“Eu digo que sou filha e neta da fome, porque minha mãe e minha avó deixaram o Nordeste fugindo dela. Mas sou mãe da esperança, porque eu vou dizer para minha filha que eu vim de um encontro de mulheres corajosas, valentes, amorosas, sofridas e determinadas, que faz possível nos encararmos e enfrentar a fome.”
O relato foi feito pela coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Glaucia Nascimento, durante o IV Encontro Nacional das Mulheres Camponesas, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Realizado na cidade de Salvador (BA), entre os dias 3 e 6 de dezembro, o encontro que teve como tema “Abastecer, Lutar, Construir o Projeto Popular!”, reuniu mais de mil mulheres de 18 estados. Juntamente ao encontro aconteceu a Feira Camponesa das mulheres do MPA.
“Nós somos a maioria nos movimentos sociais, somos a maioria do eleitorado, somos a maioria de quem faz esse mundo girar, aliás, esse mundo só tá de pé graças a vocês”, afirmou Glaucia, que juntamente com a coordenadora do MPA, Isabel Ramalho, participou da mesa que debateu o papel das mulheres na produção de alimentos.
Em sua intervenção, a coordenadora ressaltou a luta do movimento pela reforma urbana. “Todo mundo merece ter um teto para chamar de seu. Precisamos de casa digna, transporte digno, direito à cidade como um todo. A cozinha é o coração da ocupação, fazemos isso há 27 anos.”
De acordo com ela, há pelo país 60 cozinhas do MTST, que já entregaram quase seis milhões de refeições. Os espaços, destacou, vão além de “matar” a fome, são espaços de aulas para crianças, adultos, algumas com horta. “Elas são distribuidoras populares de agroecologia, de comida sem veneno. Graças ao trabalho que construímos, agora temos política pública sobre o assunto, apesar da luta não ter terminado. Tem muita cidade que tem restaurantes populares, mas quem está com fome nas periferias nem sempre tem dinheiro para chegar nesses restaurantes.”
Ao Brasil de Fato RS, a coordenadora destacou que o MPA e o MTST são parceiros há bastante tempo. “Quando o MTST pega as nossas cozinhas nas ocupações e coloca nas periferias para combater a fome, o MPA foi um grande parceiro. Desde o inicio nossas cozinhas do Rio de Janeiro conseguem fornecer comida de verdade graças a essa união, do campo e da cidade.”
O MTST está no Rio de Janeiro há 10 anos, e entre as conquistas Glaucia pontuou a aprovação do Minha Casa Minha Vida-Entidades para a ocupação 6 de abril de 2010, referente ao desastre climático do Morro do Bumba. “A gente faz essa ocupação para denunciar os desabrigados, as pessoas que foram atingidas por esse desastre. Hoje essas pessoas conseguiram, com o apoio do movimento, com as ocupações, com uma luta de muito tempo, a aprovação do projeto. Estamos em vias de começar as obras. O desastre climático é uma fábrica de sem tetos, o MTST está lutando contra isso.”
No combate à fome
“Nós mulheres somos responsáveis mundialmente pela produção de mais de 90% da alimentação. Isso afirma que a construção do Feminismo Camponês Popular é urgente e necessária. Para que os alimentos sejam produzidos com amor, saúde, cultura, então quem produz tem que estar bem. Não podemos produzir alimentos saudáveis com relações doentes”, enfatizou Isabel.
De acordo com dados de 2018, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as mulheres rurais são responsáveis por 45% da produção de alimentos no Brasil e nos países em desenvolvimento. “Na maioria dos casos, elas trabalham tanto no campo como em casa, cerca de 12 horas semanais a mais que os homens. Ainda assim, somente 20% delas são proprietárias de terras”, pontua a entidade. No Brasil, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, 1,7 milhão de mulheres estão na gestão ou codireção de propriedades rurais.
“Dentro da luta pela soberania entra o combate à fome. Para produzir precisamos da reforma agrária. Essa terra que era para produzir alimentos está nas mãos do agronegócio. Temos que discutir como vamos lutar pela reforma e também o acesso à água e outros bens naturais e contra a privatização”, apontou Isabel.
No contexto da produção de alimentos, continuou a liderança, são as mulheres que lidam com as “miudezas”, a diversidade, e lá está a alimentação. “Diversidade de conhecimentos e saberes. A feira camponesa foi expressão dessa diversidade. As sementes também passam por nossas mãos. A saúde também. Nossa tarefa de produzir alimentos, nessa aliança operária e camponesa, aparece fortemente a tarefa do abastecimento popular.” A coordenadora citou a missão Josué de Castro (médico, nutrólogo, professor) e a afirmação que ele fez de que a fome é uma decisão política.
“Enquanto não mudar, o sistema não vai acabar. Temos que mexer na estrutura. Massificar a produção agroecológica. Considerar, valorizar a cultura alimentar das regiões, a alimentação local. Precisamos sair da invisibilidade, juntar as miudezas e valorizar. O campesinato, a partir da produção agroecológica, é quem pode tirar a fome. Para isso, vamos ter que fazer grandes lutas, com muita gente na rua. Exigir políticas públicas que não vêm. Ampliar a capacidade de luta pela terra e território.”
As mulheres e a construção do Poder Popular
Já na quinta-feira (5), o encontro debateu o papel das mulheres e a construção do poder popular, com a integrante do Congresso de Los Pueblos, da Colômbia, Luz Angela Roja, e a coordenadora do MPA, Jucilene Xavier.
Luz ressaltou que é preciso pensar de construção do poder popular não só para o Brasil, mas também para um projeto da América Latina. De acordo com ela, a nossa proposta de poder popular inicia com a capacidade de ter consciência que é preciso lutar contra o capitalismo. E, nessa luta, prosseguiu, enfrentar o machismo e o patriarcado. “Precisamos escutar as vozes de muitas. Esperança, esse encontro é o resgate e o reconhecimento de todas elas. Não se faz sozinha, nem no individual e nem só com as mulheres. Temos que fazer com as outras/outros/outres. Temos que estar na construção da proposta de sociedade.”
Conforme pontuou, a referência do movimento é o território: desenvolvimento de autonomia e autogestão. “A direita está se reestruturando com o agronegócio, mas nós temos o território e nos territórios temos muita coisa a ser feita. Temos resistido e criado alternativas ao agronegócio: agroecologia, cozinhas comunitárias [...] Pensarmos propostas de território a partir do projeto popular. Temos a chave: a solidariedade vai quebrar o capitalismo. É preciso compreender o território na complexidade. Pensar o trabalho popular é um chamado para pensar também desde as mulheres”, ressaltou.
Entre os desafios, a liderança disse que é preciso evitar cair nas armadilhas do capitalismo e construir um feminismo camponês e popular. Como também sair dos territórios para disputar o projeto de sociedade. “Ocupar os espaços políticos. Não queremos deixar o nosso cantinho, mas devemos fazer, e nossas organizações têm que garantir as condições. Recuperar nossa autonomia e subir o teto de luta. Construir para além do estado. Nossa luta independe dos governos. Temos que tecer juntas.”
Trabalho de base
“Quando falamos em poder popular, estamos falando de algo que vai além de uma ideia ou de um conceito teórico. Falamos de um projeto de transformação concreta, que coloca a força e a vontade do povo como ponto central para essa tal revolução. E esse poder popular não se materializa em outro lugar, que não seja nossos territórios, nas nossas comunidades”, afirmou Jucilene.
Ela também lembrou a trajetória do movimento ao longo dos anos, em especial da defesa dos territórios. “Resistimos ao avanço do agronegócio, que tenta diariamente expulsar nossas famílias de suas terras, que envenena nossos alimentos, que mata diariamente. Resistimos ao patriarcado, que nos quer submissas e invisíveis, trabalhando muito, mas sem reconhecimento. E resistimos à lógica capitalista, que transforma tudo em mercadoria. Mas não resistimos apenas, construímos. A partir do trabalho de base, da organização das cirandas infantis, das campanhas de sementes crioulas, e da agroecologia como prática e como horizonte, mostramos que outro modelo é possível, a partir dos nossos quintais, das nossas cooperativas, da nossa arte.”
Por fim, frisou que é preciso potencializar o que já se tem de concreto e formar "novas sonhadoras/construtoras, ampliar nossas experiências e evidenciá-las. E para isso nós precisamos firmar o compromisso com a retomada massiva do nosso trabalho de base. Cada mulher que está aqui precisa ter o compromisso coletivo de construir outras, de trazer outras.”
Comungando da mesma luta
“É muito bom e muito importante para a gente se encontrar, encontrar a mulherada, encontrar outras camponesas que a gente olha, se inspira, comunga e que a gente sabe que vem construindo esse projeto que é o feminismo camponês e popular. Trazendo a sua produção, trazendo o seu artesanato, sua alegria, sua mística, enfim. Foi mágico, transformador e muito inspirador. E, sobretudo, uma carga de energia para que a gente volte para os nossos estados e possa seguir construindo com outras companheiras”, afirmou a integrante do projeto Raízes do Brasil, do MPA do Rio de Janeiro, Andressa Paiva.
“Eu amei estar aqui, me fortaleci muito com esse encontro. Já faço esse trabalho na minha comunidade há muito tempo e esse evento só fez enriquecer mais o meu conhecimento. Nossa barraca foi um sucesso, foi a que mais teve diversidade do estado do Pará”, afirmou orgulhosa a feirante Naciléia Carneiro Ferreira, da Ilha do Marajó (PA), que pela primeira vez esteve no encontro do MPA.
“Para mim o encontro foi muito satisfatório, gratificante. Que venham outros momentos como esse. A vida da mulher no Piauí é ralada, sofrida. A gente trabalha só com a produção da agricultura, tudo orgânico, manual. Todo o trabalho é manual, paçoca e a cocada tirada no pilão. Espero voltar para casa sem nada”, comentou a feirante do Piauí Creuza Maria da Silva de Souza Santos.
“Ás vezes, a mulher, ela foi criada assim: mulher é só para cuidar de casa, e não é. A mulher tem seu espaço em qualquer lugar que ela quiser chegar. Ela vai ter que tirar essa timidez fora e essa coisa de que ela tem que ficar só em casa. A mulher pode pilotar avião, a mulher pode fazer tudo. Esse tempo acabou de mulher só do tanque para o fogão. É para isso que temos que chegar lá”, afirmou a quilombola de 76 anos, Maria Gonçalves de Freitas. Moradora do quilombo Zumbi dos Palmares, Senhor do Bom Fim, Bahia.
Mãe de sete filhos, 34 netos e 27 bisnetos, Maria afirmou que movimento é para acabar com esse racismo, com o preconceito. “Temos que ter liberdade, sermos livre.”
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko