em nome do lucro

Megaestrutura da soja descaracteriza rio Tapajós e ameaça pesca artesanal

Instalados em Santarém e Itaituba, portos de escoamento de grãos impactam biodiversidade e rotina de ribeirinhos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Ednaldo Ares dos Santos: uma vida dedicada à pesca diante de um futuro incerto para a atividade - Vitor Shimomura/Brasil de Fato

No feriado de 15 de novembro, a praia Beira Rio, na área urbana de Itaituba (PA), estava cheia. Uma família se reunia ao redor de uma churrasqueira, jovens ouviam música e crianças brincavam na areia. Sentados em cadeiras de praia, quatro salva-vidas vigiavam os banhistas que aproveitavam a tarde de folga para se refrescar nas águas do Tapajós, a poucos metros de uma barcaça verde parada na parte profunda do rio.  

A embarcação integra a megaestrutura instalada no município, destinada à movimentação de grãos, fertilizantes e combustíveis. É a dinâmica da soja, em busca de lucro, que toma conta da região, ameaçando o rio e suas dinâmicas de vida aquática, de lazer e de trabalho para a comunidadade.

Outras barcaças trafegam por ali e, à noite, as luzes brancas das Estações de Transbordo de Cargas (ETCs) – pontos de transferência dos produtos, dos caminhões para as embarcações – se destacam na margem direita do rio, onde está o distrito de Miritituba, na direção oposta de Itaituba.


Tarde de feriado na praia Beira Rio, em Itaituba: ao fundo, uma barcaça de transporte de grãos / Carolina Bataier/Brasil de Fato

A travessia de um lado a outro é feita por balsa, num trajeto que dura cerca de meia hora. Em pequenos barcos motorizados – as rabetas – a viagem leva a metade do tempo. Ali, na margem direita do Tapajós, ao lado do ponto de saída da balsa, o pescador Ednaldo Ares dos Santos atracou seu barco, na manhã de 16 de novembro. Aquele era o último dia para vender os pescados antes do início do período do defeso, quando a pesca e a venda de algumas espécies ficam proibidas, para favorecer a reprodução dos peixes.  

Desde a chegada das embarcações e dos portos, no entanto, a medida de proteção parece não ser suficiente para preservar a fauna aquática. O piau, peixe bastante presente no Tapajós, tem desaparecido, segundo o relato dos moradores da região. "Diminui devido ao fluxo das embarcação, né? (sic). Esse peixe subia de lá para cá, agora não tá mais subindo”, afirma o pescador.  

Santos nasceu em uma família de pescadores e se dedica à atividade desde a infância. Orgulha-se de ter conseguido, com a pesca, garantir o estudo dos três filhos, todos já adultos. Agora, com a chegada dos portos e das barcaças, o trabalho nas águas está cada vez mais difícil.

O mundo dos negócios contra a pesca artesanal

A primeira estação, da joint venture Unitapajós, composta pelas gigantes do agronegócio Bunge e Amaggi, foi instalada em 2013, de acordo com o relatório técnico A soja no corredor logístico norte, publicado em abril de 2024 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Depois, vieram mais três, todas pertencentes a empresas do agronegócio: a Companhia Norte de Navegação e Portos (Cianport); a Cargill e a Hidrovias do Brasil S.A. Além disso, há uma ETC flutuante do grupo Transportes Bertolini Ltda. Dessas estações, a carga é distribuída
para portos privados, de onde partem para países compradores da mercadoria.

“Dali pra baixo é tudo das empresas. Onde nós pegávamos nossos peixes, agora não pode mais”, conta o pescador, indicando a área dominada pelos portos, próxima da zona urbana de Miritituba, ao longo da margem do rio.   

Para instalar as estações e portos, as empresas derrubaram trechos de mata e limitaram os pontos de acesso à água. De acordo com Lany Cruz, secretária da Colônia de Pescadores Z 56, que atende cerca de 400 pescadores de Itaituba e outros municípios da região, a área controlada pelos portos na margem do Tapajós soma quase um quilômetro.  


À direita, porto na margem do rio Tapajós, no distrito de Miritituba / Vitor Shimomura/Brasil de Fato

“Antes o peixe passava na beira do rio, hoje não passa mais”, afirma Cruz. Quem antes pescava por ali, perto do distrito, agora precisa viajar por horas para encontrar o pescado.  

“A gente passava com a nossa rabetinha beirando, hoje em dia não pode fazer isso”, conta o pescador aposentado Lázaro Joaquim da Silva, morador de Miritituba e, assim, como Santos, praticante da atividade desde a infância. “Tem gente daqui que pesca no município de Aveiro”, diz. A viagem até lá, segundo Lázaro, é de cerca de três horas, em viagem de rabeta. 

A combinação entre desmatamento na margem do rio, trânsito de grandes embarcações e restrição do acesso às margens resultou em prejuízo para os pescadores. Antes da chegada dos portos, Santos conseguia garantir até 200 quilos de pescado em três dias de trabalho. Agora, no mesmo período, ele volta para casa com 40 quilos de peixe. 

"Na época que eu cheguei aqui, passava muito peixe. Eles moravam naquele buritizal, lá as malhadeiras embolavam de pescado. Hoje em dia não pega mais lá na beira do rio. Foi drástica a diminuição", diz Cruz. 

De acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), diariamente cerca de 1,8 mil caminhões, transportando um total aproximado de 84 mil toneladas de grãos, saem de Sinop (MT) em direção ao Eixo Tapajós, tendo como destino o porto de Santarém (PA), onde são descarregados e embarcados para o exterior.  

Em Miritituba, as cargas que chegam do Mato Grosso mudam de modal e são embarcadas em barcaças que seguem pela hidrovia do Tapajós até encontrar a hidrovia do Amazonas, também combinada com a do rio Madeira.

"Os portos se instalaram na rota do peixe. E aí, depois, foi passando o tempo, os peixes saíram da rota. Com isso, eles pegam menos peixe”, afirma Cruz, que acompanha a reclamação dos pescadores. 

Com as dificuldades, os pescadores, assim como os peixes, também foram desaparecendo. “Uns 5 anos atrás a gente ia para aí, a gente topava cinco, seis, sete canoas pescando. Agora você vai, não topa mais ninguém”, conta Santos.  

Empresas ignoraram consulta prévia, denuncia Ministério Público

Em 2016, o Ministério Público do Pará (MPPA) moveu uma ação civil pública em face da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, da Secretaria de Portos da Presidência da República, da Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq) e das empresas Rio Turia Serviços Logísticos, Hidrovias do Brasil e Cianport.

O documento aponta falhas no processo de elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) e denuncia a ausência de consulta prévia, livre e informada junto às comunidades impactadas pelas obras. 

Além dos pescadores e ribeirinhos, que sofrem com a limitação do acesso ao rio e a redução da quantidade de peixes, os empreendimentos causam impacto nas aldeias aldeias indígenas da Praia do Índio, Praia do Mangue e Sawré-Muybu, do povo Munduruku. A ação ressalta que, além de prejuízos na flora e fauna, os empreendimentos podem ocasionar o aumento populacional e dos limites urbanos, ameaçando as aldeias que ficam perto da cidade. Além disso, essas comunidades podem sofrer com o ruído das embarcações. 

“Os EIA/RIMA já elaborados desconsideraram a existência de aldeias indígenas e comunidades tradicionais atingidas pelo projeto das Estações de Transbordo de Cargas – até o presente momento, tanto empresa quanto órgãos públicos não anunciaram qualquer intenção na realização da consulta prévia”, informa o documento. 

A consulta prévia, livre e informada é um mecanismo de proteção de comunidades tradicionais, estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 2002. Na prática, isso significa que essas populações têm o direito de acompanhar e tomar parte em decisões sobre empreendimentos que impactem os seus territórios.  

Maria Zuleide, pescadora e esposa de Ednaldo, lembra de uma reunião, realizada no momento da chegada da Cargill no território. “Só que como a gente não entendia muito dos empreendimentos, a gente só ouviu”, diz.  

Em outro trecho, o texto da ação indica a falha dos órgãos públicos em realizar essa etapa do processo. “Ocorre que o Estado do Pará e a Antaq aprovaram esse empreendimento, tendo algumas empresas envolvidas dado início ao processo de licenciamento, sem consultar os indígenas e as populações tradicionais sobre os impactos em suas vidas”, informa o documento do Ministério Público. O caso está em trâmite na justiça. Enquando isso, as ETCs seguem em operação. 

Em Santarém, porto da Cargill transformou praia em espaço abandonado

O destino das embarcações que partem de Miritituba são os portos de Santana, no Amapá, e os municípios paraeneses de Barcarena e Santarém, onde, em 2003, a empresa Cargill instalou uma grande estrutura sobre a praia de Vera Paz, em área cedida pela prefeitura.

Antes da chegada da empresa, Vera Paz era um ponto de lazer para os moradores da região e território sagrado para indígenas e ribeirinhos. O porto funciona há 20 anos, tendo iniciado as atividades sem licenciamento ambiental, de acordo com estudos produzidos pela organização Terra de Direitos. A empresa atuou sem o documento por quatro anos.

A megaestrutura de escoamento de grãos fica no canto esquerdo da orla. O caminho até lá é feito por uma passarela de concreto que conduz a quiosques e uma quadra de basquete. Hoje, tudo está abandonado. O mato cresce pelas rachaduras do muro da quadra, os quiosques estão fechados e o lixo se acumula no mato ao redor.  “Aquela área era uma praia. Depois da Cargill, ela se transformou naquilo”, conta o comunicador popular Allan Hios.

No Facebook, o perfil Nostalgia Santarém publica fotos da praia onde é possível ver, sobre a areia clara, árvores e quiosques. Nos comentários da rede social, pessoas lamentam a mudança. "Nem dá pra acreditar que era a Vera Paz", escreve uma usuária do Facebook, numa foto em que três pessoas bricam na água esverdeada.

"Mas o que observo hoje é um acúmulo de mato na área, mesmo com a construção ainda resta areia por baixo, mas não limpam a área e fica aquela imagem de abandono", comenta outro usuário. 


Na página dedicada às lembranças de Santarém, pessoas manifestam saudades da praia onde Cargill instalou porto / Reprodução/Facebook Nostalgia Santarém

A ribeirinha Maria Ivete Bastos dos Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Município de Santarém, mora na comunidade rural de Dourado, na margem oposta do rio. Quando a praia ainda existia, ela costumava atracar ali sua canoa, nas visitas à cidade de Santarém. “O porto da Cargill veio devastando a nossa vida, a vida do povo de Santarém”, lamenta Bastos. Ela diz que o movimento das barcaças tirou a tranquilidade de quem trafega pelo rio. “O impacto é violento”.   

Ela lembra de quando a praia era um ponto de encontro dos moradores e de comércio para os pequenos produtores da região. “Aqueles barraqueiros que estavam aí ao lado instalado aí na do lado da praia Vera Paz, que tiveram que sair dessas barracas nunca foram indenizados por ninguém, aqueles que vendiam seus picolés pela praia, suas castanhas”, relata.

Além da Cargill, outras três empresas do agronegócio estão em processo de construção de portos no município, de acordo com um estudo a Terra de Direitos. Uma das obras é de responsabilidade da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps), cujo relatório de impacto ambiental foi publicado em outubro do ano de 2015. A construção de outros portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que tem plantações na região centro-oeste do Brasil.


Na feira, Maria Ivete Bastos dos Santos exibe os frutos colhidos na comunidade onde vive, à margem do rio Tapajós / Carolina Bataier/Brasil de Fato

Na tarde do domingo, dia 17 de novembro, Bastos vendia produtos na Feira da Produção Familiar do Baixo Amazonas (Fepam), em uma praça em Santarém, ao lado de outros produtores da agricultura familiar. Com orgulho, mostrava as frutas colhidas na sua comunidade: banana, mamão, limão e sapotilha.

Para chegar até ali, veio de canoa, agora atracada em outro ponto, longe da praia de Vera Paz. “A gente achava que tudo era nosso por direito, a gente acreditava porque nunca teve conflito para quererem tomar a nossa terra. Nossa terra era demarcada por uma árvore. É uma cuieira, ou é uma seringueira, uma laranjeira, alguma coisa. Até ali é o meu, dali para frente é do vizinho. Essa foi a demarcação de respeito”, finaliza.  

Edição: Rodrigo Chagas