Um homem morto em frente a uma loja Oxxo e outro arremessado do alto de uma ponte colocam mais uma vez em xeque a formação dos policiais militares no estado de São Paulo. Do início de janeiro ao dia 3 de dezembro deste ano, 712 pessoas foram mortas por policiais militares do estado de São Paulo, segundo dados do Ministério Público.
O número já representa 54,8% a mais do que o registrado ao longo de todo o ano passado, quando 460 pessoas morreram. Se comparados os números do mesmo período, foram 409 mortes até 3 de dezembro do ano passado, um aumento de 74% em relação ao mesmo período deste ano.
Dos assassinatos registrados até agora, 608 foram praticados por policiais no horário de serviço, e 104, por agentes em folga. O total representa uma média de duas pessoas mortas pela polícia por dia.
Mas qual é o momento em que o agente da Polícia Militar se torna um assassino? Especialistas ouvidos pela reportagem associam o nascimento da disposição homicida especialmente ao “tirocínio”, ou seja, o momento em que o indivíduo é exposto ao exercício prático da profissão e moldado pelos valores compartilhados pelos veteranos, mais conhecidos no meio como “dinossauros”.
Nesse momento, o policial aprende quem são os alvos, internaliza quais devem ser as suas aspirações no meio policial e coloca à prova os sinais de bom comportamento que são incutidos diariamente. É a combinação desses fatores que vai dar vida ao "bom policial", aquele que não se intimida diante da lei e que acredita no uso da violência letal como ferramenta para controlar a criminalidade.
Em São Paulo, o policial reconhecido entre os seus pares é chamado de Billy, em referência a Billy the Kid, o pistoleiro e ladrão que ficou famoso por supostamente ter matado uma pessoa por cada um dos seus 21 anos de vida, no século 18, nos Estados Unidos. Para o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), trata-se de uma “expressão de bom humor”, como escreveu em seu perfil no Facebook em 2018.
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Público (FBSP) explica que a formação acadêmica não é necessariamente o momento de constituição dessas práticas abusivas. “O currículo da formação policial tem se transformado muito ao longo do tempo e não coaduna com essas práticas. Na verdade, as práticas abusivas vêm de um momento posterior, quando o policial vai para a rua com os colegas”, afirma.
Discursos que se materializam em violência
Aos valores e comportamentos assimilados no cotidiano, somam-se os discursos propagados pelo governador e secretário de Segurança Pública que balizam até onde os policiais estão autorizados a ir nos confrontos com os alvos. Guilherme Derrite, que é chefe das polícias no estado, chegou a afirmar, em entrevista a um canal do YouTube em maio de 2021, que foi afastado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) devido ao excesso de mortes de civis enquanto em serviço.
"A real? Porque eu matei muito ladrão. A real é essa, simples. Pá! Tive muita ocorrência de troca de tiro, eu ia para cima. Quem vai para cima, está sujeito. Troquei tiro várias vezes, uma atrás da outra e isso acabou incomodando, não sei quem, mas veio a ordem de cima para baixo, questão política: ‘Tira o Derrite da Rota’. E fui convidado a me retirar."
Na mesma toada, em meio às mortes provocadas pela Operação Escudo na Baixada Santista, Tarcísio ironizou as denúncias de letalidade e os abusos cometidos por policiais feitas ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
“Nossa intenção é proteger a sociedade. Nós estamos fazendo o que é correto, com muita determinação e profissionalismo. Sinceramente, eu tenho muita tranquilidade com relação ao que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não estou nem aí”, disse Freitas em março.
Porém, os posicionamentos não ficam só no âmbito nas declarações e acabam por respingar nas políticas de segurança pública implementadas. O programa Olho Vivo, criado em 2020, que equipou policiais paulistas com câmeras portáteis que gravam a rotina operacional, foi um importante elemento na diminuição da quantidade de mortos pela Polícia Militar.
Um estudo do FBSP mostrou que entre 2019 e 2022 houve uma diminuição de 62,7% na letalidade policial, com ênfase nas unidades equipadas com as câmeras. Na mesma linha, um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que as áreas que adotaram a tecnologia reduziram o número de mortes decorrentes de intervenção policial 57% mais do que as demais áreas.
O programa, no entanto, foi alvo de sucateamento no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), segundo denúncias de organizações ligadas aos direitos humanos. A Conectas, por exemplo, chegou a denunciar o desmonte no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em junho deste ano, caracterizado pela redução do tempo de armazenamento dos vídeos e a ativação manual da gravação. Nesse contexto, Tarcísio chegou a dizer que “a efetividade da câmera corporal na segurança do cidadão é nenhuma” e que não compraria mais os equipamentos.
O pesquisador defende que, diante do conjunto de posicionamentos e de mudanças nos programas públicos, “os policiais que estão na ponta sentem uma mudança na temperatura e passam a agir de acordo com essas novas expectativas institucionais”.
“Esse estímulo do governador e do secretário de segurança pública gera uma dissonância. O agente passa por um treinamento que é totalmente aderente às expectativas do Estado Democrático de Direito, mas quando chega para fazer a atuação de fato, as mensagens e os sinais que recebe são completamente distintos. É incentivado a agir de formas totalmente diferentes e contrárias à sua formação. O policial vai passar muito mais tempo atuando com os colegas e exposto às expectativas institucionais do que no treinamento”, afirma Pacheco.
O pesquisador afirma que o discurso “não é só um conjunto de palavras”. O que Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite dizem geram “impactos sobre a forma como as polícias atuam”. “Esses discursos se contrapõem ao modelo de policiamento que estava sendo implementado antes, que era um modelo que estava com um foco intenso no controle da atividade policial, e que acabou se perdendo porque houve uma desestruturação intensa e intencional desse modelo”, afirma.
Racismo
Se o número de mortos pela Polícia Militar de São Paulo cresceu, entre os negros a quantidade de óbitos foi ainda maior. Um estudo do Instituto Sou da Paz com base em dados da Secretaria de Segurança Pública, publicado em outubro, mostrou que, de janeiro a agosto deste ano, a taxa de pessoas negras mortas pelas polícias Civil e Militar de São Paulo subiu 83% em relação ao mesmo período do ano passado. Ao mesmo tempo, a taxa de brancos aumentou em 59%. Isso ocorreu em um contexto em que pretos e pardos são 41% da população paulista, e brancos, 57,8%, de acordo com o Censo 2022.
Thales Vieira, um dos diretores do Observatório da Branquitude, afirma que a letalidade policial é “direcionada” para os corpos negros. “Em corpos negros, o uso progressivo não é utilizado, e a polícia vai direto para a letalidade, que são os corpos matáveis, aqueles corpos que cuja repercussão sobre a morte não é igual à repercussão sobre a morte de corpos brancos de classe média”, afirma Vieira.
Especialista nos estudos críticos de branquitude e em relações raciais, o pesquisador explica que o racismo é um sistema que age tanto na estrutura material, como no acesso desigual a oportunidades, quanto na construção da consciência, atribuindo aos corpos negros um baixo valor.
“Portanto, numa sociedade estruturada pelo racismo, corpos que não são brancos são aqueles corpos que têm menor valoração, são corpos matáveis, são corpos indignos de vida. E a polícia, como sendo esse braço armado dessa estrutura racista, é quem operacionaliza isso diretamente através de sua letalidade”, explica.
“O recado que precisa ser dado para a população é que é inadmissível que um corpo seja jogado de uma ponte, que é inadmissível que a violência seja o primeiro atributo que a polícia utiliza para lidar com seus cidadãos”, conclui.
Edição: Martina Medina