Antônio Carlos Moreira Soares estacionou o carro na Avenida Cupucê, na zona sul de São Paulo, em frente ao Oxxo onde seu filho Gabriel Renan, de 26 anos, foi executado com oito tiros pelo policial militar (PM) Vinícius Britto, no último 3 de novembro. Enquanto esperava a reportagem chegar, assistiu de novo o vídeo das câmeras de segurança, cuja repercussão, desde segunda-feira (2), deu uma reviravolta no caso e no debate sobre letalidade policial em São Paulo.
"Nós vamos aumentar isso. Vai ficar um símbolo da luta contra o extermínio", defende Antônio. "Eles estão matando as nossas próximas gerações", se revolta, olhando de tempos em tempos para a fachada do Oxxo, que semanas atrás foi pixada com a frase "quanto custa a vida de um favelado?".
Os vídeos provaram ser mentira a versão relatada no Boletim de Ocorrência (BO), segundo a qual Gabriel teria ameaçado o policial e feito menção de estar armado. Os tiros foram dados à queima-roupa pelas costas, depois de o jovem negro escorregar e cair no chão ao tentar furtar três pacotes de sabão. As imagens foram reproduzidas à exaustão na imprensa.
Em reação, movimentos realizaram uma manifestação na última quinta-feira (5), em frente a Secretaria de Segurança Pública. Parlamentares também protocolaram um pedido de impeachment do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, nesta sexta-feira (6). O chefe da pasta e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) deram declarações repudiando a conduta do policial – referida como um desvio individual ao "profissionalismo" da farda, a despeito de a PM-SP já ter matado em média duas pessoas por dia em 2024. Na noite de quinta, Britto foi preso preventivamente, denunciado por homicídio doloso.
"Eles fazem essas coisas com jovens da favela e acham que ninguém vai correr atrás. Mas às vezes vêm uns casos desses que obrigam o próprio governador e o secretário a ir em rede nacional", diz Antônio. "Nós somos aqui da periferia. Aí pensam que por isso vai ser enterrado e não vai pegar nada. Mas vai", garante.
Emocionado, Antônio conta que ele chamava Gabriel, o mais parecido fisicamente com ele entre os filhos, de "pequeno gigante". Já estava crescido, mas seguia, segundo o pai, manhoso e chorão como era desde criança. Ao ver no vídeo o filho alvejado dobrando os joelhos, imaginou que "o menino" deve ter tido vontade de chamar pela mãe. Ela não tem dado entrevistas, tem problemas cardíacos.
"O policial executou meu filho. E o mercado continuou funcionando, com o corpo do meu filho no chão. Sem nada coberto. O pessoal entrando e saindo do mercado, tem vídeo mostrando isso. Meu filho parecia um saco de lixo jogado lá no chão. Quer dizer, para eles a vida do meu filho valeu três sachês de sabão líquido", diz, balançando a cabeça inconformado.
Lamentou algumas vezes que a vida do filho não volta mais. "Mas nós vamos lutar", ressaltou. "Eles vão ver".
Confira na íntegra a entrevista ao Brasil de Fato:
Brasil de Fato: Como está a família de lá para cá?
Antônio Carlos Moreira Soares: É um pedaço da gente que tiraram, literalmente. A mãe nem se fala, usa marcapasso, tem problema no coração. Os irmãos... A minha filha mais nova vai para a escola, mas impactada. O outro está internado numa clínica, graças a Deus. É o que o meu outro estava precisando. Fez um mês no dia 3 e estamos sofrendo muito, muito, muito. É a justiça que queremos que seja feita.
O que vocês acharam da repercussão das imagens de câmeras?
Até então nós só tínhamos os prints, as fotos do vídeo. O policial colocou lá no Boletim de Ocorrência que foi legítima defesa, que o menino fez menção de estar armado, por isso que ele atirou. Os vídeos provam que ele atirou covardemente, oito tiros. Talvez até mais, aparecem onze ou treze perfurações, os tiros entram e saem por outras portes do corpo.
Por causa desses vídeos temos certeza que ele foi executado. A gente queria era que prendessem ele, ou desse um tiro para cima, para o lado, sei lá. Hoje meu filho estaria vivo, eu estaria visitando ele ou ele estaria em casa. Porque ele fez uma coisa errada, um furto, mas que prestasse um serviço comunitário, pagasse uma multa, não sei. Mas tomou oito tiros?
Ele [o PM Vinícius Britto] executou meu filho. E o mercado continuou funcionando, com o corpo do meu filho no chão. Sem nada coberto. O pessoal entrando e saindo do mercado, tem vídeo mostrando isso. Meu filho parecia um saco de lixo jogado lá no chão.
Quer dizer, para eles a vida do meu filho valeu três sachês de sabão líquido. Que para o mercado deve custar R$ 3 cada um desses, que eles compram por quantidade para vender. E a vida do meu filho foi isso. Tomar oito ou onze tiros de um policial que foi reprovado no exame psicológico e já tinha dois homicídios do mesmo jeito. Com o mesmo modus operandi: atirou pelas costas e os dois desarmados. Não tem nem dois anos de polícia, é mais novo que meu filho. E é isso.
Eu quero justiça, vou correr atrás. Não vai trazer a vida do meu filho de volta. O que eu queria era poder trocar a minha pela dele, para ele viver. Eu já vivi... trocaria tudo, trocaria tudo...
Não estava fazendo coisa certa, mas não ameaçou ninguém, não chegou com arma. Tinha só uma carteira com seu RG, duas fotos – uma da mãe e em cima a da irmã -, e um dólar na carteira, que era para dar sorte [se emociona].
Ele tinha vontade de usar a droga dele, era viciado. Mas não tinha maldade de querer ameaçar alguém. E aí o policial faz isso, dá oito tiros nas costas do moleque. E ainda quase acertou o motoqueiro que estava em serviço. Se o motoqueiro não sai da frente, tinha tomado tiro também.
Não achamos o motoqueiro, que é uma testemunha ocular. Mas lógico, o cara não vai querer se envolver né? Você me desculpe, mas se envolver com negócio de polícia é perigoso você também morrer. Porque eles têm a farda, tem o revólver, têm o poder.
Vocês viram essas cenas do mercado continuar aberto e clientes entrando e saindo. Ao mesmo tempo, também houve solidariedade e revolta, né?
No dia que eu vim perguntar, porque eu estava procurando meu filho, o atendente do mercado falou que "mataram um noia". Quer dizer, para eles, "mataram um noia", então não vai acontecer nada.
A gente pode ser humilde, mas a gente tem família, tem amigos. Graças a Deus o tio e a tia dele são advogados, estudaram para isso. Em escola pública. Nós somos aqui da periferia, da favela. Aí pensam que por isso vai ser enterrado e não vai pegar nada. Mas vai.
Dados do Ministério Público mostram que de 2023 para 2024 a Polícia Militar de São Paulo matou 74% a mais. As pessoas têm muita dificuldade de denunciar, provar, desmentir a palavra do policial. O que acha de terem conseguido trazer esse caso à tona?
No domingo (1º) circulou o vídeo de um menino daqui da região também. Um menino trabalhador, entregador. Que os policiais estavam perseguindo um baile funk na Vila Clara e jogaram o menino da ponte, de cabeça para baixo. Isso é policial? Um monte de pedra embaixo, podia bater a cabeça e morrer.
Eles atiram primeiro para depois pedir seu RG. Se tiver favelado, já vão atirando. Mataram o menininho de quatro anos de idade [Ryan Andrade, em Santos]. Aí eles vão falar "estava trocando tiro", implantam uma arma e fica por isso mesmo. É isso o que acontece. E eu não estou nem aí para falar, se quiserem vir atrás de mim eu só quero que me matem olhando no meu olho, não por trás que nem a covardia que fizeram com meu filho, entendeu?
Nós vamos para a luta. Estou fazendo pelo meu filho, vou até o fim, se Deus quiser vou conseguir justiça. Está repercutindo muito e vai repercutir muito mais para provar para eles, que eles fazem coisa aí com jovens da favela e acham que não vão correr atrás. Mas às vezes vêm uns casos desses que obrigam o próprio governador [Tarcísio de Freitas] e o secretário de Segurança Pública [Guilherme Derrite] a ir em rede nacional.
Não para pedir desculpa, isso eles jamais vão fazer, porque para eles tanto faz. O governador mesmo não falou que podia procurar a Liga da Justiça que ele não estava nem aí? Mas é isso, um governador desse, em vez de proteger a gente, põe um pessoal para isso, dá arma para sair matando. Com o dinheiro da gente.
Movimentos populares e entidades do movimento negro estão reagindo com protesto na rua e também nas redes, denunciando a brutalidade policial e demandando a derrubada do Derrite. Como você vê isso?
É a força do povo, sabe? Unidos venceremos. É tipo assim, mexeu com um, mexeu com todos. E nós vamos aumentar isso, vai ficar um símbolo da luta contra o extermínio. Eles estão impondo pena de morte. É pena de morte o que estão fazendo.
Você viu na Baixada Santista o que aconteceu. Paraisópolis, depois de cinco anos é que os caras vão ser julgados. Encurralaram os jovens porque estavam num baile funk. Quem nunca curtiu um baile? Cada juventude que passa tem um jeito de curtir. Tinha o balanço, tinha o rap, agora é o funk.
Eles estão matando as nossas próximas gerações. Se um dia eu e a mãe morrer, era ele que ia ficar para manter a irmã menor. E aí o governo vai lá perguntar "você precisa disso, daquilo?", não vai. Ninguém vai. Era ele. Era a geração que ia ficar. Como é que faz?... Entendeu?
Mas nós vamos lutar. Eles vão ver. Vão ver que nós vamos nos unir, vamos com força. Tenho fé em Deus que nós vamos fazer acontecer. Porque a falta que eu estou sentindo meu coração não apaga. Não vão trazer a vida do meu filho, mas vão ter que responder. Quero esse policial julgado por um júri popular. O natural da vida é um filho enterrar um pai, não um pai enterrar um filho. Machuca demais, eu já não tenho mais lágrimas.
Edição: Thalita Pires