ENTREVISTA

Queda de Assad para rebeldes aliados de Israel enfraquece resistência palestina, diz analista

Bruno Huberman teme que deposição de líder fragmente a Síria e seja golpe letal para resistência anti-imperialista

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
A deposição de Assad foi celebrada por setores da sociedade síria - AFP

A deposição do presidente sírio, Bashar al-Assad, no domingo (8) por rebeldes islamistas aliados de Israel deve enfraquecer a resistência palestina. A análise é de Bruno Huberman, que cita que a Síria ajudou a aproximar os grupos armados palestinos.

"A Síria tinha um papel importante para o desenvolvimento e armamento das forças guerrilheiras palestinas, facilitando a aliança entre grupos islâmicos e grupos de esquerda", diz o professor de Relações Internacionais da PUC-SP. 

"Ela incentivou essa aliança entre grupos que fizeram o ataque de 7 de outubro de 2023, que não foi só do Hamas, e sim uma coalizão de todas a forças guerrilheiras palestinas unidas."

Huberman pondera que, embora a queda de Assad seja celebrada por muitos palestinos, por causa de perseguições conduzidas por ele ao povo palestino na Síria, a reviravolta do final de semana deve ser prejudicial à resistência contra Israel

"Pensando numa lógica de resistência armada, militar, é uma perda de força para a capacidade palestina. Sua capacidade de ter acesso a armas e estratégias do Irã, Hezbollah, e do Eixo da Resistência vai diminuir", diz ele. 

O chamado Eixo da Resistência é uma aliança informal política e militar anti-Israel e anti-ocidental entre o Irã, a Síria, o grupo militante libanês xiita Hezbollah, o sunita palestino Hamas, e os Houthis do Iêmen.

O líder do principal grupo rebelde, Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), al-Julani disse em entrevista ao jornal israelense Times of Israel agradecer ao governo de Netanyahu por seu apoio contra Assad.

"Digo apenas que somos gratos a Israel por seus ataques contra o Hezbollah e a infraestrutura iraniana na Síria. Esperamos que após a queda de Assad, Israel plante uma rosa no jardim sírio e apoie o povo sírio, para benefício da região. O povo sírio é quem vai permanecer na fronteira com Israel, não Assad ou os iranianos", disse Julani, que já pertenceu a Al Qaeda e foi aliado do Estado Islâmico. 

Leia abaixo entrevista na íntegra de Bruno Huberman para o Brasil de Fato:

Brasil de Fato - Como podemos classificar as forças comandadas por al-Julaini, que tomaram o poder hoje na Síria? Quais são seus principais interesses e quem são seus aliados no plano internacional?

Bruno Huberman - As forças do grupo HTS, comandado pelo Julani, são uma antiga força jihadista que passou por uma reorganização. Têm diversas facções, digamos assim, que compõem essa tropa que tomou e assumiu o poder. Entre os seus principais aliados têm a Turquia que apoia o Julani, o presiddente Erdogan, importante ator, [pela fronteira] Turquia-Síria, [além de existirem] muitos refugiados sírios na Turquia.

E eles apoiavam essas forças, de alguma forma, para colocar um aliado no país vizinho. Só que também existem outras forças guerrilheiras da oposição islamista, os salafistas [por exemplo], apoiados pela Arábia Saudita e Emirados Árabes. Que vêm atuando para derrotar o Assad desde 2011/12, e que passou por várias fases, e de 2017 para cá passou por essa reorganização, de alguma forma para assumir uma face um pouco mais moderada. E vai buscar colocar um governo islâmico na Síria.

O ponto é que o Julani não é a única força que está assumindo o poder, é uma coalizão de forças e de disputas de projetos políticos. Os aliados [de Julani] da Turquia, os aliados da Arábia Saudita, que têm divergências na forma de que tipo de governo querem colocar, e isso deve gerar um conflito entre as partes ganhadoras, que foi o que aconteceu na Líbia.

A Líbia até hoje está numa condição de guerra civil permanente, porque as partes do conflito que derrotaram o [Muammar] Gaddafi, depois não souberam, ou não conseguiram impor um governo único, uma coalizão e eles estão em conflitos desde então. E isso resultou na fragmentação territorial do país. E é provável que a gente veja isso na Síria.

Há uma visão de que a chegada desses grupos ao poder daria mais poder a Israel e seus aliados na região. Você concorda? Como isso aconteceria?

Eu vejo como bastante favorável para Israel. Esses grupos que assumiram o poder, o [premiê israelense] Netanyahu apoia eles. Ele atuou para minar o governo Assad há muitos anos, e minar a associação do Irã e do Hezbollah no país, e prestou apoio logístico, de inteligência, além de outras formas de apoio para essas forças que assumiram o poder.

Então acho que isso, do ponto de vista israelense, é bastante benéfico. Eles ocuparam a parte síria das Colinas do Golã, né? Eles ocupam desde 1967 uma parte das colinas do Golã sírias e agora eles ocuparam todas as colinas do Golã.

Então é bastante evidente que Israel está conseguindo obter uma expansão territorial nesse contexto e conseguiu derrubar o Assad, que era um o espaço muito importante para a coalizão do eixo da resistência, que serve de profundidade estratégica para Hezbollah, Hamas, e outros, proverem resistência a Israel. Nesse sentido, é muito benéfico para Israel a derrubada do Assad.

Há indícios de que a retirada de apoio a Assad por parte da Rússia teria algo a ver com um possível acordo favorável na Ucrânia. Acredita que pode haver alguma relação?

A guerra na Ucrânia parece ter afastado os [exércitos] russos, que nunca saíram do país. Com certeza diminuíram a sua presença na Síria diante da necessidade do front doméstico na fronteira da Rússia com a Ucrânia.

Isso afastou o Putin de uma atuação mais próxima na Síria. O Putin prestou bastante apoio ao Assad ao longo dos anos. O Assad só não caiu por causa do apoio Putin e do Irã e do Hezbollah. Mas não é que o Putin buscou fortalecer a capacidade militar síria, para servir do seu bastião, como os americanos fizeram, de alguma forma, com os israelenses.

Então eu acho que passa por essa questão, mas se isso tem relação com um acordo na Ucrânia, já não sei.

Quais os impactos da queda do governo Assad para a causa palestina?

Em relação à causa palestina, a Síria atuava como um espaço importante de desenvolvimento das forças guerrilheiras palestinas de fortalecimento do armamento. Foi a Síria que permitiu, em certo sentido, essa aliança entre grupos que fez o ataque de 7 de outubro de 2023, que não foi só do Hamas, e sim uma coalizão de todas a forças guerrilheiras palestinas unidas na luta por libertação. Então isso é fruto de um esforço sírio, que orientou o Eixo da Resistência ao longo dos últimos anos.

A derrota do Assad por um lado é bem vista por palestinos porque, em certo sentido ele matou palestinos na guerra civil, tem palestinos comemorando, assim como parte da população.

Mas pensando numa lógica de resistência armada, militar, é uma perda de força para a capacidade da resistência palestina manter. Sua capacidade de ter acesso a armas e estratégias vinculadas ao Irã, Hezbollah, e do Eixo da Resistência vai diminuir.

Ao longo dos últimos anos os criadores do Eixo da Resistência foram mortos. O Soleimani, iraniano. O [Ebrahim] Raisi, primeiro presidente iraniano que morreu no acidente. O Nasrallah do Hezbollah, o Sinwar. Morte de lideranças não faz, por si só, a coalizão desaparecer, mas certamente são mentes que estiveram por trás desse projeto político e os seus sucessores talvez, em um primeiro momento, não vão conseguir manter o projeto da forma como ele foi avançado até o momento. Então isso deve provocar transformações. Mas o sentido qualitativo disso ainda não sabemos.

A queda do governo Assad foi a primeira vitória da política externa do governo Trump, antes mesmo de começar?

Foi uma resposta ao fracasso que foi a política do governo Biden para o Oriente Médio do ponto de vista do imperialismo americano, porque o Biden fracassou no Afeganistão, o governo dele foi expulso pelo Talibã.

Também vai ser um governo marcado para promover um genocídio contra os palestinos, e estava sendo um governo marcado por não conseguir avançar em um projeto de poder iniciado pelo Trump, que era os acordos de Abraão, que estava tentando normalizar as relações de Israel no Oriente Médio com a Arábia Saudita. A Arábia Saudita vinha demonstrando maior autonomia política, se aproximando dos chineses e dos russos.

Então essa vitória do imperialismo americano através da derrubada do Assad acho que fica com uma última contribuição "maléfica" do ponto de vista dos interesses populares.

Mas isso representa os interesses do imperialismo, e o governo Trump vai continuar com essa política, porque isso faz parte da política também do governo Trump. De apoiar não com tropas americanas, mas tropas aliadas que representam seus interesses. Isso é o que chamamos de proxys [guerras por procuração].

Para mais contexto, assista ao episódio de O Estrangeiro, o podcast de política internacional do Brasil de Fato sobre a Síria, gravado na última quinta (5)

Edição: Rodrigo Durão Coelho