Coluna

Movimento inédito brasileiro de famílias psicodélicas tem a ‘benção’ de Rick Doblin e faz lançamento em Nova York

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O pesquisador Glauber Loures de Assis com seus filhos ao lado do cipó de jagube, um dos ingredientes da ayahuasca - Arquivo pessoal
O tabu das substâncias psicodélicas no Brasil está amparado pelo fundamentalismo religioso

Um casal de Minas Gerais, dirigente de uma igreja de Santo Daime, precisava ir viajar e decidiu contratar uma babá para ficar com as crianças. Ao visitar a casa onde trabalharia por alguns dias, a candidata à vaga demonstrou desconforto com o cruzeiro fincado no terreno (uma cruz de caravaca, símbolo do daime). A prosa continuou, mas só até ela saber que o casal tomava ayahuasca. Naquele momento ela pediu licença para consultar o pastor da sua igreja sobre a possibilidade de trabalhar de babá naquele ambiente. E a resposta do pastor foi não!

Claro que aqui temos também uma boa dose de intolerância religiosa, algo bastante presente em discursos realizados por supostos cristãos, porém, não é incomum famílias que usam substâncias como ayahuasca, cannabis e psicodélicos em geral enfrentarem uma enxurrada de preconceitos que contemplam proibições legais dos filhos em certos espaços, discriminação dos pais dos amigos e das escolas, silenciamentos sobre aquilo que lhe é sagrado por receio de represálias e também o apagamentos das famílias dentro de ambientes religiosos e ritualísticos onde se faz o uso dessas substâncias, mas não oferecem condições e estrutura para crianças - e automaticamente para as mães.

E foi pensando na necessidade de criar uma rede de solidariedade internacional para famílias psicodélicas que o casal de pesquisadores Glauber Loures de Assis e Jacqueline Rodrigues (o mesmo da história que abriu este texto) fundou a Psychedelic Parenthood Community. Sim, o nome é inglês de forma estratégica. Foi através do movimento de internacionalização do projeto que conseguiram fazer o lançamento da comunidade em Nova Iorque, em novembro deste ano, com a presença online de Rick Doblin, uma grande personalidade da renascença psicodélica na cultura ocidental e fundador da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), que de forma inédita entrou como grande apoiadora do Psychedelic Parenthood Community. Para quem não conhece, a MAPS ajuda cientistas a projetarem, financiarem e obterem aprovação regulatória para estudos de segurança e eficácia dos psicodélicos.

“O tabu das substâncias psicodélicas no Brasil está amparado pelo fundamentalismo religioso. A interdição do debate sobre psicodélicos e família é anticientífica e moralista. Então surgiu na gente essa necessidade de conversar com esses pais, mães e cuidadores para nos apoiarmos. E o mais interessante é que passei a notar nos eventos nacionais e internacionais sobre psicodélicos e em retiros espirituais que usam cogumelo, ayahuasca e etc, que, mesmo falando sobre união e inclusão, não oferecem espaço para as famílias, para as crianças, para os adolescentes, para as mães. O que só reforçou a necessidade de criar um grupo de acolhimento de quem vive esses apagamentos no campo dos psicodélicos”, afirma Glauber, que é doutor em Sociologia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), dirigente da igreja Divina Estrela de Santo Daime e diretor da Psychedelic Parenthood Community.

A ausência de espaço para as famílias é algo muito presente na vida de qualquer mulher que é mãe na sociedade moderna, onde crianças são vistas como empecilhos ou deixadas para segundo plano. Onde não cabe uma criança, automaticamente não cabe uma mãe. Porém, essa incoerência sobre bradar por união e a construção de uma nova era excluindo as novas gerações não dá para ser ignorada.

Jacqueline Rodrigues é mestre em Antropologia pela UFMG, cofundadora da Psychedelic Parenthood Community, madrinha da igreja Divina Estrela ao lado do seu marido, Glauber. Jacqueline é mãe e conhece de perto os danos da invisibilidade materna. 

“Existe um trabalho invisível, não reconhecido e não remunerado muito grande na maternidade, e as mães são socialmente cobradas por não estarem presentes o suficiente. Essa cobrança vem sem alternativas. Pois a maioria dos espaços psicodélicos, seja acadêmico ou cerimonial, não contempla a existência de famílias, de idosos, crianças e pessoas com deficiências, e isso acaba muitas vezes excluindo as mulheres destes espaços”, afirma Rodrigues.

A antropóloga explica que uma comunidade de famílias psicodélicas é uma oportunidade de tornar visíveis e audíveis vozes que normalmente são apagadas e silenciadas. “É a chance de compartilhar nossas histórias e exercitar a escuta ativa de outras histórias. Assim podemos entender que, para além das distâncias espaço-temporais e culturais, existem elementos que nos unem globalmente em nossa condição existencial de mães, cuidadoras e pessoas que fazem parte de comunidades que consagram plantas, fungos e outras substâncias expansoras da consciência.” 

O site do MAPS deixa claro que a comunidade de Famílias Psicodélicas não trata de oferecer ou dar psicodélicos para crianças, mas sim de construir junto  “um espaço seguro de trocas e de apoio mútuo a partir do reconhecimento de que as plantas professoras também tem uma dimensão educativa e podem nos tornar mães e pais melhores para os nossos filhos, e pessoas mais abertas à pluralidade e à desconstrução de padrões e comportamentos não saudáveis”, afirma a antropóloga.

A organização não tem fins lucrativos e mobiliza pessoas de diversas partes do mundo. Basta se inscrever gratuitamente pelo site para participar dos grupos, encontros e debates, tanto em inglês quanto em português. 

Se gostou da iniciativa, é possível fazer uma doação por meio do site do MAPS.

Edição: Nathallia Fonseca