A final da Libertadores é um espetáculo que transcende fronteiras físicas e simbólicas
No dia 30 de Novembro de 2024 a cidade de Buenos Aires, capital da Argentina, recebeu a partida final da Copa Libertadores da América. Para os desavisados de plantão, a Libertadores é, talvez, o maior e mais importante torneio de clubes da América do Sul, uma vez que possui não apenas um elevado nível de competitividade esportiva, mas representa a paixão social e cultural pelo futebol que une o continente. Assim, mais do que um mero jogo, a final da Libertadores é um espetáculo que transcende fronteiras físicas e simbólicas.
Dessa forma, as equipes Botafogo e Atlético Mineiro protagonizaram uma disputa emocionante e histórica que certamente será lembrada por alguns lances como, por exemplo: o jogador Gregore, que foi expulso de campo nos trinta primeiros segundos da partida ou pelo gol marcado por Junior Santos, nos últimos 30 segundos da prorrogação do segundo tempo. Diga-se, de passagem, que ambos são jogadores do Botafogo. De qualquer maneira, as emoções não ficaram restritas apenas ao campo, aos lances ou aos 22 jogadores; ela viajou 38 horas, por três mil quilômetros, no coração do casal de torcedores botafoguenses, Ana (30 anos) e Dudu (33 anos).
Ana e Dudu se conheceram no ano de 2021, durante a Pandemia de Covid-19. Inicialmente conversaram por aplicativo de mensagens e depois de algum tempo resolveram que era o momento de marcar o primeiro encontro presencial. Este aconteceu em um parque ao ar livre, onde Ana costumava fazer suas caminhadas no final de cada dia. Ana me disse que “assim que nos conhecemos, uma das primeiras perguntas que Dudu me fez foi para saber para qual time eu torcia. Eu parei, olhei e devolvi a pergunta na hora: para qual time VOCÊ torce?”. O match estava feito, para além de outras questões em comum, ambos eram igualmente apaixonados e torcedores do Botafogo.
No dia 28 de Novembro, dois dias antes da final, quando nos encontramos no Gambino Bar – um bar temático brasileiro localizado na rua Carlos Gardel, em Buenos Aires – Ana e Dudu me contaram um pouco dos preparativos da viagem. Segundo eles, tão logo o Botafogo ganhou de 5 a 0 do Peñarol, em 23 de outubro, ambos sabiam que teriam que vir à Argentina para acompanhar de perto a final.
Como já haviam passado a virada de ano em terras porteñas, resolveram repetir a viagem de carro, percorrendo a distância entre Brasília, onde moram e trabalham, até Buenos Aires, onde assistiram a final. Ana relatou que gastaram, em cada ingresso, um pouco mais de mil reais e fez uma ressalva: “Eu não pagaria esse valor para assistir nenhum artista, seja brasileiro ou estrangeiro. Mas já pelo Botafogo...”. Absolutamente tudo vale a pena quando se trata do time do coração.
A viagem durou dois dias e foram feitas algumas paradas ao longo do caminho. Na fronteira que separa Brasil e Argentina, precisaram lidar com algumas “burocracias”. Os policiais argentinos informaram que aplicariam uma multa porque o carro do casal não possuia extintor de incêndio. Convém lembrar que no ano de 2015, o Contran decidiu que os veículos de passeio brasileiros não precisam mais carregar o equipamento. Mas não parou por aí. Os policiais argentinos prosseguiram informando que tudo se “negocia” e assim ofereceram a oportunidade ao casal de contribuir espontaneamente com alguma quantia em dinheiro para evitar a aplicação da multa. Dudu, entre risos, falou que já sabia que isso aconteceria. Assim, por precaução, ele e Ana deixaram, cada um, três notas de 10 reais dentro da carteira. Depois de pagar 60 reais ao policial, foram liberados para entrar no país.
No dia 30 de Novembro, sábado, nos encontramos outra vez. Fomos almoçar antes da partida, que iniciaria às 17h no Estádio Más Monumental, que é o maior estádio da Argentina e da América do Sul, com capacidade para quase 85 mil lugares. O primeiro restaurante que escolhemos estava fechado, atendendo exclusivamente os torcedores do Atlético Mineiro. Caminhamos mais algumas quadras e nos sentamos em uma pizzaria simpática que atendia tanto atleticanos quanto botafoguenses. Ali almoçamos, conversamos e rimos um pouco antes da partida. Cada vez que um grupo de torcedores passava pela calçada fazia questão de gritar para dentro do estabelecimento, assim ora ouvíamos gritos de “Galo”, ora ouvíamos gritos de “Fogo”. Apesar das provocações entre torcedores brasileiros, a animosidade ficou por conta da vizinhança portenha que, de dentro dos seus apartamentos, atiravam baldes de água (assim esperamos!) nos torcedores brasileiros que caminhavam na calçada em direção ao estádio.
Desde que me mudei para Buenos Aires para fazer meu estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Buenos Aires, no começo deste ano, me propus assistir tantos jogos de futebol quantos fossem possíveis. Afinal, futebol (independente da equipe que joga) faz parte dos meus interesses particulares e também de pesquisa. Para esta final de Libertadores acabei comprando os ingressos mais baratos que encontrei e assim assisti a partida entre os torcedores do Atlético Mineiro. Pouco antes de nos separarmos para assistir o jogo, perguntei à Ana e Dudu por que resolveram viajar tão longe e por tanto tempo só para ver o Botafogo jogar.
Ana explicou, evocando passagens, memórias e cenas que apenas um torcedor verdadeiramente apaixonado por seu time consegue compreender: “Eu como botafoguense, vim porque a gente nunca viveu isso. Meu avô era botafoguense. Meu pai, que eu perdi na Pandemia, era botafoguense. Acompanhar o Botafogo durante meus trinta anos de idade fez com que eu investisse tudo o que eu tinha para estar aqui nesse momento. Eu brinco com o Dudu que não há preço para ver a história sendo feita, e talvez hoje a gente veja nossa história sendo feita”.
Perguntei então quais eram as expectativas para o jogo e Ana seguiu falando: “Mari, são as melhores possíveis! E é uma expectativa de certeza da vitória, mas também certeza de que o que vivemos nos últimos três dias aqui, independente do resultado, é inesquecível. É uma coisa que eu vou desejar que meus filhos vivam, que meus netos e bisnetos vivam. Isso aqui não tem preço”, diz ela enquanto aponta para os demais torcedores do Botafogo. “É uma história que passa de pai para filho e para filha”, completa.
Nesse momento Dudu, que também perdeu o pai botafoguense durante a Pandemia, estava com lágrimas nos olhos. A emoção não o deixou falar ou sequer responder às minhas perguntas. Enquanto escrevo esse texto compreendo que, naquele momento, não eram necessárias quaisquer palavras para se comunicar ou se fazer entender. Os silêncios guardam verdades profundas. E como é próprio dos amores que se bem entendem em silêncio, Dudu concordou acenando a cabeça e olhando para Ana lhe deu um abraço e um beijo repletos de cumplicidade. Se aproximava a hora de procurarmos nossos portões de entrada. Sorri, abracei-os e desejei um jogo inesquecível.
Felizmente meu desejo se tornou realidade, pois ainda que Gregore tenha sido expulso com apenas 30 segundos iniciais de jogo, a equipe conseguiu marcar três gols contra apenas um gol do Atlético Mineiro. Assim, pela primeira vez, o Botafogo sagrou-se campeão da Copa Libertadores da América e Dudu e Ana puderam ver, diante dos seus olhos, a história botafoguense sendo feita.
Ao final da partida consegui encontrá-los e acompanhar as celebrações pela vitória até as 5h da manhã do dia seguinte. A cada grupo de torcedores botafoguenses que passavam por nós nas ruas de Buenos Aires, Dudu ou Ana faziam a mesma pergunta “Você é campeão da América?”. Ao que eram recebidos com abraços calorosos, gritos de “Fogo” e sonoras respostas: “Eu sou e você também!”.
Os momentos de celebração e as interações vividas nesse pós-jogo por si só dariam outro texto para esta coluna. Contudo, o que quero destacar aqui é que a história de Ana e Dudu não é apenas sobre viajar três mil quilômetros, passar alguns perrengues no meio do caminho e viver uma final exitosa da Copa Libertadores. O que já seria bastante. A história deles nos faz ir além, pois fala de conexões que somente o futebol pode proporcionar.
A primeira conexão que podemos destacar é aquela que diz respeito aos significados do torcer. Ser torcedor é mais do que acompanhar diariamente um time, comprar camisetas e/ou fazer parte de torcidas organizadas. Ser torcedor é também carregar consigo uma espécie de herança ou tradição familiar, que é passada e atravessa gerações, ou seja, de avôs-pais e avós-mães para netos-filhos e netas-filhas. Ana e Dudu trouxeram para Buenos Aires não apenas sua enorme paixão pelo Botafogo, mas também as memórias futebolísticas vividas em conjunto com seus pais e avós e tudo aquilo que elas representam na construção de suas identidades enquanto torcedores. Nas comemorações pós-jogo, inclusive, foi momento de relembrar às vezes que eles assistiram partidas do Botafogo juntos com seus pais, seja através da televisão ou nos estádios.
Na experiência de Ana e Dudu, torcer para o Botafogo, na final da Libertadores em Buenos Aires, se tornou também ato de pertencimento, de amor, de memória, de conexão com o passado e com os familiares que já não estão mais presentes fisicamente. Por um lado, torcer foi o elo que os reconectou com partes das suas histórias pessoais, por outro lado foi algo que os ligou a um propósito coletivo mais amplo. Quando Ana aponta para os outros botafoguenses na entrada do estádio, ela reforça que o futebol não é apenas espaço de lazer, mas também local para criar uma narrativa compartilhada que conecta o passado, o presente e o futuro de cada torcedor, unindo histórias individuais em uma grande trama coletiva.
Uma segunda conexão que emerge da experiência de Dudu e Ana, é pensar que o futebol é um esporte que transcende barreiras, sejam elas idiomáticas, culturais e até mesmo geográficas. Torcer pelos nossos times do coração é uma experiência de pertencimento que não se mede por distâncias percorridas ou recursos investidos. Quando Ana e Dudu cruzaram três mil quilômetros para ver o Botafogo disputar sua primeira final de Libertadores, eles não estavam apenas seguindo um time; estavam reafirmando o valor do que representa ser botafoguense – uma identidade que carrega histórias de vida, legados familiares e sonhos compartilhados. Essa jornada mostra que, para quem ama futebol, os conceitos de "longe" ou “impossível” deixam de existir.
Por fim, uma terceira conexão que podemos destacar, e que para mim é a mais importante, é que o futebol não é um mero esporte, mas antes um fenômeno cultural que carrega em si manifestações emocionais fortes e muito poderosas. O futebol possui linguagem única, capaz de transformar estádios e arquibancadas em territórios de conexão humana e celebração coletiva, assim nos oferece um espaço onde os sonhos, as histórias de família, as identidades individuais e as coletivas se entrelaçam. No abraço emocionado e silencioso de Dudu, é possível perceber uma síntese das muitas emoções vividas por torcedores e torcedoras: o amor, nem sempre precisa se expressar através de palavras, às vezes tudo o que o amor precisa é de uma bola rolando em campo, de fé, de uma pitada de loucura e de uma paixão inabalável.
Aos meus queridos amigos Ana e Dudu, Campeões da América, é tempo de Botafogo!
* Mariane Pisani é antropóloga e professora na Universidade Federal do Piaui
** Este é um texto de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca