Novas narrativas precisam ser construídas sob o viés do olhar preto
A história do audiovisual no Brasil é marcada pela constante invisibilidade dos corpos negros. Nunca houve, de fato, uma preocupação com equidade e representação da comunidade negra na tela, e, ao longo da história, nos momentos em que pudemos ver a inserção de artistas negros e negras em produções cinematográficas, as mesmas quase sempre nos retratavam em postura subserviente ou de maneira estereotipada.
Mesmo Grande Otelo, um dos maiores astros do cinema brasileiro de todos os tempos, quando em cena, era quase sempre retratado como uma caricatura, com vestimentas e/ou realizando ações que o faziam ser visto como o negro infantilizado, preguiçoso, o personagem de pouca inteligência… Eram as mais diversas as reproduções de estereótipos atribuídos aos personagens interpretados pelo ator.
Com o surgimento do movimento Cinema Novo, na década de 1960, o papel do negro na sociedade começou a ganhar maior representação nos filmes. E, a partir do longa-metragem Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues, primeiro filme realizado no Brasil que trata sobre a temática afro, começaram a surgir produções audiovisuais que retratavam a história, a cultura e a ancestralidade negra no Brasil. Porém, estas obras eram, em sua grande maioria, realizadas sob o viés do olhar do homem branco.
Embora filmes como Ganga Zumba e Quilombo (1984), também de Carlos Diegues, sejam de fundamental importância para o cinema no Brasil e para a construção de um entendimento sobre a cultura e história africana e diaspórica, as mesmas não tiveram o protagonismo negro em sua idealização e realização, algo tão importante e necessário para que a nossa história seja contada de forma que reproduza também as experiências estético-afetivas e sensoriais que apenas nós, enquanto pessoas negras e que carregamos a ancestralidade africana, podemos reproduzir.
Foi Zózimo Bulbul, um dos ícones do nosso cinema, o primeiro a cunhar a importância da construção de um cinema negro no Brasil. Considerado como pioneiro do cinema negro no país, Zózimo dirigiu aquela que seria considerada a obra inaugural do cinema negro brasileiro, o curta-metragem Alma no Olho (1974). Porém, apesar de ter dirigido filmes de grande importância para o cinema no Brasil, como o documentário Abolição (1988), o nome de Zózimo ainda não tem o devido reconhecimento, sendo pouco lembrado mesmo por entre estudiosos e amantes do cinema.
Após a retomada do cinema brasileiro, ocorrida em meados da década de 1990, não houve uma preocupação com a diversidade étnico-racial brasileira, com a representação negra no cinema e com a importância da realização de filmes idealizados e dirigidos por cineastas negros e negras, pelo contrário, o que se deu foi a manutenção da reprodução de estereótipos, personagens negros sub-representados e a hegemonia de artistas brancos tanto na frente quanto atrás das câmeras.
Com o objetivo de promover um debate sobre a imagem das pessoas negras no audiovisual brasileiro, tivemos, no início dos anos 2000, dois importantes manifestos, o primeiro, lançado em 2000, foi o Manifesto Dogma Feijoada, liderado pelo cineasta Jeferson De, na época em início de carreira, e o segundo, lançado em 2001 durante a 5ª edição do Festival de Cinema do Recife, foi o Manifesto do Recife, em que diretores, atores e atrizes negros e negras, entre eles importantes expoentes do nosso cinema, como Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Antônio Pitanga, Léa Garcia, Joel Zito Araújo, Zózimo Bulbul, entre outros, defendiam o fim da marginalização de profissionais negros no audiovisual; reivindicavam a ampliação do mercado de trabalho para estes profissionais e a valorização da diversidade étnico-racial existente no Brasil.
Ainda existe, por parte de uma parcela significativa de realizadores audiovisuais do país, uma enorme dificuldade em compreender e aceitar a importância da construção de um protagonismo negro no audiovisual e a necessidade da realização de obras idealizadas e construídas (roteirizadas, produzidas e dirigidas) por pessoas negras, e isso demonstra o quanto as concepções estruturais racistas ainda se fazem presentes no setor, e o quão importante é a desconstrução de olhares hegemônicos no audiovisual, pois, desde o seu surgimento, as pessoas que tiveram a oportunidade de viabilizar suas obras, possuem gênero, cor e classe específicos: homens brancos pertencentes a uma elite socioeconômica e intelectual.
Os instrumentos e recursos orçamentários que tornam possível a realização de obras audiovisuais, sendo geridos e disponibilizados pelos mecanismos de fomento e incentivo à cultura do país, precisam ser acessíveis aos realizadores negros da mesma forma que sempre estiveram aos realizadores brancos. Precisamos interromper essa enorme desigualdade presente no audiovisual, que permite a pessoas brancas um maior e melhor acesso a estes recursos, o que acaba por contribuir para permanência da construção de narrativas que excluem o povo negro, nossa história e nossa ancestralidade.
Novas narrativas precisam ser construídas sob o viés do olhar preto, e é justamente por isso que se faz necessário o pleno acesso aos profissionais do audiovisual negro, dos mecanismos/recursos que nos possibilitem a realização de nossos filmes, séries e demais conteúdos audiovisuais com a qualidade e profissionalismo que almejamos.
O cinema negro brasileiro exerce papel fundamental para o reconhecimento e valorização da nossa história e ancestralidade, assim como para a construção da autoestima e da identidade do povo negro. A potência dos trabalhos de nomes como Grande Otelo, Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Zezé Motta, Antônio Pitanga, Léa Garcia, e mais recentemente de Lázaro Ramos, Taís Araújo e tantos outros atores e atrizes, fez com que a população negra pudesse se ver representada na tela.
O olhar de Adélia Sampaio, Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Jeferson De, e, mais recentemente, de cineastas em franca ascensão, como Camila de Moraes, Gabriel Martins, Viviane Ferreira, entre outros e outras na idealização e direção de obras audiovisuais, contribuiu e contribui para colocar em pauta, de forma permanente, a discussão da necessidade de inserção e representação negra no cinema e no audiovisual como um todo, de forma a valorizar nossa identidade e o nosso fazer artístico.
Também não podemos deixar de citar a importante contribuição social filosófica antirracista de escritores/as e filósofos/as como Kabengele Munanga, Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo e tantos outros e outras, que, através da sua arte, da sua escrita e de seus saberes e conhecimentos, ajudaram a reconstruir a história negra no Brasil, tão sofrida e marcada pela invisibilidade e exclusão.
Uma nova página no audiovisual brasileiro está sendo construída. Através das políticas de ações afirmativas desenvolvidas nas duas últimas décadas, podemos presenciar um número expressivo de cineastas negros, negras e negres tendo a possibilidade de viabilizarem seus filmes e obtendo reconhecimento por suas obras, participando e sendo premiados/as/es em festivais nacionais e internacionais de cinema. Isso demonstra o quão potente são as nossas narrativas e o quão importante é o incentivo para que elas possam continuar sendo desenvolvidas.
Não podemos parar. A construção de um cinema negro no Brasil não pode parar. Não agora. E por isso se faz emergencial a construção, promoção e consolidação dos mecanismos de incentivo que visem a valorização do cinema negro feito no Brasil.
*Ander Simões é ator, produtor, diretor e roteirista integrante do conselho editorial da Revista Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Martina Medina