Em meio aos debates no Congresso Nacional sobre diferentes modelos para um imposto seletivo destinado ao álcool, representantes do setor da cerveja e da cachaça encontraram um ponto de união: a indústria quer que "produtores artesanais" fiquem de fora da tributação.
A proposta tem apoio de parlamentares petistas e também está sendo sugerida por meio de emendas assinadas por senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a bancada do agro. O setor do álcool defende que pequenas cervejarias e cachaçarias recebam isenção ou, pelo menos, um desconto do fisco. A medida pode enfraquecer o propósito inicial do novo tributo de desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde.
"Não podemos deixar de lado nenhuma bebida alcoólica", defende a chefe da área técnica de Alimentação, Nutrição, Atividade Física e Câncer do Instituto Nacional do Câncer (Inca), Luciana Maya. "Quando consideramos o câncer, por exemplo, a evidência científica indica que não existe dose segura. Consumir álcool, por si só, já aumenta o risco de desenvolver a doença. E não há diferença de acordo com a qualidade ou o tipo da bebida: álcool é álcool", resume.
O projeto de lei da reforma tributária foi aprovado em julho na Câmara dos Deputados e tramita no Senado desde então. O texto detalha as regras para a aplicação de três novos tributos: o Imposto Seletivo, o Imposto sobre Bens e Serviços e a Contribuição sobre Bens e Serviços. Eles visam substituir o ICMS, o IPI, o ISS, o PIS e a Cofins.
De lá para cá, sete parlamentares apresentaram emendas ao projeto para privilegiar as bebidas artesanais: André Amaral (União/PB), Augusta Brito (PT/CE), Zequinha Marinho (Podemos/PA), Mecias de Jesus (Republicanos/RR), Luís Carlos Heinze (PP/RS), Dorinha Seabra (União/TO) e Rosana Martinelli (PL/MT).
"A exclusão das bebidas artesanais do imposto seletivo visa proteger e incentivar a produção artesanal, que é culturalmente significativa e economicamente importante para muitas regiões do Brasil", diz de forma idêntica a justificativa de cinco emendas distintas, propostas por Heinze, Zequinha Marinho, Mecias de Jesus, Dorinha Seabra e Rosana Martinelli – os ruralistas adotaram o mesmo expediente na tentativa de evitar impostos sobre refrigerantes."As bebidas artesanais representam uma expressão cultural e são uma fonte vital de renda para pequenos produtores", argumentam.
Nesses casos, a ideia é que a exceção beneficie produtores com faturamento inferior a R$ 3,6 milhões ao ano. Já a petista Augusta Brito propôs que o álcool produzido por micro ou pequenas empresas inscritas no Simples seja tributado com alíquotas mais leves. Segundo a parlamentar, o ideal seria um modelo progressivo onde o imposto é proporcional ao volume de produção anual da empresa. "Com isso, estimula-se o crescimento dos fabricantes independentes e artesanais e incentiva-se o desenvolvimento regional", justifica Brito na emenda. A emenda do ex-senador paraibano André Amaral segue a mesma linha de Brito, sugerindo uma alíquota diferenciada de acordo com o volume de produção.
"Se alguém bebe algo feito pela Ambev ou artesanal, ela pode gostar mais de uma ou de outra, mas isso não significa que não seja álcool e não faça o mesmo tipo de malefício", critica a psicóloga Ilana Pinsky, ex-consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS). "O fato de ser artesanal não quer dizer que não vai bater no parceiro, acidentar o carro ou negligenciar os filhos", afirma.
Nesta segunda-feira (9), o senador Eduardo Braga (MDB), relator do projeto no Senado, deve fazer a leitura de seu relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa. O projeto pode ser votado em plenário na quarta-feira (11) e daí segue para revisão da Câmara dos Deputados. Se aprovado, o Imposto Seletivo deve entrar em vigor a partir de 2027.
"Cultura" pró-álcool mobiliza pedido por isenção
O Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), um dos representantes dos interesses do setor de destilados no debate, chegou a lançar um manifesto que afirma que "a cachaça é patrimônio nacional e está ameaçada pela reforma tributária".
A relação das bebidas com a identidade dos brasileiros também é mobilizada pelo Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), que representa gigantes da indústria como Ambev e Heineken, bem como produtores menores. "A produção de cerveja passa por tradições locais, transmitidas de geração em geração. Isso também vale para vinícolas, cachaçarias", defende o presidente executivo do Sindicerv, Márcio Maciel. "O volume de produtos que eles colocam no mercado é muito pequeno se comparado ao valor que é gerado em empregos locais, incentivo à agricultura familiar e manutenção da cultura", avalia.
Segundo o Sindicerv, apenas 2% da produção de cerveja vem do setor artesanal – mas, ao colocar na ponta da caneta, esses números não são tão baixos quanto parecem. Isso porque, de acordo com levantamento do Ministério da Agricultura e Pecuária, mais de 15 bilhões de litros de cerveja foram produzidos no Brasil só em 2023. Segundo dados divulgados pelo Inca e pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), 90% do álcool consumido pelos brasileiros vem da cerveja. Em 2018, a OMS apontava um índice mais baixo, mas ainda elevado, de 62%.
Nesse cenário, nada impede que pessoas habituadas a beber cerveja optem pelo nicho de mercado artesanal, se for menos tributado. "Não deve existir um produto tributado e outro, que é essencialmente o mesmo, sem tributo. Nesse caso, o consumidor realmente pode migrar para o produto com menos imposto", afirma o economista sênior do Banco Mundial, Cornelius Fleischhaker.
A brecha para produtores artesanais levanta outro problema, segundo representantes da saúde. Grandes cervejarias podem abocanhar empresas menores para driblar a tributação e contar vantagem comercial sobre os concorrentes. A manobra não seria inédita. Na Indonésia, a criação de tributos para o cigarro que variam de acordo com o volume de produção da empresa, como o defendido por alguns dos senadores para o álcool, levou grandes fabricantes a criarem novas marcas, dividindo o total da produção e, assim, pagando menos impostos.
Para especialistas da área da saúde, a reforma tributária é uma boa chance para quebrar a noção de que o Brasil é um país cervejeiro e começar a minar a cultura da bebida alcoólica no país. "Diferente do tabaco, a maioria das pessoas acha consumir álcool algo normal. Se você pensa em alguns anos atrás, o tabaco era tão aceito quanto a bebida. Houve uma mudança cultural – e isso leva tempo. Se não começarmos agora, nunca vamos chegar nesse patamar para o álcool", afirma o economista sênior do setor de saúde do Banco Mundial, Roberto Iunes.
Do outro lado da briga, a indústria investe no reforço da imagem do Brasil como um "país cervejeiro". Durante a Cúpula de Líderes do G20, a Ambev disponibilizou cerveja liberada para os chefes de Estado, representantes de nações estrangeiras e jornalistas durante o evento que foi sediado no Rio de Janeiro em novembro deste ano. Registros obtidos pelo Joio na agenda de responsáveis do Ministério da Cultura (MinC) mostram que representantes da Ambev participaram de três reuniões para discutir a ação durante a cúpula.
A assessoria da empresa afirmou, em nota, que "forneceu bebidas para o evento do G20 da mesma forma que fornecem para milhares de eventos ao redor do Brasil todos os anos". A Ambev ainda disse "não ter nenhum interesse no lucro que venha do consumo indevido de nossos produtos" e destacou que promove campanhas de apoio à Lei Seca em todo o território nacional.
Para Luciana Maya, do Inca, depois da reforma tributária, o próximo passo para desestimular o consumo de álcool e especialmente da cerveja, a mais consumida pelos brasileiros, é minar a disseminação da cultura de marcas alcoólicas. "Hoje, temos uma quantidade gigante de propaganda de cerveja, patrocínio em eventos esportivos e musicais. Uma legislação mais permissiva em relação à cerveja já existe no Brasil", destaca. Desde os anos 90, no país só estão vedadas de fazer publicidade as bebidas alcoólicas com quantidade de álcool superiores a 13%.
Um avanço no controle do álcool
Especialistas enxergam a reforma como a primeira chance em muitos anos de se construir para o álcool uma tributação que sirva como uma política de redução do consumo, nos mesmos moldes conquistados com medidas antitabagistas, que ajudaram a diminuir os índices de fumantes no país. Hoje, o IPI é o mais próximo que há de uma alíquota específica, já que varia de acordo com a "essencialidade" do produto para a sociedade. Enquanto cervejas pagavam 3.9% de IPI em 2023, por exemplo, o valor para vinhos variava de 10 a 20% – também a depender do tipo de vinho.
Não à toa, também há esforços para eximir "produtores artesanais" de tabaco. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), por exemplo, propôs que o "fumo artesanal" seja beneficiado por alíquotas especiais por ser "menos prejudicial" que o cigarro tradicional – uma afirmação que não encontra fundamento.
"Os impostos para o álcool foram negligenciados por muito tempo e foi justamente com novos financiamentos e evidências, inclusive de que o álcool é cancerígeno, que está havendo mais energia [para tributá-lo]", diz a médica Maristela Monteiro, que foi assessora-sênior em álcool e drogas da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS), por 28 anos. "Mas faltam experts. E a taxação de bebidas, justo pela variedade delas, é muito mais complexa do que a feita para tabaco", diz.
Mas, se as indústrias cervejeira e cachaceira convergem ao tratar dos pequenos produtores, o grande conflito entre os setores se dá em relação ao desenho das alíquotas que serão aplicadas para as bebidas alcoólicas – e, mais uma vez, especialistas da área da saúde temem que a cerveja saia beneficiada deste embate.
Segundo a versão mais recente do projeto de lei, sobre as bebidas alcoólicas devem incidir impostos ad rem e ad valorem cumulativos.
Como o próprio nome indica, o ad valorem varia de acordo com o valor do produto, isto é, seu preço, e funcionaria como uma taxa fixa: se a alíquota for de 10% sobre o valor do produto, uma cerveja de R$ 5 pagará 50 centavos de imposto, enquanto uma cachaça de R$ 40 pagará R$ 4, por exemplo.
Nesse caso, fica a definir a etapa do processo de produção em que o tributo incidirá. Segundo os especialistas do Banco Mundial no Brasil, o ideal seria aplicar o ad valorem no local de venda, em que é conhecido o preço que chega ao consumidor. "Do ponto de vista da administração tributária, é muito mais fácil aplicar imposto no início da cadeia. Mas, ao fazer isso, você precisa presumir o preço final e, se ficar para a indústria definir esse provável preço, é possível que ela subestime o valor para pagar menos", explica Fleischhaker.
Já o imposto ad rem é também chamado de imposto específico: as alíquotas variam de acordo com um fator previamente definido – que, no caso das bebidas alcoólicas, pode ser o teor de álcool por volume ou a quantidade de doses de álcool presentes na garrafa ou na lata.
Especialistas recomendam uma combinação entre o ad rem e o ad valorem para evitar que, uma vez que o preço final seja tributado, o consumidor não recorra simplesmente a um produto mais barato, colocando em xeque o propósito de melhorar indicadores de saúde dos brasileiros no longo prazo.
Ainda de acordo com especialistas do Banco Mundial, a existência de uma parcela ad valorem na alíquota se justifica para corrigir a proporcionalidade do imposto em relação ao valor total do produto. "Digamos que em um caso em que só haja o imposto específico, uma garrafa de bebida muito barata vai pagar R$ 7 de imposto e uma garrafa que custa R$ 500 reais vai pagar esses mesmos R$ 7 de imposto, o que seria muito pouco", exemplifica Fleischhaker, do Banco Mundial.
Um ponto de disputa entre a indústria da cerveja e a dos destilados, por exemplo, foi a inclusão na Câmara de um inciso que afirma que a alíquota ad valorem – baseada no preço do produto – também pode variar de acordo com uma tabela de teor alcóolico. Assim, ambas as alíquotas seriam influenciadas pelo teor de álcool que há na bebida – e como a cerveja é uma das bebidas com menor quantidade proporcional de álcool, especialistas temem que o setor cervejeiro saia favorecido.
O Ibrac, por exemplo, defende a supressão do trecho que permite a variação do imposto ad valorem pelo teor alcoólico. A Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD) segue a mesma linha, contrária à indústria cervejeira.
Pelo outro lado, o Sindicerv afirma estar alinhado à proposta da OMS, que posiciona as tarifas dependentes do teor alcoólico como as mais efetivas para fins de saúde. De fato, o modelo de tributação que varia pelo teor alcoólico é recomendado pelo órgão internacional, mas a OMS reconhece que esse desenho tributário pode falhar em desestimular o consumo entre os mais jovens por conta dos benefícios a bebidas com menor teor alcoólico – como a cerveja.
Por esse motivo, os destilados preferem um modelo de taxação que adote a dose padrão, 14g de álcool, como referência. No país, uma "dose" é o equivalente a uma lata de 350 ml de cerveja, uma taça de 150 ml de vinho ou um shot de 45 ml de uma vodka. O setor defende que esse modelo seria mais equânime.
"Nenhum dos dois [cervejas ou destilados] está do lado da saúde porque o álcool é carcinogênico, não tem um nível de consumo que proteja, seja sadio, então, se é por volume, a briga é por mercado. Onde vai ser mais barato vender álcool. A cerveja defende essa ideia mínima porque acaba sendo mais barato para vender a unidade de cerveja. E o destilado propõe o contrário porque fica menos caro se fizer por volume", explica Maristela Monteiro, ex-Opas.
Um estudo recente da Fiocruz estimou que a bebida causou R$ 18,8 bilhões em prejuízos ao país devido a custos de hospitalização, perda de produtividade e mortalidade precoce. Em 2019, foram 104,8 mil mortes atribuíveis à substância no país – uma a cada 12 segundos.
Nesse quesito, saúde e economia se unem: tendo em vista as mortes atribuíveis ao consumo de álcool, o Banco Mundial também emitiu uma nota afirmando que a taxação específica do álcool trará benefícios especialmente para as famílias mais pobres – que são também as mais afetadas por problemas de saúde relacionados a produtos nocivos.