura e das vivências pessoais dos profissionais. Por isso, precisamos trabalhar para garantir que o acesso aconteça de fato. Se uma pessoa chega a uma unidade para buscar a PrEP, mas não sente acolhimento ou abertura por parte dos profissionais, isso se torna uma barreira”, chama a atenção.
Como ainda existe tabu em relação à medicação e, portanto, muitas pessoas podem se sentir inibidas ao procurar pela PrEP em seu posto de referência, considerando que aquele espaço pode estar cheio de pessoas conhecidas, o Brasil de Fato MG perguntou à PBH se há protocolo para garantir sigilo.
“O usuário que deseja iniciar a PrEP, mas tem restrição para atendimento em sua unidade por questões de sigilo, pode procurar outro centro de saúde da regional. Essa estratégia foi pactuada com as Gerências de Assistência, Epidemiologia e Regulação (GAERE) do município, justamente para garantir o sigilo e facilitar o acesso”, respondeu.
Afinal, o que é a PrEP?
A PrEP, conforme explica o infectologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mateus Westin, se baseia nos mesmos medicamentos antirretrovirais usados no tratamento das pessoas que vivem com HIV.
A diferença entre a PrEP oral como estratégia de profilaxia para prevenção do HIV e o regime de tratamento para pessoas vivendo com o vírus é que a PrEP combina dois medicamentos diferentes, o tenofovir e a emtricitabina, em um único comprimido. Já o tratamento antirretroviral clássico utiliza três medicamentos combinados, pertencentes a classes diferentes.
“Uma vez que a pessoa tem contato com vírus, ele penetra na mucosa e tenta infectar as células do sistema imune. Se a pessoa estiver utilizando a medicação da PrEP adequadamente, os tecidos e essas células do sistema imune vão estar com altas concentrações do medicamento e esse medicamento inibe a replicação do vírus”, explica.
Deste modo, continua o médico, como o vírus não consegue se replicar, automaticamente não há sua fixação no organismo, o que o impede de migrar para esconderijos, chamados de “reservatórios virais”.
“A PrEP funciona como uma barreira química interna, protegendo a mucosa das regiões genital, anal, peniana, vaginal, entre outras”, detalha.
Quem é o público usuário da PrEP?
De acordo com uma pesquisa da PBH, no ano de 2024, foi possível observar que 85% dos usuários de PrEP, na cidade, têm 12 ou mais anos de educação formal. Pessoas entre 30 e 39 anos representam 45,4% do público do medicamento. Em seguida, vem a população entre 25 e 29 anos, representando 20,8%. O público que menos utiliza é aquele menor de 18 anos, representando apenas 0,5% do total.
Em relação à orientação sexual e identidade de gênero, são os homens gays, ou homens que fazem sexo com homens, cisgêneros, a maioria entre os usuários: 90% do público da PrEP no munícipio é compreendido no grupo.
Em seguida, estão os homens heterossexuais, cisgênero, representando 2,9%. Empatadas com esse público estão as mulheres trans e travestis, representando, também, 2,9%.
O termo “grupo de risco” foi abandonado pelo vocabulário no campo do conhecimento sobre HIV/AIDS, segundo o infectologista Mateus Westin, porque o entendimento geral é de que toda a população é vulnerável ao vírus. No entanto, de acordo com ele, em boa parte do mundo, como nos Estados Unidos e na Europa, os perfis epidemiológicos são semelhantes ao brasileiro.
“É o que chamamos de epidemia concentrada, que significa que alguns segmentos da população apresentam uma prevalência maior da infecção pelo HIV e, por isso, requerem medidas de prevenção específicas e direcionadas”, explica.
No Brasil, como reforça Mateus, esses grupos incluem homens que fazem sexo com homens (HSH), ou homens gays, cuja prevalência do HIV é 30 vezes maior do que na população geral, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde.
Entre mulheres trans e travestis, a prevalência é ainda maior, variando entre 30% e 35%, o que representa um risco 70 vezes maior em relação à população geral. Já entre profissionais do sexo, a prevalência é de cerca de 5%, ou seja, 10 vezes maior do que na população geral. O mesmo ocorre com usuários de drogas injetáveis e de crack, cuja prevalência também é em torno de 5%.
“Existem explicações para a maior vulnerabilidade desses grupos, que não se restringem a questões comportamentais. Esses segmentos enfrentam altos níveis de preconceito e discriminação, além de discursos moralistas relacionados à sexualidade. Termos inadequados como "promiscuidade" reforçam estigmas, dificultando o acesso à prevenção e ao tratamento”, lembra o professor.
Além disso, segundo ele, há componentes biológicos que aumentam o risco de infecção, especialmente em práticas como o sexo anal.
“A transmissão do HIV pelo sexo anal é cerca de 100 vezes mais arriscada do que pelo sexo vaginal. Isso ocorre devido a características específicas, como microabrasões durante a relação, diferenças na mucosa e a maior presença de células do sistema imunológico na mucosa retal, que facilitam a fixação do vírus”, detalha o médico.
“Portanto, não são apenas fatores comportamentais, mas também biológicos, que elevam o risco nesses grupos, particularmente entre mulheres trans e homens gays, para os quais o sexo anal pode ser uma prática sexual predominante”, continua.
Dessa forma, acrescenta Mateus, o termo que é utilizado para designar esses segmentos populacionais é "população-chave", que se refere às pessoas mais afetadas pela epidemia concentrada e que necessitam de ações específicas, direcionadas e bem planejadas para a prevenção.
População negra também é mais vulnerável
Outro grupo vulnerável é a população negra. Segundo dados do último Boletim Epidemiológico da Saúde da População Negra, do Ministério da Saúde, as pessoas negras são maioria entre novas infecções por HIV e no adoecimento pela AIDS. Entre jovens de 15 a 29 anos, a proporção de casos em pessoas negras foi de 63,7%, no ano de 2021.
Em BH, hoje, a população parda representa 29% do público total de usuários da PrEP. Já as pessoas que se identificam como pretas, 16%. Número abaixo das pessoas brancas/amarelas, que representam 55%.
“Isso reflete mais uma dimensão do racismo estrutural existente no país, que gera uma vulnerabilidade atravessando essas pessoas. A questão racial está diretamente ligada a fatores como menor escolaridade, menor acesso aos serviços de saúde e outras desigualdades que acabam influenciando tanto a busca por cuidados quanto a oferta insuficiente do sistema de saúde”, salienta Mateus.
Para o especialista, essas desigualdades também impactam o acesso à PrEP, já que, no início da oferta da PrEP, por exemplo, 80% a 90% das pessoas que buscavam o medicamento no serviço público eram brancas, com alta escolaridade, geralmente com nível superior e alta renda.
Esse fator, segundo ele, se deve ao maior acesso dessas pessoas à informação e ao conhecimento sobre os seus direitos, enquanto, na verdade, o direito à PrEP é universal.
“Além disso, pessoas de alta renda, em geral brancas, têm horários de trabalho mais flexíveis, o que facilita o acesso aos serviços de saúde, que normalmente funcionam apenas em horário comercial”, sinaliza.
No Centro De Treinamento e Referência Em Doenças Infecciosas e Parasitárias (CTR) Orestes Diniz, vinculado ao Hospital das Clínicas e à Prefeitura, essa realidade gerou a ampliação do horário de funcionamento da farmácia até 20h30 para atender pessoas que trabalham o dia inteiro e têm vínculos de trabalho mais precarizados, dificultando a saída no meio da jornada para consultas ou retirada de medicamentos.
Conscientização entre os jovens
Em BH, o projeto PrEP 15-19, vinculado à UFMG, é uma pesquisa que avalia o uso da PrEP entre jovens de 15 a 19 anos que se identificam como gays, homens que transam com homens, mulheres trans e travestis.
Alocado no Centro de Referência da Juventude (CRJ), a iniciativa fornece atendimento psicossocial multidisciplinar, além de métodos de prevenção como gel lubrificante, camisinha e testes de HIV.
Estudos demonstram alta prevalência de infecção por HIV entre adolescentes de 15 a 19 anos, assim como uma alta vulnerabilidade e frequência de ISTs, como sensibilizou o Ministério da Saúde sobre a necessidade de incluir essa faixa etária entre os usuários do medicamento.
“Adolescentes nessa idade fazem sexo, o que é evidente, e estão mais vulneráveis porque, geralmente, se protegem menos, têm menos acesso a insumos de prevenção de barreira e acabam tendo relações sexuais de forma não planejada, sem os devidos cuidados e orientações”, lembra Mateus Westin.
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Ana Carolina Vasconcelos