Coluna

Privatizar ciclovias em São Paulo é só um biscoitinho do amargo café neoliberal

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Projeto de lei do prefeito Ricardo Nunes (MDB) coloca ciclovias e ciclofaixas no pacote de privatização de equipamentos públicos - Ivson Miranda
Ainda que haja certa surpresa na bolha da mobilidade, o assunto não é novidade

Surpresa zero para a notícia da inclusão de ciclovias e ciclofaixas paulistanas no Programa Municipal de Desestatização. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) apresentou o projeto de lei 827/2024 na Câmara dos Vereadores de São Paulo para alterar a lei 16.703/2017, que regula as permissões da cidade para vender ou conceder bens e serviços para os empresários. Depois dos cemitérios e parques, das creches, hospitais e postos de saúde e do saneamento básico, chegou a vez do esporte e do lazer, que é onde essa administração entende que devam ficar as políticas públicas para a bicicleta. 

Além de toda a infraestrutura, que, em São Paulo, se limita a 715 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas (uma parte apagada, outra deteriorada e sem conexão com o Centro) e aproximadamente mil paraciclos de ferro em U invertidos, chumbados no piso de praças e calçadas em 51 pontos da cidade, as alterações também permitem conceder clubes e centros esportivos municipais, bem como terrenos e espaços ociosos onde possam ser construídos centros de economia criativa e outros fomentos sociais e econômicos. 

O papel aceita tudo 

No papel, a intenção é ótima. Vai estimular isso e aquilo, ou ajudar o município a atingir metas XYZ. Na prática, é a liquidação do espaço público que nos resta condicionando-os ao conceito de oferta e demanda regulada por dinheiro. Aqueles que foram rentáveis terão mais atenção. Os que não forem, definham. Como exemplo, depois da privatização, o Parque Ibirapuera continua lindo, mas o Parque Colina de São Francisco, ainda sob os cuidados da secretaria do Verde e Meio Ambiente, aqui no Distrito do Rio Pequeno, sofre com a falta de manutenção. 

Nessa lógica, as ciclovias das avenidas Paulista, Brigadeiro Faria Lima, Rebouças, Ponte da Cidade Universitária, Radial Leste e algumas ciclofaixas mais movimentadas em lugares com grande passagem de ciclistas de bom poder aquisitivo, em geral, nas zonas Oeste e Centro, poderiam render interesse para alguém querer administrar publicidade. E a gestão Nunes sempre pode abusar da criatividade e oferecer aos empresários um combo que inclui os lotes de clubes municipais.  

Uma coisa é certa. Tudo ainda está na fase de especulação e estar na lista não significa que será ofertada. É uma proposta sem similar no mundo. Nem Amsterdã, Paris ou Bogotá fizeram. Situação mais próxima está aqui mesmo, às margens do canal do Rio Pinheiros, onde corre a Ciclovia Franco Montoro ao lado da linha de trem. Mas ela já nasceu e permanece fora dos domínios da administração municipal. 

E a Ciclofaixa de Lazer? 

Outra informação que contradiz a eficiência que se pretende alcançar com tal medida é empírica e da própria gestão Nunes. Quem se lembra dos primórdios da Ciclofaixa de Lazer sabe que ela nasceu e se manteve pelos patrocínios, primeiro, da Bradesco Seguros e, depois, do Uber. Quando este último encerrou o contrato que bancava todo o custo em troca da exposição das marcas, a prefeitura tentou manter o mesmo modelo, mas não houve interesse. Na primeira chamada pública da Secretaria de Mobilidade (SMT), a Coranda uma pequena, agência de publicidade ganhou a permissão, assumiu a ciclofaixa pretendendo conquistar clientes que pagassem o alto custo, mas abandonou as ruas seis meses depois, deixando um passivo milionário de dívidas com trabalhadoras e fornecedores. 

Hoje, a operação que coloca cones e pessoas com bandeirinhas ao longo de 114 quilômetros da Ciclofaixa de Lazer é feita pela Innovia, uma empresa de sinalização que venceu a concorrência que a Secretaria de Mobilidade realizou em 2023 para manter o serviço sem a dependência de patrocínio externo. O valor total para dois anos é de R$ 83 milhões pagos pelo Tesouro Municipal e já foi dito pela prefeitura em reunião com ciclistas que o contrato vai ser renovado pelo mesmo período a partir de março do ano que vem, com acréscimo de até 25% no valor inicial.  

Conversando com o especialista em mobilidade Rafael Calábria, chegamos à conclusão de que a única maneira de rentabilizar a infraestrutura seria cobrar pedágio e colocar propaganda no piso e laterais com grades. Algo "surreal" pelo espaço já exíguo que cada via oferece. E seria o tiro de misericórdia na já combalida política pública municipal de atração de usuários de bicicletas. Afinal, só Faria Limers pagariam para andar em ciclovia exclusiva, certo? 

A verdadeira intenção 

A infraestrutura cicloviária nesse pacote privatista é só o biscoitinho do amargo café neoliberal, no melhor estilo colonial. Está posta a mesa da dilapidação do patrimônio da cidade, farta e suculenta, para quem pode pagar. Mesmo que não seja colocada em prática, ter ciclovias sendo colocadas à venda é significativo, pois demonstra que a atual administração não se importa com políticas de estímulo ao uso da bicicleta como transporte. 

Tê-las na lista junto aos equipamentos esportivos arreganha na cara da sociedade que Nunes e outros Ricardos veem bicicletas como brincadeira para passeios de lazer, se possível nos parques, ou em competições esportivas. É diversão, brou, e ponto final. 

Ainda que haja certa surpresa na bolha da mobilidade, o assunto não é novidade, pois a intenção já havia sido expressada em reuniões do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT) e da Câmara Temática da Bicicleta (CTB) quando o secretário de Mobilidade era o vereador Ricardo Teixeira (União), que disse em alto e bom tom que buscava esse objetivo.  

Como o projeto já foi aprovado de forma simbólica (consenso entre lideranças) em primeira votação do plenário da Câmara em 11 de dezembro, não vejo forma da oposição derrubar o projeto de lei apenas com o argumento de que faltou audiência pública. E mesmo que a grande mídia venha repercutindo, o assunto vai perdendo força, pois chegou o momento da avalanche de notícias ruins. Como é fim de ano, a Câmara vai passando a boiada e a aprovação de projetos absurdos vão ganhando espaço, um atrás do outro.  

Vale destacar o posicionamento contrário das vereadoras Luna Zarattini, Hélio Rodrigues, João Ananias e Manoel Del Rio, do PT, e de Elaine do Quilombo Periférico, Luana Alves, Silvia da Bancada Feminista, Celso Giannazi e Professor Toninho Vespoli do Psol, que pediram para registrar a discordância na ata da reunião de lideranças que aprovou, por consenso, o texto de privatização de ciclovias e centros esportivos. Vão se tornando o que restou de ética e moral da Câmara dos Vereadores. 

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Martina Medina