Convivemos com pessoas multiétnicas, mas isso não significa que o racismo não esteja presente
A emergência de mais um caso de racismo, agora envolvendo a modelo, apresentadora e ex-passista da Gaviões da Fiel, Ana Paula Minerato, reforça o debate sobre como se expressa a discriminação racial no Brasil. Minerato teve áudios divulgados nos quais debocha do cabelo e da cor de pele de Ananda, cantora da banda Melanina Carioca.
Rincon Sapiência, considerado um dos principais nomes do hip hop nacional e referência na abordagem da questão racial por meio da cultura, acredita que casos como o de Minerato e Ananda, e consequentemente sua repercussão, revelam uma das piores faces do que ele chama de “racismo à brasileira”: a negação.
“O Brasil muitas vezes ocupa um lugar no debate racial de se abster de falar sobre o assunto. Não costuma haver grandes punições diante de crimes como esse e situações do tipo são muitas vezes tratadas como ‘desvio’ ou ‘distúrbio’”, explica o rapper, em entrevista ao programa Bem Viver desta terça-feira (3).
Para Rincon, esse cenário é fruto do ainda persistente “mito da democracia racial” na sociedade brasileira associado à falta de letramento racial da população. “Não se entende o racismo e o ato racista como algo grave, como uma falta grave”, aponta.
Logo após as denúncias, Ana Paula Minerato foi afastada pela Gaviões da Fiel. Além disso, a Secretaria de Justiça e Cidadania de São Paulo abriu um processo de investigação e Ananda registrou um Boletim de Ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) do Rio de Janeiro.
O racismo é considerado crime no Brasil desde 1989, porém, apenas no ano passado a injúria racial foi equiparada ao crime de racismo, a partir da Lei 14.532, de 2023, sancionada pelo presidente Lula (PT), que prevê pena de reclusão de três a cinco anos.
Rincon Sapiência destaca ainda que o racismo é um problema estrutural no país. Dessa forma, precisa ser combatido “na base”, ao mesmo tempo em que a aplicação das lei precisa ser mais rígida. Assim, ele acredita que episódios como o provocado por Ana Paula Minerato se tornarão menos comuns.
Leia a entrevista completa ou ouça no áudio que acompanha esta reportagem:
Brasil de Fato - O que podemos dizer sobre esse lamentável caso de racismo no Brasil?
Rincon Sapiência - O Brasil, muitas vezes, ocupa um lugar no debate racial de se abster de falar sobre o assunto, como se, por termos uma “mistura étnica”, não existissem problemas. Nunca houve a preocupação de afirmar a origem preta, por exemplo, do samba, do Candomblé e da Umbanda. Tudo acontece como se fosse “de todo mundo”, porque o Brasil é assim, “misto e misturado”.
Mas, no fim das contas, é preciso fazer essas afirmações. Porque não podemos nos abster de respeitar o legado histórico racial no Brasil.
Sobre esse caso em questão, são muitas camadas, porque a praticante das falas racistas é relacionada com uma escola de samba. Uma pessoa fazer esse tipo de fala e ser passista de uma escola de samba, que tem a sua origem preta e é cadenciada por percussão de origem africana, é como se ela usasse essa mesma origem africana para fazer as declarações racistas dela.
O Brasil tem esse caráter e esse último fato não é isolado. Convivemos com pessoas multiétnicas, mas isso não significa que o racismo não esteja presente nos espaços onde circulamos.
Ou seja, o letramento racial precisa pertencer a todos. Tem que pertencer aos pretos e às pretas, para conseguirmos nos defender. Mas precisa pertencer a todos, para que todo mundo saiba qual é o seu lugar.
Se esses áudios não tivessem vazado, é possível que Ana Paula Minerato tivesse um lugar de destaque como musa de uma escola de samba de referência e ia ficar “por isso mesmo”. É um caso de racismo típico brasileiro, infelizmente.
Você chama a atenção para esse “mito da democracia racial”, que, felizmente, já vem sendo desmistificado. Mas ainda temos o desafio de substituir a tal “democracia racial” pelo letramento racial. Ana Paula publicou um vídeo no qual assume o que fez, mas pede que as pessoas entendam que ela está passando por uma “situação difícil”. Você acredita que essa estratégia faz parte desse “conjunto brasilero” que você vinha explicando?
O racismo é normalizado também porque não se costuma exigir grandes punições diante de crimes como esse. Então, situações do tipo são muitas vezes tratadas como “desvio” ou “distúrbio”.
Não se entende o racismo e o ato racista como algo grave, uma falta grave. Como não é exigido que a pessoa se reformule e entenda que o que ela fez é horrível, acaba-se criando formas de desviar o foco.
Além disso, é preciso enfatizar algumas particularidades deste caso. A Ananda é uma garota negra de pele clara e isso evidencia outras camadas do contexto racial do Brasil. Aqui, muitas vezes, as coisas “se desenham” de forma que o negro de pele mais clara não se afirme como negro ou negra.
Mas o branco sabe quem é preto e quem é branco e, quando precisa usar disso para agir com violência, usa. O que aconteceu com a Ananda, mesmo sendo de pele mais clara, demonstra como são as relações raciais no país e como os pretos, independente do tom de pele, são violentados.
Ao mesmo tempo, é preciso salientar outro ponto, que talvez soe um pouco contraditório com o que eu disse antes, e que tem a ver com o debate sobre mestiçagem.
Há um discurso que enquadra o que muitos chamam de “pardos” ou “mulatos” na categoria de “negro”. Na mestiçagem brasileira, também existem os indígenas e uma série de grupos étnicos. Então, nem sempre quem se considera pardo é negro.
Em Manaus, por exemplo, muitas pessoas se autodeclaram pardas e, se elas fossem classificadas como negras, teriam mais negros na capital do Amazonas do que em Salvador, na Bahia. Mas, na verdade, quando eles se afirmam como pardos é porque são indígenas miscigenados.
Isso mostra como a discussão é profunda e não pode ser deixada de lado, porque existe uma complexidade muito específica em nosso país.
O que você diz é fundamental, porque reforça a importância do letramento racial. Se tivéssemos avançado nesse aspecto, esses debates não soariam tão complexos e contraditórios. O racismo não é apenas a descriminação, mas é um processo complexo, forjado há séculos, que está na base do nosso país. Ao mesmo tempo, é importante destacar que temos um mínimo arcabouço jurídico, no que diz respeito à punição ao racismo. No ano passado, a questão da injúria racial, que dialoga com o caso em questão, foi tipificado como crime de racismo, com a Lei 14.532, sancionada pelo presidente Lula. Como você avalia esse avanço?
O desafio está na implementação da legislação. A gente tem um histórico, por exemplo, de divulgação de imagens de pessoas que, a partir da leitura labial, percebemos de forma explícita elas cometendo racismo em estádios de futebol.
São pessoas que voltam a assistir aos jogos tranquilamente, que seguem as suas vidas normalmente, mesmo tendo cometido um crime previsto na Constituição.
Ajuda muito termos mecanismos constitucionais de combate ao racismo. Mas, a forma como eles são aplicados, e as “deixas” que existem, fazem com que as pessoas que praticam esse crime voltem a sua vida normal e “tudo está certo”.
Precisamos, de forma geral, olhar para o crime de racismo como uma falta grave e tomar medidas mais rígidas.
Isso chama a atenção para o “racismo recreativo”, que é quando a pessoa diz que está fazendo uma piada, mas, na verdade, está cometendo um ato racista. Para você, o que significa essa expressão do racismo e como combatê-lo?
Precisamos “cortar na base”. É justamente essa pessoa, com perfil de “cidadão”, que muitas vezes faz piada racista, que, quando chega em casa, coloca um samba para ouvir, frequenta a Umbanda, mas faz comentários racistas sobre o cabelo de alguém.
Esse é o “racismo à brasileira”, com o qual a gente convive o tempo todo. As coisas vão sendo relevadas, vão passando. Combater isso é justamente “combater na base”, enfrentando toda essa violência normalizada na raiz e trazendo o entendimento para as pessoas de que o respeito precisa acontecer de fato.
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Edição: Nathallia Fonseca