Foram meses de costuras políticas até a aprovação, em meados de novembro, do projeto de lei que cria o mercado regulado de carbono no Brasil. As novas regras criadas pelo Congresso deixaram o agronegócio, líder em emissões de gases de efeito estufa (GEE), de fora da lista de setores regulados.
Aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2023, o texto do PL 182/2024 chegou ao Senado em fevereiro e ficou sob a relatoria da senadora Leila Barros (PDT-DF). Desde então, embora a votação tenha sido adiada duas vezes, houve uma corrida para que o Brasil chegasse à COP29, no Azerbaijão, com o projeto aprovado. Ou seja, para que pudesse apresentar uma ação de ambição climática.
O Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), conhecido como mercado regulado de carbono, estabelece regras para setores que emitem GEE acima de 10 mil toneladas ao ano. Indústrias de siderurgia, cimento, cerâmica e alimentícias deverão ser reguladas.
O projeto de lei prevê que empresas que emitem mais de 25 mil toneladas de dióxido de carbono, CO2, sejam obrigadas a compensar o excedente por meio da compra de cotas de carbono. Aquelas que ficam entre 10 mil e 25 mil terão apenas que reportar suas emissões.
Com a regulação, espera-se que a economia seja descarbonizada gradualmente por meio da substituição do uso de combustíveis fósseis por outras fontes de energia mais limpas. Essas ações são fundamentais para que o país possa cumprir a meta de redução de emissões do Acordo de Paris.
O setor agropecuário, no entanto, conseguiu ficar de fora da regulação diante da forte pressão da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e sob justificativas de que ainda não é possível calcular de forma precisa as emissões de cada propriedade e que outros países com mercados regulados de carbono, como a Nova Zelândia, também não incluíram o agro na regulamentação.
A exclusão do agronegócio do projeto vem sendo alvo de críticas de grupos da sociedade civil desde o início das negociações, já que o setor responde por 73% das emissões, de acordo com pesquisa realizada pela plataforma Sistema de Estimativa de Emissão de Gases Estufa (Seeg) e divulgada pelo Observatório do Clima. O percentual inclui não apenas as emissões de GEE pelos animais em si, mas também o desmatamento e as mudanças no uso da terra inerentes à atividade agropecuária no país.
O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo, com um recorde de mais de 286 mil toneladas enviadas a outros países em setembro deste ano, de acordo com dados compilados pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). Além disso, o país é responsável pela maior fatia de exportação de soja do mundo, sendo a China o principal comprador do grão, usado em larga escala na alimentação animal.
Apesar do aparente consenso de que "ruim com ele, pior sem ele", especialistas dizem que o SBCE começa sua jornada já enfraquecido, pois vai regular menos de 30% das fontes de emissão de GEE do país. Se não forem implementadas medidas severas de combate ao desmatamento, o país deve avançar pouco nas metas de redução de emissões.
Por dentro do mercado regulado de carbono
• A cota de emissão (CBE) é a moeda de troca no mercado de carbono.
• Uma cota de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que não foi emitida ou foi eliminada. Em outras palavras, uma CBE autorizaria a emissão de uma tonelada de carbono.
• As empresas compram CBEs em leilões ou em uma propriedade vizinha, por exemplo. Isso aumenta seu custo operacional e, possivelmente, afeta sua margem de lucro.
• Espera-se que chegue o momento em que as empresas entendam que é mais vantajoso trocar equipamentos e processos responsáveis pelas emissões do que continuar comprando CBEs.
• Com a troca, as empresas podem passar de compradoras a vendedoras de CBEs.
• Idealmente, um mercado regulado orienta os agentes na transição para uma economia de baixo carbono.
• O risco do mercado regulado é tornar-se um mercado cativo, com créditos de carbono muito baratos, que acabe não orientando a transição.
A caminhada rumo à regulação
O texto do projeto foi aprovado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a sanção da Lei nº 15.042. Os passos seguintes devem ser o detalhamento do plano de implementação do SBCE, para determinar quais setores vão precisar se adaptar primeiro e como serão os processos de inventários de emissões.
Estão previstas cinco fases para implementação do sistema. A primeira é a edição dos regulamentos, que pode levar até dois anos. Na fase seguinte, os setores regulados terão um ano para implantar instrumentos de medição para fazer o inventário de suas emissões. A fase três deve levar dois anos, na qual os regulados deverão apresentar um plano de monitoramento e remoção de gases de efeito estufa.
Só na quarta fase é que entrará em vigor o primeiro Plano Nacional de Alocação, com distribuição gratuita de cotas de emissão (CBE) e implementação do mercado de ativos do SBCE, que compreende a negociação em bolsa das CBEs e dos certificados de remoção de gases. A última fase seria a implementação plena do sistema, ao fim da vigência do Plano Nacional de Alocação.
Segundo Alexandre Prado, líder em mudanças climáticas do WWF Brasil, uma das mudanças positivas no texto substitutivo do Senado foi a questão da governança. Ficou estabelecida a criação de uma câmara técnica consultiva dos regulados, e não deliberativa como havia sido proposto pela Câmara. Essa alteração pode facilitar a implementação, uma vez que entidades ligadas aos setores regulados não teriam possibilidade de aprovar ou vetar determinadas ações.
"Isso tudo importa até em função da nossa NDC. Como ela agora está publicada, mas ainda não está com os setores, esse é um passo importante que tem que acontecer. [É preciso determinar] como vai ser dentro do setor de processos industriais e qual será a contribuição relacionada à meta que o Brasil tem para 2035", pontua Alexandre Prado.
O governo brasileiro apresentou sua segunda Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) durante a COP29 em Baku, no Azerbaijão, em novembro. O novo compromisso, no âmbito do Acordo de Paris, inclui reduzir as emissões líquidas de gases de efeito estufa no país de 59% a 67% até 2035, em comparação aos níveis de 2005.
A atual NDC brasileira vai ao encontro do que recomenda o mais recente Relatório sobre a Lacuna de Emissões do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), divulgado em outubro. O estudo aponta que são necessárias reduções de 42% até 2030 e de 57% até 2035 em todo o mundo, para limitar o aquecimento a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. Isso significa uma queda de 7,5% por ano nas emissões de GEE até 2035 – uma tarefa difícil mas, de acordo com o relatório, ainda possível.
Regulado vs. voluntário
A maior fatia do bolo das emissões de gases de efeito estufa vem dos setores industriais. Para compensar essas emissões, criou-se o mecanismo de créditos de carbono, que consiste em uma transferência de recursos – em outras palavras, compra de cotas – por grandes emissores de GEE.
Os créditos vêm de projetos de redução de emissões, como de uma empresa que emitiu menos do que seria esperado dela e, agora, se tornou "credora" de carbono, ou de projetos de captura de carbono da atmosfera, como os sistemas agroflorestais e as áreas de reflorestamento.
No mercado regulado, o governo monitora as emissões de setores específicos e define o preço da tonelada de carbono. Há obrigatoriedade de compensação para as empresas, geralmente a partir de determinado volume de emissões. De acordo com o texto do PL, no caso do mercado de carbono brasileiro, só os setores que emitem acima de 25 mil toneladas de CO2 por ano serão obrigados a comprar cotas de carbono como compensação.
Já o mercado voluntário é regido por empresas e organizações, como as chamadas certificadoras. Essas empresas, a exemplo da líder de mercado Verra, negociam o preço do crédito de carbono em contrato de acordo com cada projeto.
O problema é que não há fiscalização por órgãos superiores, o que pode levar a fraudes e falta de salvaguardas socioambientais. A própria Verra foi alvo de uma operação da Polícia Federal em junho por vender créditos de carbono de três projetos na Amazônia que envolviam esquemas de grilagem de terras e extração ilegal de madeira. Há dezenas de denúncias de casos de contratos abusivos fechados por empresas com comunidades tradicionais, como o Joio mostrou em reportagens sobre comunidades quilombolas e extrativistas no Pará, que foram enganadas por ‘caubóis’ do carbono.
Além das dificuldades impostas por ações ilegais, como a grilagem, o mercado regulado brasileiro já sai defasado do papel por abrir portas para que o agronegócio explore livremente o mercado voluntário. O setor pode se beneficiar de projetos voluntários de créditos de carbono usando Áreas de Preservação Permanente (APPs) e de reserva legal. Uma ideia que soa imoral, uma vez que essas áreas já devem ser obrigatoriamente conservadas, de acordo com a legislação. O agro vai poder receber dinheiro por cumprir a lei.
"A bancada ruralista mostrou sua força na agenda ambiental e, como resultado, o setor da agropecuária ficará de fora dessa regulação, livrando-se de possíveis ônus. Mas se beneficiará de projetos privados de carbono, incluindo projetos de recomposição ou mesmo manutenção em APPs e reserva legal", afirma Ciro Brito, analista sênior de Políticas do Clima no Instituto Socioambiental (ISA).
Se por um lado o projeto de lei parece demonstrar que o Congresso admitiu a existência da crise climática, na prática isso deve ter um viés economicista. Para Shigueo Watanabe Junior, pesquisador sênior do Instituto Talanoa, "o que se fez neste PL foi basicamente garantir um mercado cativo para créditos de carbono nacionais".
"Não há nada menos capitalista do que um mercado cativo. Abrir o mercado regulado para créditos de carbono é um tremendo risco. Pode vir a inundar o regulado com créditos baratos, nenhum empresário irá trocar equipamento algum e a finalidade do regulado some", avalia. Isso significa que o mercado regulado pode garantir preços mais baixos do que o mercado voluntário. Se os créditos forem baratos demais, a política pode gerar um efeito rebote nas empresas, que podem preferir seguir comprando cotas para compensar suas emissões e não investir em tecnologia para transição energética. Não seria bom para as contas públicas e nem para o volume de emissões líquidas de GEE.
A realidade se impõe quando se pensa no escopo limitado do SBCE. Além da criação do sistema, o país precisa demonstrar ambição climática combatendo o desmatamento, reduzindo as emissões da agropecuária, gerenciando os resíduos sólidos urbanos e substituindo os combustíveis fósseis no transporte de cargas e de passageiros. Essa última ação parece especialmente distante diante do fato de que o governo pretende dar continuidade à exploração de petróleo na Amazônia.
"O mercado regulado não é o melhor instrumento para enfrentar esses desafios. Isso significa ir além do que as políticas existentes preveem, sendo que elas mal foram implementadas", continua Shigueo Watanabe. "A melhor coisa foi o sistema finalmente ter sido aprovado. É uma pena que essa brecha entre voluntário e regulado existe faz tempo, e a gente sabia que não ia conseguir fechar essa brecha."