E agora?

Acordo UE-Mercosul aprofunda poder do agro e deve ser 'predatório' para indústria, diz analista

Licitações do SUS ficaram de fora, mas termos ainda não anunciados de compras governamentais preocupam

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
Presidenta da Comissão Europeia Ursula von der Leyen discursa no Uruguai - AFP

O acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, anunciado nesta sexta-feira (6) em Montevidéu deve aprofundar o poder do setor agropecuário brasileiro, mas pode ser ruim e até "predatório" para a industria nacional. A análise é do cientista político e professor de Relações Internacionais Gilberto Maringoni, da Universidade Federal do ABC.

"Não está claro ainda como é que vai ficar uma série de pontos que em que o Brasil - dos primeiros mandatos de Lula e Dilma - estava bastante descontente e preocupado, que é o das compras governamentais e de uma ação predatória na indústria, quais são as barreiras que vão ser colocadas", disse maringoni ao Brasil de Fato após o anúncio desta sexta. 

"A Alemanha vai aumentar a sua exportação, em especial de automóveis, colocando a indústria aqui instalada em sério problema. Se esses automóveis chegam com um nível de preço - por força da produtividade da indústria alemã - mais baixo, não tem porque o Brasil ter indústria automobilística, negociar com a China para trazer novas indústrias aqui", explica. 

Maringoni aponta que com o mercado aberto, seria preciso conceder "subsídios absurdos" para atrair indústrias estrangeiras ao Brasil. 

O analista ressalta que outro ponto importante a ser definido é o relativo á compras feitas por governos. Em tese, o acordo deve significar redução de impostos para empresas europeias venderem produtos ao governo brasileiro. Nesta sexta (6) foi anunciado que as compras feitas para o SUS não entram no escopo do acordo, ou seja, vendedores europeus não vão ter desconto quando comercializarem para o Sistema Único de Saúde. 

Maringoni lembra que um dos obstáculos históricos para o acordo - que era costurado desde o governo de Fernando Henrique Cardoso em 1999 - era regular essas compras. No governo de Jair Bolsonaro se chegou a anunciar um acordo, mas os blocos voltaram atrás. Esse acordo de 2019 abria as fronteiras sul-americanas para compras e licitações governamentais, sem restrições que protegessem as indústrias do bloco sul-americano.

Um setor nacional que deve se beneficiar é o da agropecuária e isso gera maior oposição de países europeus fortes no ramo, como França, Polônia, Itália e Holanda, além de movimentos populares sul-americanos e europeus. "Seus agricultores temem que a maior produtividade da agricultura em especial brasileira, especialmente no setor de proteína animal, acabe impondo uma ação predatória com seus produtos", diz o analista. 

"Daí uma série de alegações do uso de agrotóxicos - que são reais - mas a questão principal é uma concorrência por força dessa alta produtividade dos produtos da agricultura brasileira."

Indústrialização

Maringoni afirma que o acordo deve inibir ainda mais a perspectiva de reindustrialização para Brasil e Argentina.

Apesar do anúncio feito pela presidenta da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, o acordo agora precisa ainda ser ratificado pela maioria dos membros da UE para ser oficializado. França, Holanda, Polônia e Itália são contra, com Alemanha e Espanha, entre outros, a favor. 

Para o professor, a Europa se vê no meio de uma guerra comercial entre EUA e China e, com Donald Trump, deve ficar ainda mais deslocada, mais distante de seu principal parceiro, que "deve reduzir seu investimento na guerra da Ucrânia e enfraquecer a aliança com a União Europeia".

Nesse aspecto, para o analista, o acordo representaria uma salvação para a indústria do bloco europeu, em especial de seu país mais rico, a Alemanha, que está entrando em recessão.

Movimentos populares denunciam

Organizações europeias e ativistas de esquerda acreditam que o projeto vai acelerar o desmatamento da Amazônia e agravar a crise climática ao aumentar as emissões de gases de efeito estufa. O Greenpeace o classifica como um texto “desastroso” para o meio ambiente e a Via Campesina acusa o acordo de violar a soberania dos países.

Em março, movimentos de luta no campo articulados na Via Campesina repudiaram o acordo em um comunicado em que pediam a Lula que "escute o clamor dos povos do campo, águas e florestas e coloque fim às negociações em curso e dê espaço a construção de um projeto popular de desenvolvimento nacional para o Brasil".

"O acordo em pauta representa um retrocesso para o Brasil e para os países do Mercosul no âmbito do desenvolvimento socioeconômico, bem como um ataque frontal à soberania dos nossos países", destaca o comunicado. Os movimentos populares destacam que o acordo foi "foi rechaçado há mais de 20 anos" e o texto atual, retomado em 2019, representa "o DNA bolsonarista na sua essência sem nenhum compromisso com o desenvolvimento do nosso país."
 
"O acordo assume caraterísticas neocoloniais na sua concepção e ameaça, em seus termos, nossos povos e territórios, ameaça a agricultura camponesa, as comunidades tradicionais e entrega nossos bens comuns aos interesses do capital internacional, consolidando assim o caráter agroexportador da nossa economia, que é basicamente continuar exportando matéria-prima para abastecer as demandas dos países europeus em troca dos produtos industrializados."
 
A desregulamentação dos mercados, os acordos de livre comércio e, em particular, a negociação do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul são as principais causas da grave crise enfrentada pelos agricultores europeus na avaliação da Via Campesina.

Edição: Lucas Estanislau