Nos primeiros segundos da série “Senna”, num episódio que se chama “Vocação”, antes que qualquer imagem apareça, algumas frases surgem, como num vídeo institucional: “Ayrton Senna foi um dos maiores pilotos de todos os tempos. Ele quebrou recordes na pista e barreiras fora dela. Décadas depois de sua morte, para milhões de pessoas no mundo, ele continua sendo um herói.”
Numa espécie de vídeo de final de ano da firma, ou apresentação de slide de casamento, o espectador não tem muita saída. Ou aceita essa peça de propaganda mal feita, ou irá se frustrar.
O tom de heroísmo nacionalista já vem sobrecarregado desde as primeiras imagens de abertura. Depois de uma breve tomada pilotando a Williams-Renault azul e branca, na qual sofreria aquele triste e fatal acidente que marcou a memória do país na metade dos anos 90, vemos bandeiras verde e amarelo encherem a tela, como numa Copa do Mundo. Crianças correm numa rua de um bairro modesto de São Paulo, uma delas carregando um carrinho de rolimã debaixo do braço.
Que o país estivesse órfão da seleção brasileira, colecionando fracassos monumentais desde a última vitória futebolística em 1970, talvez explicasse em parte porque naqueles anos o automobilismo tenha assumido tamanha proporção nos corações dos espectadores. O ótimo desempenho de Senna, aliado à cobertura efusiva da imprensa, foram fenômenos que não tiveram a mesma proporção dos também campeões Nelson Piquet e Emerson Fittipaldi. Este último foi campeão da categoria em seu ano de estreia, sendo naquele ano, e pelos trinta anos seguintes, o mais jovem piloto a vencer um título na categoria.
Além de números mais impressionantes de pole positions e vitórias, também contribuíram para a construção do mito Senna os shows em Mônaco e a histórica primeira vitória em Interlagos, segurando no braço um carro com câmbio travado, preso na sexta marcha.
A série, no entanto, hipercontrolada pela família, sem muita habilidade em dramaturgia, não ilumina ou sequer expõe as ambiguidades do astro, seu temperamento, suas inconsistências. Espelhando a escaleta de eventos do documentário protocolar de 2010, dirigido pelo cineasta britânico Asif Kapadia, a série ficcional da Netflix não acrescenta nada ao que já sabemos. A insegurança da direção é tanta que personagens famosos do período são apresentados com CG (gerador de caracteres).
Tirando as carregadas cenas de paixão com Xuxa Meneghel e algumas poucas aparições do núcleo familiar, nada de muito interessante nos é revelado. O roteiro tenta mostrar um pouco da vida subjetiva do piloto, mas isso é feito a partir de teses muito rígidas, sem contradições - que dão um aspecto robótico mesmo às passagens com maior carga emocional de sua trajetória. E a despeito da boa atuação de Gabriel Leone, o texto, engessado, não ajuda.
Mesmo uma cena cujo conceito é sensível e interessante, como aquela em que o pai ensina o garoto a dirigir, dizendo que ao segurar o volante suas mãos estão tocando o chão, termina por ser mal executada. Filtros de cor carregados, montagem confusa e falas que não dão conta de expressar a beleza que carregam: “um vulcão”, que desde sempre experimentava êxtase na velocidade, que sentia o tempo com mais aflição do que os demais.
Nada sai muito bem. E as omissões, por outro lado, são muitas. O quase desaparecimento da figura de Adriane Galisteu, que tem movimentado os debates entre fãs, é o mais gritante. O nostálgico jogo da Sega, “Super Mônaco GP”, que também ajudou a popularizar a imagem do piloto entre jovens e crianças, nem sequer é citado. E Nelson Piquet, sempre antipático, acusado recentemente de proferir ataques racistas a Lewis Hamilton, também mal aparece.
Nos bastidores, o ex-piloto tem feito declarações homofóbicas relacionadas a Senna. A série perde a chance de mostrar os embates entre eles. A rivalidade amigável com Alain Prost, um dos pontos interessantes da história, também é um tanto tímida. Falta vida na cinebiografia da Netflix. Ao tentar exibir com rédea curta “a verdadeira imagem do piloto”, a família acabou por mostrar apenas aquilo que ela própria gostaria de ver no espelho: uma imagem narcisista.
As cenas de corrida, a direção de arte e a caracterização são os pontos altos da produção. E são em parte o que seguram os seis episódios da série, junto com o carisma de Gabriel Leone e de nossa boa vontade de telespectador.
Ainda nos anos de 1990, o renomado diretor Michael Mann, autor da obra-prima como “Fogo Contra Fogo”, e que recentemente filmou a vida de Enzo Ferrari com o ator Adam Driver, foi cotado para fazer um filme sobre Senna. Na época, Antonio Banderas assumiria seu papel. Não sabemos porque o projeto não andou, mas a família talvez ficasse contrariada ao se deparar com a liberdade de um artista.
A arte costuma ir mais longe do que um apego ingênuo a uma suposta fidelidade documental.
O curioso é que Gabriel Leone esteve no filme “Ferrari” (2023) de Michael Mann, fazendo o papel do piloto espanhol Alfonso de Portago, que sofreu um trágico acidente em 1957. Naquele filme, o final é sombrio e angustiante. No caso da série em questão, quase como num happy end, as letras voltam à tela para autoelogio que a família faz a si própria, pelo trabalho filantrópico do Instituto Ayrton Senna. Quem sabe no futuro alguma produção com mais liberdade esteja à altura da complexidade do que foi Ayrton Senna e o contexto de sua ascensão.
* Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca