O que temos de novo? A crescente e pujante concentração das apostas feitas de forma plataformizada
Por Bruno Vieira Borges e Gabriel Yukio
Milhares de brasileiros viajam anualmente para viver o sabor de apostar em Las Vegas. Talvez não seja descabido especular que a figura-modelo do apostador se aproxime justamente daquelas consagradas pelos filmes hollywoodianos. De um lado, o gênio das análises combinatórias que enriquece às custas de saber ler como ninguém o baralho. Do outro, o perdulário das férias delirantes que se realiza como indivíduo no prazer de sentir, como falava Johan Huizinga, a “totalidade do jogo”: o fato de o divertimento produzido por ele não ser redutível a análises puramente racionais.
No entanto, não fazem apostas apenas os super-ricos capazes de acessar as vias rápidas da vida social ou, então, os entusiastas do “american way of life”, com seus cassinos, roletas e fichas de pôquer. Há uma cultura de aposta com características também brasileiras. Por ser espaço de sociabilidade do jogo do bicho, do truco e/ou das sinuquinhas, o boteco, por exemplo, sempre orbitou o “incitar à competição” através da verbalização de posições específicas de hierarquia (“você é meu pato”, “chegou o meu freguês”, “eu sou o seu pai”). O desejo de desafiar o outro, vencê-lo e, consequentemente, zombá-lo é historicamente mapeável e culturalmente significativo para grande parte dos brasileiros.
O que temos de novo? A crescente e pujante concentração das apostas feitas de forma plataformizada, sobretudo em torno dos eventos esportivos. Em setembro de 2024, Fernando Haddad, o Ministro da Fazenda, declarou que estaríamos vivendo uma pandemia das apostas, uma “dependência psicológica dos jogos”. Era o lado soturno e não aprofundado do raciocínio de Platão, para quem a vida deveria ser vivida como um jogo, pois o jogo é capaz de dar conta da vida, que se estende desde o nível abaixo da seriedade até o mais elevado do belo e do sagrado. Não vamos entrar, aqui, nos pormenores legais do processo em andamento de regularização das bets esportivas. De toda maneira, o tal do “fazer sua fezinha” tornou-se uma questão central para o estado nacional brasileiro.
Ao mesmo tempo, a figura do “tipster”, aquele que fornece informações regulares com o objetivo de formular prognósticos acerca dos resultados mais possíveis dentro de um regime de apostas, vem passando por um processo agudo de especialização. Aproximando-se do fenômeno do coaching, não raramente, ao navegar pela internet, nos deparamos com cursos oferecidos por tipsters. Desde inegáveis picaretas até sujeitos que estudam a fundo o balanço das probabilidades, os apostadores de eventos esportivos parecem, nesse sentido, se aproximar do universo daqueles que alocam seus recursos no mercado de ações. De acordo com a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), as aplicações financeiras no mercado de ações somaram R$ 7,22 trilhões até o fim de setembro de 2024. O montante representa um aumento de 11,5% em relação ao volume investido até o término de 2023.
Certamente, os diversos influenciadores “economistas”, que anunciam aos montes suas aulas e dicas pagas, prometendo ganhos e avanços para a “liberdade financeira do indivíduo”, contribuíram para o interesse da população no assunto. Devemos ao menos nos perguntar: diz algo o crescimento das aplicações financeiras no mercado de ações ser temporalmente paralelo ao crescimento das bets esportivas em plataformas? Estaríamos vivendo um rearranjo das escolhas de alocação de dinheiro por parte dos brasileiros, anteriormente mais afeitos aos regimes de poupança? Seria uma readequação do sonho brasileiro do enriquecimento súbito? Ou, então, uma expressão do fenômeno da própria excitação que sentimos quando concretizamos uma segunda ponte para a competição, isto é, fazemos existir um jogo dentro do jogo?
Ver ao final de uma partida de futebol que a quantia inserida no aplicativo se multiplicou “instantaneamente”, porque se acertou os fatos necessários para a aposta vingar, projeta um novo elemento para o mapa das rivalidades clubísticas: a possibilidade de encarar a vitória do rival como a consumação de um vínculo que é, em suma, financeiro, pautado por um cálculo feito com base em um conhecimento futebolístico que se imagina ter. De fato, precisamos notar que há um gradiente em torno do perfil de quem aposta. Podemos ter um palmeirense que apenas aposta em jogos de seu time, procurando, através disso, atestar uma espécie de crença apaixonada na vitória do Verdão. Igualmente, porém, podemos ter um palmeirense que encontra no ato de apostar uma espécie de crença racionalizada, isto é, mediada mais pela expectativa de retorno financeiro do que por uma evocação da fidelidade de seu pertencimento clubístico.
Este último palmeirense, talvez, não encontrasse tanto problema em tentar surfar numa boa fase do rival Corinthians, encontrando nela, na verdade, simplesmente um aporte mais seguro e confiável para o seu dinheiro naquele momento. São por causa dessas várias possibilidades de como encarar em aposta os fatos de uma disputa esportiva que as plataformas de apostas crescem em adesão. Elas possibilitam que se ponha até as minúcias esportivas em jogo. Se antes, na Loteria Esportiva da Caixa Econômica, as apostas costumavam circunscrever-se aos placares finais, agora, nas plataformas de apostas esportivas, os usuários podem especular também em torno de coisas como: o número de escanteios, de cartões amarelos e vermelhos, de finalizações, de gols, e assim por diante.
O apostador pode, ademais, combinar diferentes modalidades de aposta para refinar sua cotação (ou sua odd, como se diz): “espero que o jogador X faça gol no primeiro tempo e seu time vença por 2 ou mais gols” ou “espero que na rodada o Bahia vença o Atlético Mineiro, o Corinthians vença o São Paulo e o embate entre Internacional e Grêmio acabe sem gols”. Para se vislumbrar a força das casas de apostas esportivas no Brasil atualmente: quinze dos vinte clubes do Campeonato Brasileiro da Série A as possuem como patrocinador máster (sem contar quando elas aparecem como patrocinadores menores). Há dez anos, no mesmo torneio, nove dos vinte clubes possuíam como patrocinador máster a Caixa Econômica, um banco público.
No balanço das probabilidades, as cotações ou odds variam desde as possibilidades de perder ou ganhar pouco dinheiro até as possibilidades de perder ou ganhar muito dinheiro. De modo semelhante, trazendo novamente para o mundo financeiro, é possível aplicar em renda fixa ou, então, em renda variável, como as ações e criptomoedas, que possuem uma taxa de crescimento potencialmente maior, mas igualmente com possibilidades de perdas mais elevadas. A existência de uma variedade de aplicativos tanto de plataformas de apostas esportivas quanto de corretoras de investimento é outro ponto de semelhança; ambos facilitam o acesso rápido à movimentação financeira, estimulando-a.
Apesar das apostas esportivas e do mercado de ações serem práticas consideravelmente antigas, seus espraiamentos massivos na contemporaneidade estão ancorados na midiatização da sociedade, sobretudo, por meio da presentificação causada pelo uso dos smartphones. Ainda assim, a prática de aposta esportiva possui uma vantagem cultural em relação à prática de aplicar recursos no mercado de ações. Esta última não está vinculada, no Brasil, a um conhecimento com a capilaridade que tem o conhecimento futebolístico, cuja linguagem é de domínio bastante difuso, porque se aproxima do espetáculo das massas, da ritualização do cotidiano e da própria identidade nacional. Estes são, portanto, alguns breves dilemas da modernização da aposta esportiva, que, em agosto de 2024, somou aos seus cofres mais de R$ 3 bilhões advindos somente dos beneficiários do Bolsa Família.
** Este é um texto de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca