MODELO VICIADO

Uso de emendas parlamentares para controlar orçamento público é ameaça à democracia, diz especialista

No Três Por Quatro, Gustavo Sampaio analisa riscos do uso inadequado de recursos públicos pelo Legislativo

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Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que liberou o pagamento de emendas paramentares sob condicionantes mais rígidas atiçou a insatisfação de parlamentares - Beatriz Zupo/Brasil de Fato
Lula herdou um modelo viciado, em que o Legislativo controla uma fatia desproporcional do orçamento

"Quando o parlamento – que foi eleito pelo povo, mas para uma outra finalidade – se apodera de um terço do orçamento federal, nós temos um desvio antidemocrático de finalidade, uma violação até ao estado de equilíbrio que é pactuado pelo texto constitucional. Devo dizer que isso é perigoso para a própria democracia". Essa é a avaliação de Gustavo Sampaio, professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF), ao comentar o controle exercido pelo Legislativo sobre as emendas parlamentares, fenômeno que, segundo ele, não encontra paralelo em "nenhum outro país".

Sampaio participou do episódio desta semana do Três por Quatro desta sexta-feira (6), podcast produzido pelo Brasil de Fato e apresentado pelos jornalistas Igor Carvalho e Nara Lacerda. O programa aborda a função das emendas, as propostas de adequação e o poder exercido pelo Congresso sobre as verbas públicas, tema que impacta diretamente a governabilidade do Executivo.

Na última segunda-feira (2), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, autorizou a retomada dos pagamentos de emendas parlamentares, cerca de quatro meses após sua suspensão. A decisão veio acompanhada de novas diretrizes para garantir transparência e a correta destinação dos recursos da União.

Sampaio explica que existem quatro modalidades de emendas: individuais, de bancada, de comissão e as do relator-geral do Orçamento da União. Ele destaca que é fundamental o "conhecimento público em torno disso, porque elas [emendas] canalizam o dinheiro do orçamento federal para obras e serviços públicos a partir de iniciativa do Poder Legislativo".

Criadas na Constituinte de 1988, as emendas parlamentares visavam ampliar a participação do Legislativo no processo orçamentário. No entanto, o professor alerta que, ao invés de cumprir esse papel, muitas vezes essas verbas têm servido para atender a "interesses oligárquicos setoriais".

Apesar de ser um "sistema de grande complexidade", como reforça Sampaio, é crucial chamar atenção para o "agigantamento do Poder Legislativo sobre o orçamento público", que compromete a democracia e aumenta a pressão sobre o Executivo. "Falar de orçamento público é falar da sociedade e da democracia", conclui.

Dinheiro na mão não é vendaval

A situação atual traz agravantes. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, a distribuição de emendas parlamentares se intensificou. Durante a gestão Bolsonaro, o orçamento público foi praticamente entregue ao Congresso em troca de apoio político, consolidando uma relação de dependência do Executivo. 

"O governo Lula herdou um modelo viciado, em que o Legislativo controla uma fatia desproporcional do Orçamento, forçando o Executivo a negociar sua governabilidade", avalia Sampaio.

Entre 2019 e 2024, os gastos públicos sem a devida transparência ultrapassaram R$180 bilhões. Esses recursos foram aplicados sem controle adequado, reflexo de uma gestão marcada pela maioria ultradireitista no Congresso. Essa base política, além de flexibilizar regras, facilitou investimentos questionáveis ao longo do período.

"Jair Bolsonaro não ficou refém do Congresso. Ele entregou o orçamento público ao Congresso Nacional em troca do apoio necessário para aprovar medidas e evitar ser afastado do poder", reforça o especialista.

Um exemplo dessa lógica ocorreu em 2022, quando escolas de Alagoas receberam R$ 26 milhões do Ministério da Educação (MEC) para investimentos em robótica. A verba, destinada por emenda do relator do Orçamento, Arthur Lira (PP), resultou na entrega de 330 kits de robótica a instituições que, em sua maioria, não possuíam nem computadores, tampouco abastecimento de água.

Embora o orçamento público seja "dinheiro de todos", sua má gestão prejudica diretamente a população. "Aquela pessoa em condição de rua, que consegue juntar algum dinheiro para comprar um saco de arroz, está contribuindo com tributos, e o orçamento público vem desse tributo", explica o professor.

Transparência como pilar democrático

As novas regras de transparência e rastreabilidade para as emendas parlamentares determinou que todas elas sejam identificadas com o nome do parlamentar responsável e acompanhadas de planos técnicos detalhados. "A decisão é um marco. Ela não impede as emendas, mas coloca as balizas necessárias para garantir que o orçamento seja utilizado de maneira ética e pública", afirma Sampaio.

Essa medida, no entanto, gerou descontentamento entre parlamentares, que acusam o STF de interferência e apontam a burocratização como um obstáculo para a execução de projetos locais. Para o especialista, essas críticas escondem uma resistência à transparência. "Quem age com honestidade não teme que seus atos sejam rastreados ou divulgados. A resistência de alguns parlamentares reflete interesses espúrios."

O governo federal, por sua vez, entrou em campo na tentativa de mediar o embate. Ao provocar a Advocacia-Geral da União (AGU) para dialogar com o STF, o Palácio do Planalto tenta proteger sua agenda legislativa no Congresso, que inclui o orçamento de 2025 e o ajuste fiscal do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O professor avaliou a situação como um dilema político. "O governo precisa do Congresso para avançar em pautas essenciais, mas isso não deve ser feito às custas de concessões que prejudiquem a democracia."

Ele também reforça que a transparência não é um favor ou concessão do Estado, mas um mandamento constitucional que precisa ser respeitado. "A decisão do STF, ao exigir identificação dos parlamentares e detalhamento do uso das verbas, não só protege o orçamento público, mas fortalece a democracia. A opacidade beneficia apenas os maus políticos e perpetua práticas nocivas como o clientelismo e o coronelismo", afirma Sampaio.

Neste sentido, ele aponta que o ministro do STF "é capaz de rever [a decisão de controlar as emendas], mas nada que comprometa o princípio da máxima transparência pública e sua rastreabilidade. Inclusive, Dino ordenou que todas as emendas sejam noticiadas e informadas, por exemplo, à Controladoria Geral da União, que fará o mapa do trajeto dessa emenda até o seu local de destino, para demonstrar se a emenda chegou, onde chegou e para quem chegou".

Ele concluiu com um alerta. "A ausência de transparência divide os bons políticos dos maus. Aqueles que resistem a essas mudanças não merecem a confiança do eleitorado. A sociedade precisa estar atenta e cobrar integridade dos seus representantes."

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.

Edição: Thalita Pires