Com um salão lotado e mais centenas de militantes sem terra na Praça da Matriz, que chegaram em marcha desde o acampamento do Incra/RS, o economista gaúcho e liderança nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stedile recebeu na tarde desta segunda-feira (16), da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a Medalha do Mérito Farroupilha.
A maior honraria do parlamento gaúcho, proposta pelo deputado Adão Pretto Filho (PT), foi aprovada pela Mesa Diretora em comemoração aos 40 anos do movimento. A homenagem foi entregue pelo deputado Pepe Vargas, que representou a presidência da Assembleia Legislativa.
A proposta partiu do deputado Adão Preto Filho (PT), filho do primeiro parlamentar do MST, Adão Pretto, falecido em 2009, e que neste 18 de dezembro completaria 79 anos. “Essa homenagem é o reconhecimento de uma história de lutas sociais de Stedile, mas também de todos que lutam por justiça social, fraternidade e para que a terra cumpra a sua função social”, destacou.
Adão lembrou a importância da liderança de João Pedro Stedile, reconhecida não só no RS e no Brasil, mas no mundo todo, e a história de 40 anos do MST. “Esse movimento assentou mais de 13 mil famílias no RS e mais de 400 mil em todo o Brasil. Onde tem reforma agrária, onde tem assentamento tem desenvolvimento, prosperidade, produção de alimento saudável, tem fraternidade e solidariedade”, disse.
Também ressaltou que o MST faz justiça social, organiza o povo, mas está na institucionalidade. “Se eu estou aqui é por conta de uma decisão coletiva que o MST tomou e me delegou essa tarefa honrosa de ser um deputado estadual, cobrando os governos para que se tenha reforma agrária, para que tenha orçamento e recursos para que esse povo permaneça no campo com dignidade, produzindo alimento saudável.”
Pretto destacou que há 10 anos o MST é o maior produtor agroecológico da América Latina, derrubando o argumento dos que foram contra a homenagem, de que o MST é “invasor de terras produtivas”.
“Um exemplo disso foi que no Rio Grande de 1979, antes ainda da irrupção do MST, as glebas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, estavam nas mãos de dois proprietários. Anualmente, produziam 10 mil sacas de soja e cinco mil de milho até então. E mantinham 200 cabeças de gado. Naquele ano, foram ocupadas por 100 famílias. Em 2021, colhiam 142 mil sacas de soja, 42 mil de milho, 48 mil de trigo e duas mil de feijão. Sem contar 1,5 milhão de litros de leite/ano, 984 mil aves e três mil porcos. O nome disso é função social da propriedade e está na Constituição. E os dados são oficiais, da Emater/RS.”
Parlamento representa todas as forças políticas
Ao finalizar a cerimônia, o deputado Pepe Vargas lembrou que no parlamento estão os representantes do povo e das principais forças político-ideológicas organizadas em partidos políticos no estado.
Para o deputado, é papel dos movimentos sociais lutar pelos direitos do povo, criticar os governos quando acham que estão errados. “No momento de uma outorga de medalha é importante reafirmar as lutas em que os momentos estão envolvidos e ouvir estes movimentos que sempre têm espaço aqui. Por isso essa Casa não poderia deixar de conceder por unanimidade a aprovação da Medalha Mérito Farroupilha a João Pedro Stedile.”
Mais de 50 entidades assinam carta de apoio
A tentativa de deputados da extrema direita cancelar a entrega da medalha, fez com diversas entidades e movimentos se mobilizassem em apoio ao MST. Durante a solenidade, o juiz Luís Christiano Enger Aires, coordenador nacional da Associação de Juízes e Juízas pela Democracia (AJD) leu uma carta aberta assinada por mais de 50 entidades.
“Esse sonho, embalado por tantas gentes, essas realidades que se impuseram a despeito da força dos latifundiários, toda essa diversidade que compõe o movimento, essa entrega desmedida, até que um novo assentamento seja regularizado, tudo isso também é fruto maduro da energia, inteligência, espírito coletivo e perspicácia do nosso homenageado, esse filho que honra as terras de onde saiu para ganhar o mundo, abrindo fronteiras e rompendo cadeados, esse filho de Lagoa Vermelha, nascido e criado na Linha Santo Antônio, também chamada de Chimarrão. É da têmpera desse gaúcho destemido, grande admirador de Sepé Tiaraju, que o MST se constrói e se reinventa, avisando a quem vem de lá: essa terra tem dono!”, encerra a carta.
O texto recordou ainda que foi no “bojo do movimento, nos acampamentos, nos assentamentos, ainda pendentes de políticas públicas que possam desenvolver as potencialidades de cada gleba, mas, também nas caminhadas históricas até Brasília, nas reuniões intermináveis, na escuta da companheirada, junto com o mate amargo, são nesses lugares, nessa grande junção, que as lideranças, os/as assentados/as, os/as acampados/as, se encontram com o seu ideal de mundo, possível – e que também forja o mundo que a cidade quer e precisa: um projeto popular de país em que haja efetiva redistribuição de terras, as quais devem cumprir com sua função social, com políticas públicas que impeçam o êxodo rural, com financiamentos para que os assentados e as assentadas possam plantar alimentos saudáveis, agroecológicos, para que se cuide e guarde da natureza e até mesmo para que a cidade possa comer”.
Em discurso de 45 minutos, Stedile dá aula de história
João Pedro Stedile iniciou seu discurso reforçando que o MST é herdeiro de lutas históricas do povo gaúcho na luta pela democratização e dos direitos à terra. “A medalha não é para mim. É para o MST. Apenas me tocou a tarefa de emprestar o peito. Assim como em outros momentos tivemos que as vezes carregar um caixão, ou em tempos de alegria ajudar a receber os títulos de reforma agrária.”
Numa viagem no tempo, voltou a 1756, quando os europeus aqui chegaram. “Foram milhares de anos em que viviam no Rio Grande do Sul os indígenas que detinham a terra como bem comum, onde não havia propriedade privada, nem cercas e nem exploração. Milhares de pessoas foram assassinadas, outras migraram para Missiones e para o Paraguai e Sepé Tiaraju, nosso padroeiro até hoje, morreu em combate em 7 de fevereiro de 1756 e foi assim sob a força do canhão que nasceu neste território o latifúndio agropastoril que logo em seguida implantou a propriedade privada e introduziu o trabalho escravo.”
Transcorreu pela história, relembrando os lanceiros negros, a guerra do Paraguai, a coluna Prestes, o governo Leonel Brizola e sua proposta de reforma agrária, a organização do Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra) que realizou muitas lutas, das quais emergiram líderes históricos, como Jair Calixto, João Sem Terra, a família Muller, a ditadura militar e o nascimento do MST.
“Nesses 40 anos de luta, tivemos vitórias, conquistas, mas também pagamos com a vida de diversos companheiros/as assassinados ou que a dor os levou antes do combinado. Lembro de alguns companheiros/as, entre tantos, como a Roseli Nunes, o Zecão, de Palmeiras, o deputado Adão Pretto, o Toninho, de Nonoai, o Itamar Siqueira recentemente falecido. A medalha Farroupilha é para todos eles. É para todos os coletivos que lutaram pela terra, é para o conjunto do MST. É para a saga histórica de nosso povo na luta contra o latifúndio e pela democratização da terra.”
“O assentado precisa ser um zelador da natureza”
Segundo Stedile, faz parte da lógica do sistema capitalista a concentração da propriedade, o latifúndio e os crimes ambientais. “O capital no campo se alimenta da apropriação privada dos bens da natureza que deviam ser de todos. Pior, nosso território e nossa economia agora são disputados pelos interesses das empresas transnacionais, que nos impuseram o monocultivo da soja, do tabaco, do eucalipto, o uso de agrotóxicos, as sementes transgênicas, etc.”
E questionou: “quantos gaúchos morreram nesses 40 anos, fruto de enfermidades geradas pelos agrotóxicos, como o câncer?”
Afirmou que esse modelo do capital impôs mudanças nas leis ambientais, aumentou o desmatamento e as agressões a todos os biomas, assoreou rios e córregos, destruiu nascentes. “Tudo em nome lucro. O resultado foi secas, enchentes, temporais, ventanias. Cada vez mais fortes e todos os anos. Quantos gaúchos foram atingidos apenas nos últimos anos? Só na agricultura se fala em prejuízos de R$ 50 bilhões. O governo federal socorreu com mais de R$ 70 bilhões, com dinheiro de todo povo brasileiro. Mas nada foi aplicado em medidas preventivas. E portanto, é fácil prever que as secas e enchentes voltarão, cada vez com mais força.”
Para enfrentar esse cenário, o MST incorporou ao seu programa novos paradigmas que orientam sua ação política. “A reforma agrária agora deve ser popular, para atender a todo povo, através da defesa da natureza e da produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos. O assentado não poderá ser apenas um bom agricultor, mas precisa ser também, um zelador da natureza, protegendo as águas, as árvores, a biodiversidade, em nome da sociedade. Para isso, queremos enfrentar os desafios de massificar a agroecologia, com o controle das sementes, com desmatamento zero e um plano massivo de reflorestamento. Precisamos ter fábricas de fertilizantes orgânicos, fábricas de máquinas agrícolas para os camponeses e ampliar a organização de agroindústrias cooperativadas.”
Também afirmou que foi incorporado no ideário do movimento o direito dos camponeses à educação no campo, em todos os níveis, desde a alfabetização até os cursos superiores. “Pois sabemos que só o conhecimento liberta verdadeiramente o ser humano. Essa é a nossa missão, nosso compromisso, com o povo gaúcho.”
Por fim, lembrou Antonio Candido, o mais importante crítico literário do Brasil, que escreveu uma carta em abril de 2011 para o MST, e nela disse: “Na Bravura do MST, em sua luta histórica, palpita o coração do Brasil!”
E terminou apelando ao amigo e apoiador, também militante da reforma agrária, Chico Buarque, quando diz na canção assentamento, em homenagem ao MST: “Quando eu morrer, cansado de tantas guerras, morrerei de bem, com minha terra!”
Homenagem foi finalizada na Praça da Matriz, junto aos militantes do MST.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo