Após a queda do regime de Bashar Al-Assad e a tomada do poder pelos rebeldes islamistas na Síria, a Rússia, que sempre foi uma importante aliada do presidente deposto, está em alerta com os rumos do Oriente Médio.
Além de possuir duas bases militares no país, a aliança da Rússia com a Síria representa uma grande importância geopolítica, servindo como contenção da influência dos EUA na região. Agora, com a chegada dos rebeldes, liderados pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS) - organização considerada como terrorista tanto pela Rússia, quanto pelos EUA -, o futuro da presença russa na Síria e da relação entre os dois países é uma incógnita.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político especializado em Irã, Nikita Smagin, aponta que a presença russa na Síria é encarada por Moscou como “um importante ativo que permite exercer influência no Oriente Médio”.
De acordo com o analista, um dos principais sinais disso, para a avaliação russa, é o fato de que, no início da guerra da Ucrânia, Israel não manifestou apoio militar direto a Kiev. Smagin observa que a presença da Rússia na Síria lhe deu um trunfo para que Israel precise acionar Moscou para ter alguma espécie de mediação em relação ao Irã, por exemplo. “Isso reforça que esses ativos são muito importantes para a Rússia hoje e podem ser muito mais úteis no futuro”, acrescenta.
Cronologia da reação russa
No último sábado (7), um dia antes da queda do então presidente sírio Bashar Al-Assad, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, ao participar do Fórum de Doha sobre a situação síria, classificou os rebeldes que protagonizaram a ofensiva na Síria como “terroristas”.
“Estamos absolutamente convencidos de que é completamente inaceitável utilizar terroristas para atingir objetivos geopolíticos, como está sendo feito agora [na Síria]”, declarou.
No domingo, Assad caiu e recebeu asilo na Rússia, concedido pessoalmente pelo presidente Vladimir Putin. No mesmo dia, a bandeira da República da Síria foi retirada da embaixada do país árabe e substituída pela bandeira das três estrelas vermelhas, antiga bandeira síria que foi adotada pela oposição do país para representar a resistência à dinastia Assad.
Se um dia antes da queda de Assad, a retórica russa era de classificar forças da oposição síria, em particular, o grupo HTS, como terrorista, com a surpreendente e rápida tomada de poder no último domingo, o Kremlin modulou o discurso e passou a se referir aos rebeldes sírios como “oposição armada”.
Adotando um tom de pragmatismo, o porta-voz de Kremlin, Dmitry Peskov, negou que a reviravolta na Síria representou um enfraquecimento da Rússia no Oriente Médio e disse que Moscou vai estabelecer contatos com as forças políticas que governarem a Síria. Segundo ele, a Rússia “não pode evitar o contato com aqueles controlam a situação no terreno”. “Porque, repito mais uma vez, lá estão as nossas instalações, o nosso povo em primeiro lugar”, completou.
Esta perspectiva de preservação da presença russa na Síria, buscando estabelecer pontes com os rebeldes que assumiram o poder no país, foi confirmada pela diplomacia russa na última quinta-feira (12). O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Bogdanov, declarou que Moscou fez contatos diretos com o comitê político do HTS, e as partes estão avançando numa direção construtiva.
O diplomata acrescentou que Moscou espera manter as suas bases militares na Síria. “As bases permanecem em território sírio, onde estavam. Ainda não foi tomada qualquer outra decisão. As bases estavam lá a pedido das autoridades sírias, o objetivo era combater os terroristas, contra o ISIS [Estado Islâmico]. Eu parto do fato de que todos concordam que a luta contra o terrorismo e os remanescentes do ISIS não terminou, e neste sentido a nossa presença e base em Khmeimim desempenhou um papel importante no contexto da luta global contra o terrorismo internacional”, disse Bogdanov,
Bases militares russas
A presença de bases militares russas na Síria - uma aérea e uma naval - está inserida no contexto da histórica relação que Moscou tem com Damasco desde os tempos da Guerra Fria, durante o governo de Hafez Al-Assad, pai de Bashar Al-Assad, quando foi estabelecida a base naval de Tartus, se mantendo até hoje sob controle de Moscou e consolidando um ponto estratégico no Mar Mediterrâneo para a Rússia.
A herança desta relação teve importância crucial para o apoio russo à Bashar Al-Assad durante a Primavera Árabe e a Guerra Civil na Síria, que levou à criação de Base Aérea de Hmeimim, em 2015, quando a Síria convidou a Rússia para participar das operações militares contra rebeldes e grupos fundamentalistas.
Em um contexto mais amplo, esta presença militar russa durante os últimos anos na Síria faz parte de uma estratégia geopolítica mais ampla que une a consolidação da influência russa no Oriente Médio e o seu prestígio de potência global - o que ganhou mais importância após a guerra da Ucrânia e o isolamento provocado pelo Ocidente.
Esta relação permitiu a manutenção de Assad no poder e exerceu a função de um contrapeso da Rússia aos avanços da influência ocidental no Oriente Médio. Agora, no contexto da reviravolta do poder na Síria, os esforços da Rússia em manter as pontes com a Síria, independente de quem se consolide no governo, estão ligados à prioridade russa de manter a estrutura destas bases operando.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de Relações Internacionais da UFRJ, Fernando Brancoli, observa que os rebeldes que assumiram o governo “não vão ter muito interesse em retirar estas bases da Rússia”. De acordo com ele, para Moscou isso está enquadrado em uma grande estratégia maior que é “a garantia e a manutenção de que o poder naval russo vai ter espaço para se consolidar e para projetar poder”. “Me parece que a Rússia vai tentar costurar um acordo nesse sentido”, completa.
O pesquisador destaca outro ponto importante que faz com que a Rússia tenha uma atenção especial sobre a Síria e não possa abrir mão de exercer uma influência sobre os processos políticos do país: o histórico problema da Rússia com o fundamentalismo islâmico em regiões separatistas da Federação Russa.
“A Rússia tem problemas históricos internos com o fundamentalismo islâmico, e principalmente na região da Chechênia. Você tem uma série de reflexões e pesquisas dizendo que há uma circulação de fundamentalistas entre estes espaços, dos que treinaram na Chechênia e vão para a Síria, e vice-versa, pessoas que estiveram na Síria e resolvem ir para a Chechênia”, aponta Brancoli.
“Então se esse novo governo sírio não vai ser tão aliado (da Rússia) quanto foi Assad, que pelo menos seja um governo que tenha de alguma maneira controlados tais grupos para que não gere problemas e complicações para a Rússia no futuro”, completa.
Ao mesmo tempo, como observa o professor de Relações Internacionais, a Rússia tem motivos para ficar em alerta neste sentido, porque, apesar dos esforços da liderança do HTS de buscar produzir uma imagem mais conciliadora, a tomada de poder dos rebeldes carrega consigo sinais de radicalização fundamentalista.
“Em Aleppo, membros desse grupo brandiam bandeiras que eram tipicamente usadas pelo Estado Islâmico. A gente tem falas de membros do HTS, desse grupo que chega ao poder, dizendo que a Sharia vai ser agora a nova Constituição da Síria. É claro que são narrativas muito contraditórias, na medida em que a liderança principal diz ‘não, a gente vai ser um governo secular’, e dentro dessa lógica, esse tipo de medida não vai funcionar. Mas acho que tem aí um alerta importante dentro deste tipo de questão”, acrescenta.
Ofensiva de Israel
A preocupação da Rússia com as suas estruturas militares na Síria não tem a ver apenas com o tipo de política que será adotada pelo novo governo, mas também com a atuação dos países vizinhos.
Durante a semana, Israel realizou centenas de ataques aéreos contra o território sírio, expandindo o controle que já exerce na região das Colinas de Golã. Um dos alvos dos ataques foi a frota naval síria, em região próxima às bases militares russas. A chancelaria russa condenou as ações israelenses.
“As ações das forças armadas israelenses, que tomaram a zona tampão na área das Colinas de Golã e em uma série de áreas adjacentes, violam claramente os termos do acordo sírio-israelense de 1974 sobre a separação de forças. E, claro, as ações da Marinha israelense, que está realizando ataques massivos com mísseis e bombas contra alvos militares e civis em território sírio, estão causando sérias preocupações à comunidade internacional. Estas ações militares obviamente não servem o propósito de estabilizar a situação na Síria e, pelo contrário, agravam ainda mais a situação já extremamente difícil que se desenvolveu nos últimos dias neste país”, disse a porta-voz Maria Zakharova.
Israel justifica os ataques afirmando que eles visam as estruturas militares do governo de Assad, e os ataques seriam uma forma de minar os rebeldes de se apoderar dos armamentos sírios e atingir Israel no futuro. No entanto, como afirma Fernando Brancoli, esta justificativa de defesa veio acompanhada de declarações ministros do Netanyahu “dizendo que isso estaria enquadrado na construção de uma 'Grande Israel', revelando, assim, uma política expansionista em meio a um vácuo de poder.
“Me parece que Israel combina os interesses de defesa e segurança com uma narrativa de expansão, de um território que seria inclusive biblicamente pertencente à 'Grande Israel'. O que me parece que o governo (israelense) está fazendo agora, de uma maneira muito pragmática, apesar de dentro do direito internacional ser ilegal, é se aproveitar de um momento de vácuo político, de incapacidade do governo de atuar, na medida em que a gente teve a queda do Assad e a chegada do Al-Jolani agora muito recente, para avançar interesses estratégicos”, completa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho