No último sábado (7), o Centro de Formação e Capacitação Frei Humberto, em Fortaleza (CE), recebeu o evento intitulado "Samba de Axé Levanta Terreiro". Um dos objetivos da ação foi debater as perspectivas e desafios das comunidades tradicionais de terreiro por políticas públicas de valorização e preservação dos povos de terreiro.
Para falar sobre as lutas e conquistas e sobre a contribuição dos povos de terreiro para a arte, cultura e história do Brasil e do Ceará, o Brasil de Fato conversou com Nonato Nascimento, do Ile Axé Ofa Omi e militante do Movimento Negro Unificado (MNU). Confira.
Brasil de Fato CE: Qual a contribuição dos povos de terreiro para a arte, cultura e história do Brasil e do Ceará?
Nonato Nascimento: A contribuição do povo de terreiro para a formação social brasileira é muito grande porque a gente demarca no campo da arte, da cultura e do fazer a história no Brasil, especialmente no Ceará e no Nordeste brasileiro. Acho que é importante fazer essas demarcações. A contribuição do povo de terreiro, das comunidades de candomblé, das religiões afro-indígenas se dá em vários campos: no campo da arte, da cultura, da política, da saúde e das relações espirituais. Esse é o lugar que a gente ocupou historicamente, um lugar que foi invisibilizado, como sempre nos alertou Lélia González, uma mulher também de candomblé, uma mulher de Oxum, mulher que é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), junto com Abdias do Nascimento, homem também que pensa essa realidade brasileira a partir do terreiro.
Então é importante dizer que toda a contribuição da comunidade de terreiro para a formação social brasileira foi historicamente perseguida. A gente chega em 2024 tendo que lutar por políticas públicas de reparação histórica, de reparação histórica frente a intensificação das violências contra as comunidades tradicionais de terreiro, a intensificação das violências contra o povo de Santo, porque esse é o momento que o movimento de terreiro no Brasil, no Ceará, no Nordeste brasileiro, é bom que se diga, tem uma posição pública e essa posição pública das comunidades tradicionais de terreiro é demarcar essas contribuições e a demarcação dessas contribuições perpassa por espaços públicos, perpassa pela política, perpassa pela ocupação do parlamento, perpassa pela recuperação e memória ancestral daqueles que contribuíram na formação dessa sociedade, mas também que seguraram diversas comunidades frente à violência policial, frente a LGBTfobia, frente ao adoecimento mental da população negra.
Há ações por parte do poder público que garantam os direitos dos povos de terreiro ou que valorizem toda a tradição desse povo?
Acho que é importante, quando a gente fala sobre ações do poder público, o pouco que a gente tem hoje de política pública, de combate ao racismo religioso, que alguns também chamam de intolerância religiosa, mas como a gente é de uma militância de terreiro, comprometida, e que milita nessa questão, que está em caminhada nessa questão a gente sabe que é importante racializar, nós estamos falando de comunidades de terreiro, e a gente tem demarcadores e nosso demarcador e raça. A raça perpassa o candomblé, a raça perpassa a cultura de terreiro, a raça perpassa o nosso fazer político, a raça perpassa nossa ancestralidade.
Então se pega uma militante histórica da luta de combate ao racismo religioso como Mãe Beata de Iemanjá, uma mulher à frente do seu tempo, uma mulher que colocou diversas questões, desde o impacto do racismo religioso à proteção das vidas LGBTQIAPN+ dentro dos próprios terreiros, do combate à violência racial, do combate do avanço do racismo ambiental sobre as territorialidades das comunidades de terreiro, poder público segue sendo pautado por que a gente fala desse lugar de ousadia, de caminhada permanente, de caminhada contra o racismo religioso. Por que a gente fala daí? Para dizer das ausências do Estado, para dizer que o Estado ainda continua apostando em medidas, em políticas, em ações que não consideram as agendas inegociáveis que nós, comunidade de terreiro, apresentamos. E as nossas agendas, por que é que elas são inegociáveis frente ao poder público? Por que ela é inegociável? Porque ela fala das nossas vidas, são os nossos corpos, territórios, terreiros que estão expostos na sociedade.
Eu falo lá no terreiro do Ofá Omi, no Ílé para T’ogum. Ali é uma comunidade de terreiro, uma comunidade negra, ancestral, sujeita de direitos, mas também que demanda especificidades e muitas vezes o poder público nos olha à margem. Então a gente está mais em uma luta para reeducar o poder público, mas também ocupar esses espaços. Ocupar o poder público é uma demanda nossa. Como é que a gente ocupa a agenda pública? Com a agenda política, os partidos de esquerda colocando as nossas demandas e reeducando também esses lugares, esses territórios que historicamente foram dominados ou conduzidos por outras perspectivas, e a gente precisa também pautar com essas perspectivas que é a perspectiva de terreiro, e aí sim a agenda política, agenda pública ganha esse sabor, esse cheiro, esse fazer do terreiro.
Ainda há preconceitos a respeito dos povos de terreiro?
Preconceito, o que a gente chama de racismo religioso, de terrorismo religioso porque tem um componente aí que é importante a gente demarcar e colocar, que é a questão da raça. O terreiro é um território negro, é um território preto, é construção dessas presenças e essas presenças demarcam o imaginário racial no Brasil, demarca o sistema de Justiça, demarca o fazer político, demarca as disputas do Estado brasileiro, e aí as comunidades negras, de terreiro, os territórios de candomblé, as religiões afro-indígenas sempre foram afetadas diretamente por essa violência colonial estrutural. Quando a gente fala que ela é estrutural é para dizer que ela também não é só direcionada a um indivíduo, mas a toda uma coletividade.
Essa é a disputa séria que a gente está fazendo em 2024 frente ao quadro de avanço das violências e violações de direitos humanos em territórios de comunidades de terreiro. Nós não estamos falando só de violência verbal, a gente está falando de grupos religiosos que adentram aos terreiros de candomblé no Brasil, no Nordeste e no Ceará e ameaçam, atentam à vida das lideranças religiosas que majoritariamente são mulheres, mulheres negras, mulheres periféricas, mulheres trans, pessoas LGBTQIAPN+. Esses demarcadores dizem muito de como o racismo religioso se articula, como racismo religioso determina ou pensa em determinar essas existências.
É importante dizer que o racismo religioso nos afeta individualmente porque afeta a nossa saúde, por isso que o debate de saúde pública, a defesa intransigente do SUS, tudo isso é interessante, mas é importante dizer também que a gente quer debater uma justiça sem racismo religioso, uma justiça que olhe para os territórios negro, terreiro de outra forma, de outro olhar, de outro lugar.
É preciso defender as vidas negras, é preciso defender as vidas de terreiro, essa é a nossa agenda inegociável, que a gente não pode abrir mão por qualquer coisa e nem dá, porque ela fala das nossas existências. Então, dizer que a sociedade brasileira é sim marcada e demarcada pelo racismo religioso, por isso que a nossa luta se dá dentro do movimento social de terreiro.
Na sua opinião, o que contribui para a existência desses preconceitos? Quais ações são realizadas para acabar com esses preconceitos?
O racismo religioso está enraizado, digamos assim. Ele está presente na sociedade brasileira e é importante a gente debater isso. Os índices de violência contra as pessoas de religião de matriz africana são visíveis, está dado. A sociedade brasileira como um todo, as políticas públicas precisam ter atenção para esse fator que determina. Ele é determinante também na saúde coletiva de diversas pessoas e nos seus diversos territórios. O racismo religioso tem sua continuidade, é alimentado em uma sociedade que ela tem uma referência na história única, uma história única, em uma língua única, em uma religião única, numa perspectiva única de mundo e quando a gente, comunidade de terreiro, com o nosso saber, o nosso fazer, nosso ser, nossa presença e essa estética que é em volta do inquice, do orixá, do vodum, do Encantado, do caboclo isso bagunça a cabeça desse pessoal, e esse pessoal logo quer nos eliminar e é aí onde a gente entra: “Nossas vidas importam”, a vida do povo de terreiro importa, porque aqui é núcleo em que muitos de vocês se recuperam, é aqui onde vocês renascem, é aqui que a gente acolhe, é aqui que a gente abraça.
Você é militante do Movimento Negro Unificado (MNU). Fala um pouco da relação do movimento com as lutas dos povos de terreiro.
Nós somos o Movimento Negro Unificado, temos 46 anos de luta e resistência. A gente nasce em luta contra os horrores da ditadura militar no Brasil. Importante dizer isso, esse é o demarcador ali quando o movimento negro se organiza e funda o MNU na escadaria do Theatro Municipal em São Paulo. Em plena ditadura militar o movimento negro ousou denunciar os horrores da violência policial contra as comunidades negra, os horrores do racismo racial e da sua violência.
As pessoas que fundam o Movimento Negro Unificado, que organizam o Movimento Negro Unificado, são pessoas de terreiro, são pessoas de candomblé, de umbanda. É importante colocar isso. Então, o movimento de terreiro e o Movimento Negro Unificado tem profunda relação. Eu sou uma pessoa de terreiro e sou militante do Movimento Negro Unificado com muito orgulho, e lá dentro a gente tem uma coletividade de pessoas de terreiro, a gente organiza espaços próprios, faz o debate, coloca a agenda na roda, ou melhor, na gira, um giro de agenda, que para nós é fundante quando a gente afirma que é importante a defesa intransigente do patrimônio material e imaterial do povo negro e das religiões de matriz africana e indígena. Esse patrimônio é nosso. Ele pertence a nós. Ele nos levou até aqui, nos deixou de pé, deixou essa raça de pé. Então a gente reivindica, a gente constrói.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia