Peço desculpas por interromper a cantora Simone e seu hit Então é Natal, mas desde que o vídeo da Marinha veio a público, só consigo pensar na banda Van Halen e no clássico Best of Both Worlds, lançado dias antes do meu nascimento. A música provoca uma reflexão sobre o equilíbrio entre diferentes aspectos da vida, entre o mundo material e o espiritual; a busca pela felicidade terrena e celestial; o melhor dos dois mundos, uma existência plena. Combina com esse momento de balanços de final de ano.
No vídeo institucional da Marinha do Brasil, dois mundos são retratados: o de trabalho duro, com grande exigência física, e o do lazer e autocuidado, contendo momentos de descanso e festividades. Entretanto, na peça publicitária, os dois mundos não são apresentados como complementares, mas antagônicos. O esforço hercúleo é associado ao mundo militar, e a festa, ao mundo civil. Na dicotomia, o militar não tem momentos de lazer; e o civil, festeiro e preguiçoso, tem o privilégio de ser protegido enquanto desfruta a vida. O final do vídeo não contém uma ironia, mas uma provocação: "Privilégio? Vem pra Marinha!". A frase sai da boca de uma marinheira, provando que a inclusão de mulheres nas Forças Armadas, por si só, não é suficiente para democratizar as relações entre Estado – Forças Armadas – sociedade.
O final do vídeo foi produzido como uma resposta ao pacote de cortes apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Ao mesmo tempo, dois movimentos de comunicação institucional ocorreram, o que os mais sabidos chamariam de operações psicológicas, com o apoio da imprensa hegemônica. De um lado, apresentou-se os 2% de cortes para a caserna como os sacrifícios do mundo militar que, junto com os civis, estão salvando as contas públicas dessa nação. De outro, veículos como a CNN divulgaram matérias sobre a evasão entre militares, notadamente na Aeronáutica e Marinha, com dados brutos desde 2019 (reforma na carreira feita por Bolsonaro). Os dados não foram discriminados, então não é possível saber porque saíram (passaram num concurso melhor? Saíram de diferentes especialidades ou da mesma? Em que proporção?), mas entrevistas com mulheres (mais uma vez, não é implicância minha, é linha editorial do Comando) nas matérias relatam como a jornada de trabalho deixou de ser compensatória diante das exigências da carreira.
Quanto ao vídeo, à operação aberta das Forças Armadas na imprensa, e à operação encoberta das Forças Armadas no parlamento contra o pacote do governo, não tecerei mais comentários. Trata-se de desafio explícito ao Comandante em Chefe da Nação. Caberia ao Ministro da Defesa ordenar imediatamente a retirada do vídeo do ar e demitir o Almirante Olsen. Ele não ficará triste, pois levou R$ 1 milhão na aposentadoria.
Quanto à proposta do governo (saliente-se, ainda uma proposta), é extremamente tímida na área militar. Não chega a totalizar 2% do tamanho dos cortes anunciados, embora seja, proporcionalmente, a área com maior déficit da previdência. Pouparei o leitor da descrição atual do mundo do trabalho civil. Além disso, civil é muita gente, assim como marinheiro também é muita gente. A sociologia raramente maneja a dicotomia civil-militar, mas com as condições de trabalho das diferentes classes sociais, civis e militares. Aqueles que pensam e decidem sobre o conteúdo da peça publicitária institucional têm condições de trabalho bastante distintas daqueles que foram os personagens do vídeo. Note-se: ambos podem ter a mesma mentalidade política, ou a mesma maneira de ver o "civil" inventado e generalizado, mas as condições de trabalho são diferentes. No caso da Marinha, também tem grande peso o local de exercício do trabalho: embarcados por longos períodos, ou no apoio terrestre.
Vamos às propostas do governo para a área militar. A primeira medida é a extinção da "Morte Ficta", ou seja, os dependentes do militar que perder o posto e a patente deixarão de receber pensão. Lembremos, alguém só é expulso após condenação pela Justiça Militar. Na Marinha, segundo a imprensa, 87 pessoas estariam nessa situação. Não enchem nem um vagão de metrô. A segunda medida é a elevação da alíquota de contribuição para os Fundos de Saúde para 3,5%. Os outros 96,5% seguirão sendo custeados pelo Orçamento do governo (vulgo, pelo povo brasileiro), aplicados em hospitais militares usados exclusivamente pela família militar que, por sua vez, é mais ampla que a das carreiras civis. No mundo militar, filhos naturais são mantidos como dependentes até os 24 anos, e enteados podem ser incorporados. No mundo civil, o plano de saúde universal se chama SUS, e as modalidades civis são inúmeras, a depender do plano privado contratado ou do acordo coletivo conquistado pelo sindicato da categoria. A terceira medida extingue as pensões para beneficiários de segunda ou terceira ordem, limitando-a ao cônjuge e filhos. Para civis, essa possibilidade nunca existiu.
A quarta e última medida é a mais polêmica, e se refere a estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria (reserva remunerada) de 55 anos, lembrando que, entre civis, essa idade é de 62 anos para mulheres, e 65 para homens. Hoje, militares (de carreira, não aqueles com contratos temporários que podem ficar na Força por até oito anos) não têm referência etária, podendo se aposentar a pedido. A regra de transição iria até 2032! Personagem importante nessa situação é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que foi para a reserva após 15 anos na Força, e desde 1988 (ele tinha 33 anos), recebe sua aposentadoria integral relativa à sua patente legal, capitão do Exército.
Duas reações são dignas de nota. A primeira aponta que a carreira tem baixa atratividade, e sofreria com êxodo. Será? Quais dados indicam isso? Aqueles disponíveis ao público mostram concursos altamente concorridos, e uma instituição que conta com altos índices de aprovação entre a população. Quem se quer atrair? Quem tem entrado? Os problemas decorrem do modo como as Forças estão organizadas ou de como o trabalho no interior da Força é organizado? A segunda reclamação está correta, e vem das baixas patentes, que foram prejudicadas na reforma da carreira de 2019. Na ocasião, Bolsonaro privilegiou as altas patentes e prometeu um grupo de trabalho para olhar a situação das baixas patentes que nunca se mobilizou. As altas e baixas patentes seguiram votando em Bolsonaro, mas a bomba trabalhista ficou para o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Os privilégios militares, quando comparados ao horroroso mundo de trabalho civil, poderiam abundar, mas seriam comparações levianas, como leviano foi o vídeo da Marinha. Cabe conhecer o mundo de trabalho militar, com seus direitos, deveres e privilégios, como fizemos em texto sobre a carreira militar. Cabe questionar os quartéis, levando em conta as condições de trabalho das diferentes patentes e modalidades de contratação militares, a forma como a carreira é organizada, as condições do mercado de trabalho fora dos quartéis, as necessidades técnicas de defesa nacionais, e mesmo as condições internacionais para o exercício do trabalho de defesa nacional, muito distintas em tempos de paz e de guerra.
Por fim, quero comentar sobre a habilidade militar de usar "os dois mundos" de Van Hallen para conquistar sempre o melhor para si. Dois exemplos breves. No Brasil, alunos de escolas públicas têm o direito duramente conquistado de cotas de acesso ao ensino superior público. Os colégios militares são considerados escolas públicas, mesmo recebendo um orçamento por aluno cerca de três vezes maior que o da escola pública normal. É a mesma realidade dos colégios de aplicação de universidades. Ambos gozam do melhor dos dois mundos: as cotas para alunos oriundos das escolas públicas, e os orçamentos por aluno mais elevados. Um segundo exemplo: militares têm recorrido ao sistema de Justiça civil para conquistar direitos trabalhistas que eram negados a eles, injustamente, pelas instituições militares, como o acesso aos sistemas de saúde, moradia e previdenciário para cônjuge do mesmo sexo. Entretanto, esse mesmo indivíduo segue sujeito à Justiça Militar, contando com seus bônus e ônus, a depender da patente hierárquica. Novamente, é o melhor dos dois mundos.
Elis Regina eternizou a música de Guilherme Arantes e ensinou que vamos vivendo e aprendendo a jogar. "Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar". Será? A teoria dos jogos discorda, dizendo que é possível construir jogos ganha-ganha, em que indivíduos racionais podem cooperar e todos saírem ganhando. Seria a habilidade militar de extrair “o melhor dos dois mundos” um exemplo da teoria do ganha-ganha? Deveríamos substituir o dilema do prisioneiro pelo dilema do marinheiro? O senso comum se esquece de que a cooperação e a fraternidade ocorrem entre o próprio grupo, desconsiderando as dinâmicas de poder e desigualdade que imperam na sociedade.
A trabalhadora do mundo real está como Elis, tentando se equilibrar entre as múltiplas jornadas; e com Van Hallen, procurando um pouco do céu aqui na terra, e se esquecendo que não existe céu com Brigadeiros, Almirantes ou Generais.
Feliz Natal.
*Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires