Quando viaja de Rio Branco para Xapuri, no Acre, Angela Mendes observa as lavouras de soja, maiores a cada ano. No entorno da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, onde vivem cerca de 3.500 famílias, a monocultura avança e deixa sua marca. “Antes da soja chegar dentro da resex, já estão chegando os impactos dos agrotóxicos que eles usam para combater as pragas”, conta.
Mendes carrega no sobrenome a força da luta pela preservação da floresta. Filha do seringueiro e ambientalista Chico Mendes, ela está à frente do comitê que leva o nome do pai, uma organização em defesa da Amazônia.
O Comitê Chico Mendes é uma das organizações signatárias do Manifesto em defesa da Moratória da Soja, publicado na última quinta-feira (12). Atacada por setores ruralistas, a moratória é um pacto firmado em 2006 entre empresas que se comprometem a não comprar o produto de fazendas com lavouras em áreas abertas após 22 de julho de 2008 na Amazônia. A medida apresenta dados positivos na preservação da floresta, mas tem sido alvo de ataques de ruralistas.
"A soja é concentradora de terra e acelera ainda mais o aumento das desigualdades sociais e a violência contra populações no entorno”, afirma Angela, na divulgação do manifesto que reforça a necessidade da moratória.
Neste dia 15 de dezembro, Chico Mendes faria 80 anos. Para celebrar a memória do ambientalista, o Comitê Chico Mendes organiza, anualmente, a Semana Chico Mendes, com atividades entre os dias 15 e 22 de dezembro, data que em Chico foi assassinado, no quintal da casa onde vivia, em Xapuri. A programação do evento oferece feira, oficinas, seminários, exibição de filmes e debates com temas relacionados à preservação ambiental e crise climática.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ela fala sobre o avanço da soja no Acre e o legado de luta do pai.
Brasil de Fato: De que modo a moratória da soja auxilia na proteção de territórios protegidos?
Angela Mendes: A intenção, na verdade, é que a moratória se apresente como um instrumento que impeça os fazendeiros de invadir, por exemplo, áreas da resex para plantar soja, né? Para desmatar e plantar soja. Mas a gente tem percebido que a soja tem tomado conta da paisagem do Acre. Quando você vai de Rio Branco para Xapuri, para Brasiléia [município do Acre], você só encontra agora plantio de soja. Por exemplo, a reserva extrativista Chico Mendes tá rodeada por fazendas e a soja tá chegando cada vez mais perto. Mas antes da soja chegar dentro da resex, já tá chegando os impactos dos agrotóxicos que eles usam para combater as pragas. Em 2022, nós denunciamos o uso de agrotóxico para o Ministério Público Federal (MPF) nas bordas da resex. Esse agrotóxico estava impactando na plantação de feijão e tem gente que sentiu a presença nas nascentes também, sentiu a consistência da água diferente. Então existe uma ameaça, um risco muito forte de que cada vez mais a soja possa avançar para dentro da resex, assim como gado avança em alguns lugares.
Você avalia que, se não tivéssemos a moratória, o cenário seria pior?
Estaria bem pior, por todos os incentivos. O governo aqui é do agronegócio, a bancada legislativa, boa parte dela, também é. Então a gente tem um cenário propício para isso, né?
Você informa que a soja impulsiona desigualdades. Pode falar mais sobre isso?
Ela [a soja] concentra terra. Precisa de muita terra, né? E a gente sabe que, em vários lugares, a terra é conquistada com muita violência. À medida que os grandes latifundiários vão enricando, eles vão, logicamente, impactando as pessoas que estão ao lado, sem essa preocupação com a forma como eles usam agrotóxico, na forma como eles contaminam o solo, os rios, o ar e as pessoas ao redor. Principalmente se forem pequenos proprietários, muitas das vezes tem que abandonar o seu pedaço de terra em busca de paz ou saúde, né? Eu acho que isso acaba fazendo com que quem já tem muito lucro, e não tá preocupado com quem está ao seu redor, fique cada vez mais rico. E as pessoas às vezes têm que se desfazer daquilo que lutou a vida toda para manter, um pedacinho de terra, porque de alguma forma foi impactado com isso também.
Nós vemos, com dados, a soja avançando para áreas onde antes não havia esse cultivo, como Acre e Rondônia. Há limites para esse avanço?
A sensação é bem ruim mesmo, porque, por exemplo, aqui no Acre, a gente só conhecia o desmatamento para pasto de boi e, assim mesmo, já é muito difícil lutar contra isso, né? Agora vem a soja com tudo que ela traz. Por exemplo, essa coisa da contaminação, parece que ninguém olha, porque é uma coisa que está invisível e que só vai ser vista quando as pessoas começarem a aparecer doentes, né? Então a soja apresenta um perigo além. Porque além daquilo que a gente vê, tem o que a gente não vê, mas que a gente vai sentir na carne. Quer dizer, já estamos sentindo agora. Já tem gente, muita gente, intoxicada aqui, contaminada. Se a gente continuar nesse ritmo, daqui a dez anos, quantas pessoas mais vão apresentar problemas de saúde? O perigo da soja, além de incentivar e impulsionar a violência, também nos deixa com a sensação de que o perigo é só esse, enquanto o perigo tá ali também invisível nos rondando, seja através das várias contaminações do ar, do solo, da água. E é preciso a gente ter bastante atenção sobre isso.
Você gostaria de acrescentar algo?
Este ano, o meu pai estaria completando 80 anos de vida, se estivesse vivo. E a gente vai começar agora dia 15 a Semana Chico Mendes, que traz esse tema, Chico 80 anos a luta continua, então é bem simbólico a gente falar sobre isso porque a gente não tem descanso, né? Mas enquanto uma parte da população estiver mobilizada e com esse compromisso, de lutar por igualdade e justiça social, a gente vai continuar avançando no sentido de transformação dessa sociedade que o Chico sonhava, dessa revolução que ele sonhava, transformando o planeta no mundo socialista, num mundo de paz assim. Nem só de luta a gente vive. A gente tem que Celebrar que Chico, por mais que a gente saiba que o corpo dele descansa, ele deixou tantas sementes que hoje a gente se inspira nele para fazer coisas para pensar coisas. A luta continua e a gente continua também enfrentando, com os instrumentos, a gente também vai inventando.
Edição: Nathallia Fonseca