Quem chega ao Morro dos Prazeres, nas proximidades do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, avista um jardim no meio do deserto: trata-se da Horta dos Prazeres, iniciativa popular dos hortelões urbanos do Morro. O local, que antes era um ponto onde os moradores jogavam lixo e entulho, virou uma horta comunitária durante a pandemia.
Segundo o Mapeamento de Desertos e Pântanos Alimentares do Governo Federal, a região do Morro dos Prazeres conta com um número muito alto de população de baixa renda e em situação de pobreza. E é considerada tanto um deserto (uma vizinhança que não tem acesso à alimentação saudável) quanto um pântano alimentar (território onde a oferta de alimentos não saudáveis e ultraprocessados é facilitada).
“Aqui é um deserto alimentar. Para dentro da comunidade, é só pacote. Não tem a variedade de alimentos que a gente precisa e o preço nem sempre é acessível. Nós discutimos muito sobre como a gente seduz as pessoas daqui para esse estilo de vida. Para isso, a gente tem que procurar estratégias que nos unam e que nos levem de volta ao comunitarismo. E a gente tem feito isso a partir da terra”, comentam Wellington Fyah e Jovelino Dan K, integrantes do coletivo da Horta dos Prazeres, que também promove mutirões, iniciativas culturais e eventos com atendimento nutricional para os moradores. Eles explicam que a horta, além de fomentar o acesso à alimentação saudável no Morro, tem se tornado uma área de lazer para o bairro, que também sofre com a falta de infraestrutura urbana.
No Rio de Janeiro, cidade onde quase um milhão de pessoas enfrentam a fome, as hortas urbanas são grandes potencializadoras da soberania alimentar. Pesquisadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA) da Fiocruz-Brasília e uma das organizadoras do caderno "Desertos, Pântanos e Oásis Alimentares", Erica Ell destaca que essas hortas, ao mesmo tempo que produzem comida fresca e saudável para a população, também favorecem a participação ativa da comunidade na produção de alimentos: “Elas são uma forma de socialização muito importante no sentido de favorecer essa troca solidária entre as pessoas. Plantar, produzir e colher é uma forma de lazer, principalmente em comunidades vulneráveis, onde o lazer costuma ser muito restrito, especialmente para as crianças e adolescentes", pontua Erica.
Hoje, a Horta dos Prazeres é beneficiada pelo programa da prefeitura Hortas Cariocas, que fornece suporte técnico e financeiro para iniciativas de agricultura urbana na cidade. Metade da produção gerada pelo programa é doada para creches, orfanatos, asilos, abrigos e famílias em situação de vulnerabilidade do Rio. A outra metade é comercializada, como uma forma de complementar a renda dos hortelões, que são remunerados para cuidar dos espaços.
A menos de 10 quilômetros dali, no Morro da Babilônia, a chef paraibana Regina Tchelly põe em pé, desde 2011, o Favela Orgânica - um projeto que capacita moradoras das comunidades da Babilônia e do Chapéu Mangueira por meio de aulas e oficinas de gastronomia criativa, horta, compostagem, conscientização ambiental e educação financeira. Além disso, a iniciativa também oferece atendimento psicológico e nutricional e distribui mensalmente 160 cestas com alimentos orgânicos para as participantes.
Regina, que começou o projeto com apenas R$140 na cozinha de sua casa, ensina uma culinária de aproveitamento total dos alimentos, transformando os "restos" que iriam para o lixo em receitas como cocada de casca de melancia, hambúrguer de talos e risoto de PANCs. Ela comenta que o projeto tem democratizado o acesso à alimentação saudável na região - que também é considerada um deserto alimentar conforme o Mapeamento de Desertos e Pântanos - e tem sido um verdadeiro "consultório" para os moradores das favelas: "As doenças são muito consequência da nossa alimentação. A gente quer tirar da cabeça delas que o industrializado é mais barato, e temos visto resultado. Mulheres que estavam com colesterol ‘ruim’ em mais de 400 mg/dL, baixaram para 100 mg/dL".
Na pandemia, período em que o Brasil voltou ao Mapa da Fome, o Favela Orgânica exerceu um papel importante no combate à insegurança alimentar nas comunidades, distribuindo mais de 10 mil quentinhas orgânicas e vegetais.
Foi também durante a pandemia de Covid-19 que as cozinhas solidárias, geridas pela sociedade civil e por movimentos populares, ganharam força no enfrentamento à fome nas periferias dos centros urbanos do Brasil. Em Campinas, no bairro São Marcos - classificado por um estudo da Unicamp como um pântano alimentar - a Cozinha Solidária do São Marcos distribuí entre 500 e 600 refeições por dia para a comunidade.
Idealizada e coordenada pelo padre Antonio Rodrigues Alves, a Cozinha surgiu em junho de 2021 e é uma ação conjunta do Núcleo de Economia de Francisco e Clara, da Arquidiocese de Campinas e do acampamento Marielle Vive do MST, que leva cinco militantes para cozinhar todos os dias. A iniciativa também conta com o apoio de parceiros, doadores e voluntários que ajudam na missão de promover uma alimentação de qualidade para quem tem fome: “Nós temos uma preocupação com a segurança alimentar e nutricional, então a gente não serve embutidos e ultraprocessados aqui, porque esse tipo de alimento já chega para as pessoas. Eles estão ficando cada vez mais baratos e muitas vezes é o que eles podem comprar”, comenta o padre.
Além de servir as refeições três vezes na semana, a Cozinha do São Marcos também promove oficinas de panificação como uma forma de incentivar a geração de renda; mutirões para cuidar da horta comunitária e rodas de debate: "O nosso objetivo é combater a fome. Quem tem fome tem pressa. Então, a gente dá comida e depois a gente combate também com a consciência. No período eleitoral, a gente faz roda de conversa e dialoga com as pessoas. A fome é política. Não adianta existir o nosso projeto e votar em quem produz a fome", reforça o pároco da igreja São Marcos Evangelista.
Em 2024, com o Decreto nº 11.937, as cozinhas solidárias foram reconhecidas como uma tecnologia social e popular de combate à insegurança alimentar e institucionalizadas através do Programa Cozinha Solidária, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). No total, são mais de 2 mil em funcionamento no Brasil, que podem se cadastrar no programa e receber recurso financeiro do MDS.
A pesquisadora Erica Ell enfatiza que as soluções no combate à proliferação de desertos e pântanos alimentares devem passar pelos próprios territórios: “temos que fortalecer os sistemas alimentares locais com políticas intersetoriais e através da articulação de diferentes entes federativos, municipais e estaduais, incentivando iniciativas populares e o desenvolvimento da agricultura de cadeia curta”.
Alimenta Cidades
Para garantir o acesso à alimentação de populações vulnerabilizadas nos centros urbanos, o Governo Federal decretou em dezembro de 2023 a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades – o Alimenta Cidades. A estratégia contempla 60 municípios prioritários, incluindo todas as capitais brasileiras, no planejamento da alimentação urbana e na implementação de ações de promoção da alimentação saudável. Mais de 64 milhões de brasileiros vivem nessas cidades.
O primeiro ano da estratégia foi focado em fazer um diagnóstico dos territórios para entender quais equipamentos públicos de segurança alimentar já existem - como restaurantes populares, escolas públicas e bancos de alimentos - e quais iniciativas populares atuam nos municípios, como as cozinhas solidárias e hortas comunitárias.
“A gente tem percebido no diagnóstico que muita coisa já vem sendo feita. Esse diálogo com a sociedade civil tem sido cada vez mais rico, a exemplo das cozinhas solidárias. É um fomento do governo, mas a gestão local é toda feita pelas organizações da sociedade civil. Essa aproximação e atuação em conjunto tem se mostrado muito inovadora e produtiva e vem fortalecendo a agenda da segurança alimentar e nutricional”, comenta Bruna Arguelhes, coordenadora de apoio da Coordenação Geral de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável do Ministério do Desenvolvimento Social, que coordena o programa em colaboração com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e o Ministério das Cidades (MCID), no âmbito da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan).
O foco das ações da estratégia está nas áreas periféricas. Parte do diagnóstico incluiu o mapeamento dos desertos e pântanos alimentares das cidades participantes, que resultou na Plataforma Alimenta Cidades, lançada em novembro deste ano. O mapeamento oferece dados da densidade e dos tipos de estabelecimento comerciais de alimentos presentes nos municípios, além de dados sobre renda e pobreza obtidos a partir do CadÚnico.
“A urbanização gera desafios sem precedentes para garantir que as pessoas que moram nas cidades tenham um acesso permanente e regular à alimentação segura, saudável, nutritiva e adequada. A população muitas vezes não tem acesso principalmente pela distância ou pela questão econômica. Então, essa é uma política pública bastante consistente no Brasil e que vai de encontro com a necessidade que nós temos atualmente, com 85% da população brasileira vivendo nos centros urbanos", pontua Erica, do OBHA.
Edição: Nathallia Fonseca