Em outubro, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) ampliou o serviço de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV e, a partir de agora, também oferece consultas nos 153 centros de saúde da cidade para usuários que desejam tomar o medicamento que combate a infecção. A medida acontece perto do Dia Mundial de Combate ao HIV/Aids, que aconteceu no último domingo (1º).
Cercado de dúvidas e tabus, no entanto, o assunto ainda carece de um espaço amplo de debate na sociedade. O Brasil de Fato MG entrevistou o médico infectologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mateus Westin, que respondeu a alguns questionamentos comuns entre pessoas que desejam fazer o uso, além de explorar questões que ainda limitam a acessibilidade em torno do medicamento.
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Em BH, o especialista também integra o projeto PrEP 15-19, vinculado à UFMG, que realiza uma pesquisa para avaliar o uso da PrEP entre jovens de 15 a 19 anos que se identificam como gays, homens que transam com homens, mulheres trans e travestis.
Alocada no Centro de Referência da Juventude (CRJ), a iniciativa fornece atendimento psicossocial multidisciplinar, além de métodos de prevenção como gel lubrificante, camisinha e testes de HIV.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato MG: Como a PrEP funciona no corpo humano para prevenção do HIV? Quais as diferenças entre a PrEP e o medicamento que pessoas que já vivem com HIV tomam?
Mateus Westin: A PrEP se baseia nos mesmos medicamentos antirretrovirais usados no tratamento das pessoas que vivem com HIV. A diferença entre a PrEP oral, como estratégia de profilaxia para prevenção do HIV, e o regime de tratamento para pessoas vivendo com o vírus é que a PrEP combina dois medicamentos diferentes, o tenofovir e a emtricitabina, em um único comprimido. Já o tratamento antirretroviral clássico utiliza três medicamentos combinados, pertencentes a classes diferentes, para alcançar uma maior eficácia. No caso da PrEP, são duas substâncias de uma mesma classe que atuam na mesma etapa da replicação do vírus.
De forma simplificada, uma vez que a pessoa tem contato com vírus, o vírus penetra na mucosa e tenta infectar as células do sistema imune. Se a pessoa estiver utilizando a medicação da PrEP adequadamente, os tecidos e essas células do sistema imune vão estar com altas concentrações do medicamento e esse medicamento inibe a replicação do vírus.
Isso impede que o vírus entre em um ciclo de replicação e migre para os chamados "reservatórios virais", onde poderia permanecer escondido. Dessa forma, ocorre uma inibição precoce da replicação, bloqueando a infecção logo no início.
De maneira ainda mais simples e alegórica, a PrEP funciona como uma barreira química interna, protegendo a mucosa das regiões genital, anal, peniana, vaginal, entre outras.
Para pessoas que vão à academia regularmente e costumam fazer uso de substâncias como creatina, whey, etc, existe alguma interação do medicamento? Ou algo que deve ser evitado?
Essa é uma orientação que costuma ser feita durante as consultas, mas, de forma geral, suplementos alimentares, vitaminas, whey e creatina não têm nenhuma interação com a PrEP, ou seja, com os medicamentos utilizados na PrEP. No entanto, para pessoas que utilizam hormônios, seja hormônios anabolizantes e hormônios sexuais no processo de transexualização, a eficácia da PrEP pode ser influenciada, especialmente no tempo necessário para gerar proteção inicial.
No caso do uso contínuo da PrEP (tomar o medicamento diariamente), pessoas em processo de hormonização terão proteção garantida apenas a partir do sétimo dia de uso. Em comparação, o tempo habitual para alcançar proteção eficaz, sem hormonização envolvida, é de cerca de duas horas após a dose inicial de dois comprimidos.
Além disso, existem medicamentos como anticonvulsivantes, alguns remédios para tuberculose e anticoagulantes que podem interagir com a PrEP. Essas orientações específicas são feitas durante as consultas, conforme a necessidade de cada caso.
Se utilizada por muito tempo, a PrEP pode causar um efeito adverso no fígado ou nos rins?
Em relação aos efeitos colaterais de longo prazo, o que sabemos vem das observações em pessoas vivendo com HIV, que utilizam os mesmos medicamentos da PrEP (tenofovir e emtricitabina). O tenofovir, especificamente, está associado à perda de massa óssea (osteopenia e osteoporose) e à toxicidade renal, como redução na capacidade dos rins de filtrar impurezas do sangue. Contudo, esses efeitos geralmente ocorrem após o uso prolongado, por anos ou até décadas.
A PrEP, por outro lado, é entendida como uma estratégia de prevenção usada por períodos mais curtos, como meses ou poucos anos. Estudos em pessoas jovens, sem comorbidades como diabetes ou hipertensão, mostraram uma segurança elevada, sem impactos significativos na função renal ou óssea.
No início do uso, algumas pessoas podem experimentar efeitos colaterais leves, como náusea, dor abdominal, dor de cabeça e alterações no sono. Esses sintomas são raros, e a maioria das pessoas se adapta, com os efeitos desaparecendo nas primeiras semanas.
A segurança da PrEP é tão consolidada que, para pessoas com menos de 50 anos, sem diabetes, hipertensão ou outros problemas renais, o monitoramento da função renal pode ser realizado anualmente. Já para pessoas acima de 50 anos ou com fatores de risco, a função renal deve ser monitorada semestralmente, incluindo exames de sangue e urina.
Segundo dados do último Boletim Epidemiológico da Saúde da População Negra, do Ministério da Saúde, as pessoas negras são maioria entre novas infecções por HIV e no adoecimento pela aids. Entre jovens de 15 a 29 anos, a proporção de casos em pessoas negras foi de 63,7%, no ano de 2021. Por que a epidemia é maior entre pessoas negras? Quais podem ser boas estratégias de conscientização neste sentido?
Em relação ao recorte racial, tanto o número de novas infecções por HIV/Aids quanto a mortalidade por aids são maiores entre pretos e pardos. Essa mortalidade, inclusive, é de 10% a 20% maior do que a proporção de pessoas autodeclaradas pretas e pardas na população brasileira.
Isso reflete mais uma dimensão do racismo estrutural existente no país, que gera uma vulnerabilidade atravessando essas pessoas. A questão racial está diretamente ligada a fatores como menor escolaridade, menor acesso aos serviços de saúde e outras desigualdades que acabam influenciando tanto a busca por cuidados quanto a oferta insuficiente do sistema de saúde para atender adequadamente essas populações mais vulneráveis.
Essas desigualdades também impactam o acesso à PrEP. As pessoas pretas e pardas acessam menos a PrEP, o que é um problema. No início da oferta da PrEP, por exemplo, 80% a 90% das pessoas que buscavam o medicamento no serviço público eram brancas, com alta escolaridade, geralmente nível superior, e alta renda.
Isso se deve ao maior acesso dessas pessoas à informação e ao conhecimento sobre os seus direitos, enquanto, na verdade, o direito à PrEP é universal. Além disso, pessoas de alta renda, em geral brancas, têm horários de trabalho mais flexíveis, o que facilita o acesso aos serviços de saúde, que normalmente funcionam apenas em horário comercial.
Aqui no nosso serviço, no CTR Orestes Diniz, vinculado ao Hospital das Clínicas e à Prefeitura, tivemos que ampliar o horário de funcionamento da farmácia até 20h30 para atender pessoas que trabalham o dia inteiro e têm vínculos de trabalho mais precarizados, dificultando a saída no meio da jornada de trabalho para consultas ou retirada de medicamentos.
Apesar dessas medidas, ainda há um grande desafio e um grande déficit no alcance da estratégia de saúde pública, especialmente no que diz respeito ao recorte racial. Precisamos superar esse desafio para garantir que as populações mais vulneráveis, particularmente pretos e pardos, sejam efetivamente beneficiadas por essa importante ferramenta de prevenção.
A medicação é indicada para pessoas acima de 15 anos. No PrEP 15-19 MG, inclusive, vocês focam nesse público. No entanto, nessa idade, a maior parte dos jovens ainda depende dos pais, sobretudo em questões relativas à saúde. Vocês observaram uma boa adesão? Os pais compreendem a necessidade?
A liberação da PrEP a partir dos 15 anos é um marco importante. Inicialmente, quando foi instituída no Brasil, o acesso era permitido apenas para maiores de 18 anos. Contudo, estudos – incluindo o nosso – apontaram uma alta prevalência de HIV e ISTs entre adolescentes de 15 a 19 anos, além de uma vulnerabilidade maior devido à menor frequência de uso de insumos de barreira e menor acesso a orientações de prevenção.
Essa realidade levou o Ministério da Saúde a revisar a faixa etária para acesso à PrEP, com base em dados científicos. O estudo foi realizado em São Paulo (USP), Salvador (UFBA) e Belo Horizonte (UFMG). Em estados como São Paulo e Bahia, mais progressistas em relação a direitos sexuais e reprodutivos, foi possível implementar o uso do termo de consentimento livre e informado diretamente pelos adolescentes, respeitando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
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Em Minas Gerais, a obtenção de consentimento dos responsáveis ainda era necessária, o que gerou desafios. Muitos adolescentes enfrentam barreiras para discutir em casa assuntos como orientação sexual, identidade de gênero e início da vida sexual. Isso os impediu de acessar a PrEP em alguns casos.
Famílias que participaram do estudo mostraram tanto exemplos positivos, com apoio total aos filhos, quanto situações em que o diálogo era negado, limitando o direito dos adolescentes à prevenção. Sem acesso à PrEP, muitos acabam iniciando a vida sexual de forma desprotegida, aumentando o risco de infecção por HIV e outras ISTs.
Tomar o remédio todos os dias no mesmo horário é uma orientação bastante reforçada nas consultas. Uma possível falha da PrEP pode estar associada a esse problema, certo? Por quê? E no caso da PrEP sob demanda, a indicação é tomar quanto tempo antes do ato sexual para haver efetividade?
A adesão é um elemento central para a efetividade da PrEP. Para que funcione, é necessário tomar o comprimido regularmente, idealmente todos os dias. Pequenas variações no horário não comprometem a eficácia. Esquecer um ou dois dias na semana não causa grandes problemas, mas esquecer três ou mais dias já reduz significativamente a proteção.
É importante lembrar que esquecer doses consecutivas é mais prejudicial do que esquecer em dias alternados. No mínimo, quatro doses semanais são necessárias para manter uma eficácia razoável.
Para quem usa a PrEP sob demanda, o esquema é diferente: a pessoa deve tomar dois comprimidos de duas a 24 horas antes da relação sexual prevista. Após a relação, toma-se mais um comprimido 24 horas depois e outro 48 horas depois da dose inicial. Esse esquema é conhecido como "2+1+1". A janela de tempo entre a primeira dose e a relação é crucial – o medicamento deve ser ingerido pelo menos 2 horas e no máximo 24 horas antes do ato.
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Ana Carolina Vasconcelos