Extrema direita

Drama argentino com Milei chega a 12 meses e fundo do poço ainda não é visível

Primeiro ano da ultradireita no poder se caracterizou pela 'crueldade de suas políticas'

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Cartaz sobre a pobreza na Argentina - Juan Mabromata / AFP

Em 10 de dezembro de 2023, Javier Milei assumiu a presidência da Argentina em uma cerimônia carregada de simbolismo, de costas para o Congresso. Em seu discurso, ele declarou que seu governo pretendia fazer mudanças “revolucionárias” e acabar com a “casta política”. 

“Hoje começa uma nova era na Argentina. Hoje encerramos uma longa e triste história de decadência e declínio e iniciamos o caminho para a reconstrução do nosso país”, prometeu.

Desde então, o país mergulhou em um drama que tem poucos precedentes em sua história. Os 365 dias do experimento “libertário” pioraram uma situação social que parece não estar chegando ao fundo do poço. Nesse contexto de incerteza, o Brasil de Fato conversou com dois especialistas em economia e política argentina para analisar o impacto do primeiro ano do governo de Milei.

O economista e doutor em ciências sociais Francisco Cantamutto destaca que o primeiro ano do governo de Milei foi uma “enorme demonstração de agressividade contra os setores populares”, onde os “principais perdedores foram os aposentados e as crianças”, enquanto “os grandes vencedores são apenas alguns empresários”. 

O aumento da desigualdade e da pobreza não são apenas “danos colaterais”, mas refletem o programa do governo “libertário”. Cantamutto explica que, embora o primeiro ano de mandato de Milei seja novo pela “crueldade com que suas políticas foram implementadas”, o programa é semelhante ao que os governos neoliberais já fizeram antes. Um acentuado corte nos gastos públicos, uma reforma dos direitos trabalhistas, com maiores benefícios e garantias para as grandes empresas, e uma tentativa de colocar o país em um novo ciclo de endividamento externo. 

De acordo com o último relatório do Observatório Social da Universidade Católica da Argentina (UCA), quase metade da população argentina vive abaixo da linha da pobreza. Assim, desde o final de 2023, a pobreza aumentou em 8%, o que significa 4 milhões de pessoas.

A situação é ainda mais grave quando se considera que seis de cada dez crianças e adolescentes argentinos vivem na pobreza. Enquanto mais de 19% vivem na extrema pobreza. Em outras palavras, duas em cada dez crianças e adolescentes vivem privadas de recursos para comer no terceiro maior país produtor de alimentos do mundo.

“Até o momento, o governo não conseguiu recuperar o acesso ao mercado de crédito internacional. No entanto, gerou um ajuste fiscal sem precedentes e implementou uma reforma trabalhista muito regressiva e, ao mesmo tempo, instalou um regime de fortes incentivos para grandes investimentos. O que permite uma maior precariedade na contratação de mão de obra, por um lado, ao mesmo tempo em que permite um conjunto de privilégios fiscais, alfandegários e cambiais para o grande capital, por outro”, explica.

De acordo com Cantamutto, um terço do ajuste total - que Milei orgulhosamente chama de “o maior ajuste fiscal da história da humanidade” - recaiu sobre a renda dos aposentados, um dos setores mais desprotegidos da sociedade. 

De cada $100 pesos que o governo cortou, $24,2 iriam para o sistema de pensões. Ao mesmo tempo, o governo decidiu eliminar a entrega gratuita de medicamentos vitais que 1,7 milhão de pessoas recebiam do sistema de previdência social do Estado. 

Neste contexto, Cantamutto afirma que “os danos infligidos pelo ajuste não atingiram todas as contas”, apontando o pagamento de juros da dívida externa como um dos gastos que o governo manteve intacto.

Um programa que morde o próprio rabo

O motivo da força política do governo de Milei em questões econômicas foi por ter reduzido a inflação, o que permitiu “uma percepção de estabilidade ou do caminho certo”. Cantamutto ressalta que essa estabilidade é sustentada pela própria recessão do país, pelo ajuste fiscal - que induz a mais recessão - e por uma âncora cambial. 

A enorme redução das vendas, produto do colapso dos salários, junto com a recessão e a estabilização da taxa de câmbio - em um país com uma economia altamente dolarizada - foram os fatores que “desaceleraram a inflação”. Entretanto, de acordo com o economista, o programa do governo, além de criar sérios estragos sociais, baseia-se em fundamentos frágeis, pois “morde o próprio rabo”. 

“O ajuste fiscal está mordendo o próprio rabo com a queda na receita. A recessão não pode ser mantida indefinidamente sem que isso gere outros problemas. E se o governo quiser receber crédito, terá de ajustar a taxa de câmbio. Em todos esses aspectos, trata-se de um programa míope. E isso tem sido apontado por setores ideologicamente alinhados com o próprio governo”, explica.  

Um ano de governo minoritário

A irrupção da extrema direita argentina ocorreu após o surpreendente colapso das principais forças que tinham ordenado o mapa político até então. Nas eleições gerais de 2019, a coalizão peronista El Frente de Todos (A Frente para Todos), que enfrentava a tradicional direita Cambiemos, a coalizão organizada em torno de Mauricio Macri, obtiveram o 90% do total de votos. 

Entretanto, apenas quatro anos depois, após um governo supostamente progressista incapaz de cumprir suas promessas de campanha, em que as condições de vida da maioria foram notavelmente degradadas, não foi o Cambiemos que conseguiu capitalizar o descontentamento. Em vez disso, uma terceira força, sem qualquer base territorial, que estava realizando sua primeira eleição presidencial, conseguiu se impor, levando Milei à presidência.  

O sociólogo e jornalista político Pedro Lacour explica ao Brasil de Fato que a governabilidade de Milei durante este primeiro ano se baseou, por um lado, na fragmentação e fraqueza da oposição e, por outro, na capacidade da extrema direita de manter uma “decisão política firme”. 

“A comparação com o governo imediatamente anterior, o governo peronista da Frente de Todos, é o exemplo perfeito. Esse foi um governo sem capacidade de decisão política, paralisado por lutas internas".

Durante todo o ano, os “libertários” conseguiram governar sendo uma minoria no parlamento. A extrema direita tem apenas 39 dos 257 deputados na câmara baixa, enquanto conta somente com 6 dos 72 senadores na câmara alta. E, no entanto, apesar dessa fraqueza, conseguiu aprovar reformas importantes com a cumplicidade das várias oposições. 

Lacour afirma que a eleição do ano passado, com a qual Milei chegou ao poder, marcou uma mudança profunda no ciclo político do país, abrindo “algo realmente novo”. 

“Milei é o resultado de muitas transformações na sociedade que foram condensadas e aceleradas no ano passado. O Milei é o representante dessas mudanças e, ao mesmo tempo, acelera essas transformações”.

Vê a vitória eleitoral de Milei como uma espécie de “rebelião contra o sistema político” que tem governado a Argentina nas últimas duas décadas. Dessa forma, explica que a estabilidade do governo está condicionada à sua capacidade de sustentar uma narrativa que “o coloca fora da política e dos políticos em particular”.

“Enquanto Milei continuar aparecendo como um outsider aos olhos de grande parte da sociedade, sua mágica continuará a funcionar. Sua condição de 'antipolítico', em um sentido amplo, é atualmente sua principal força”, argumenta. 

Como ele explica, essa noção de “antipolítica” parece ser um quebra-cabeça composto de várias peças. Por um lado, a rejeição de um setor da sociedade em relação aos políticos, ao sistema partidário e ao que eles dizem representar. Isso é acompanhado de “um desânimo generalizado” que parece percorrer os setores sociais que não concordam com as ideias de Milei, mas que não encontram na oposição, envolvida em suas próprias disputas internas, uma alternativa viável ao governo. E, por fim, um crescente “desinteresse generalizado pela política”. Todos esses aspectos compõem as diferentes vertentes que Milei consegue capitalizar. 

“Nesse ponto, não se pode perder de vista o efeito disciplinador que o governo conseguiu instalar por meio da repressão violenta das mobilizações que se manifestaram contra suas medidas. A forte repressão, as prisões arbitrárias com condenações muito graves, acusando-os de terroristas, geraram um efeito de medo e desânimo, algo que o governo buscou desde o início”.  

Em contraste com a direita tradicional, Milei propõe “superar a antinomia entre kirchnerismo e antikirchnerismo” e substituí-la por um objetivo mais ambicioso que, em seus termos, implica “reformar a Argentina de forma estrutural”. Isso, para Lacour, “envolve os libertários em uma mística que lhes dá certa adesão”.    

Entretanto, o sociólogo considera que seria um erro “ficar apenas com a foto do momento”, ao mesmo tempo em que adverte que “as bases de Milei ainda são fracas”. Longe de qualquer impressionismo, ele adverte que o governo está “ultrapassado”, confundindo o cansaço da sociedade com um apoio a seu governo. 

De acordo com a última pesquisa de opinião realizada pela consultoria Zuban Córdoba, a imagem do governo permaneceu relativamente estável durante todo o ano, variando de 42% a 45% de opinião positiva. O número é surpreendente se levarmos em consideração que 68,5% dos entrevistados não acreditam que o ajuste esteja sendo “pago pela casta”, como Milei tinha prometido durante toda a sua campanha. Enquanto 80% dizem que são “as pessoas” que estão pagando o ajuste. 

Entretanto, quando as perguntas são direcionadas aos diferentes eixos com os quais a ultradireita pretende travar sua “batalha cultural”, as opiniões parecem estar contra o governo. 

Ao contrário das bandeiras defendidas pelos “libertários”, 74% das pessoas acreditam que os ricos devem pagar mais impostos do que os demais, enquanto 80% discordam da ideia de que o Estado não deveria existir. Enquanto quase 60% das pessoas não concordam com a privatização de todas as empresas e agências estatais.

“Quando ouvimos seus discursos e intervenções em fóruns de extrema direita, eles dizem que seu objetivo é travar uma 'batalha cultural', com a qual pretendem transformar a sociedade. Poderíamos dizer que estão 'intoxicados com um certo triunfalismo'. Depois de muitos anos de crise, o que temos é uma sociedade cansada, uma sociedade saturada com o que aconteceu na última década. É um erro confundir essa saturação, esse cansaço, com a simples adesão à extrema direita”.   
 

Edição: Rodrigo Durão Coelho