Coluna

Legados esportivos: o reinado de Rayssa Leal

Imagem de perfil do Colunistaesd
Brasileira, natural do Maranhão, Rayssa Leal supera sete japonesas e vence mundial de skate, em Roma - Reprodução/Instagram Rayssa Leal
Rayssa se tornou a primeira mulher a conquistar, por três vezes consecutivas, a final da SLS

Nessa tarefa de escrever para a coluna sobre a participação de mulheres em esportes no âmbito internacional, ora sendo integrada com celebração, ora sendo barrada por regulações restritivas para a proteção da categoria feminina, nos deparamos a todo momento com a construção de um legado. Evidentemente, os significados de um legado são diversos. Contextuais. Mas gosto muito de entender como a memória coletiva mais atual é forjada e lapidada por novas narrativas e personagens que, em outros momentos, seriam rejeitados pela tradição masculinista do campo esportivo.

Por aqui, vamos acompanhar histórias de mulheres que lutaram para pertencer ao movimento olímpico, como foi a de Alice Milliat na coluna passada, ou de mulheres que foram investigadas por entidades esportivas por parecerem masculinas ou ambíguas demais, como a controvérsia recente de Imane Khelif nos Jogos de Paris 2024. Mas agora, em dezembro, queria homenagear uma nova história feminina que se destaca e se consolida do nosso esporte nacional. O reinado de Rayssa Leal no skate.

Essa modalidade esportiva se desenvolve a partir de 1960, nos Estados Unidos, com diversas fases de popularidade, evolução de tricks e usos do espaço público ou privado. Mas o skate em sua versão contemporânea inicia uma estruturação em duas frentes, uma linha mais profissional a partir de práticas amadoras e competitivas no sentido de impulsionar um estilo de vida, com os próprios skatistas investindo na modalidade. Além de uma linha similar às outras entidades esportivas que buscam participar do movimento olímpico, com a formalização de uma federação internacional gerindo regras e campeonatos para uniformizar a prática. Nesse caso, a institucionalização foi bastante conflituosa. A última mudança foi a junção das federações Internacional de Skate (ISF) e a Internacional de Esportes de Rodas (FIRS), em 2017, para formar a World Skate, que representa atualmente mais de dez modalidades de patinação sobre rodas, com creditação do Comitê Olímpico Internacional (COI).

A competição que nos interessa, o Campeonato Mundial Super Crown, ilustra a primeira linha citada, um torneio desenvolvido desde 2010 pela Street League Skateboarding (SLS), e não pela World Skate, a entidade olímpica da modalidade. Tornando-se o principal circuito profissional de skate competitivo, é um evento que acontece em etapas durante o ano, em várias cidades do mundo, ganhando bastante relevância internacional. Desde 2015 a versão feminina também acontece em paralelo à masculina, com a primeira edição sendo vencida pela Letícia Bufoni.

À medida que a competição se consolida, Pâmela Rosa também desponta e vence o campeonato mundial da SLS em 2019 e 2021. E, desde 2022, temos Rayssa Leal conquistando a grande etapa final desse evento: o Super Crown. Ela, por sua vez, brilha em outras frentes, já é também bicampeã do torneio mundial da World Skate, o World Skate Games, em 2022 e 2024. Desde os 11 anos competindo internacionalmente, foi a atleta brasileira mais jovem a ganhar dois pódios consecutivos nos Jogos Olímpicos – prata em Tóquio 2021 e bronze em Paris 2024.

Nesse último domingo, Rayssa se tornou a primeira mulher a conquistar, por três vezes de forma consecutiva, a competição final da SLS. A tricampeã errou as duas primeiras manobras, no ginásio lotado do Ibirapuera, em São Paulo, o que a forçou a performar sem erros suas últimas manobras, com uma precisão crucial para vencer o evento de virada, com as notas 9.1, 8.7 e 9.1. Totalizando 35.4 pontos com o somatório da descida de linha pelo circuito. O pódio contou também com as japonesas Coco Yoshizawa e Yemeka Oda, somando 35.2 e 33.7 pontos, respectivamente. Todas as três atletas ainda estão em formação, jovens adolescentes, com 18 anos ou menos.

Na coluna passada vimos como os gestores olímpicos, nessa primeira metade do século XX, tinham grande dificuldade para aceitar a participação feminina em modalidades consideradas viris, de demonstração de força ou de resistência, tidas como masculinas demais para o corpo feminino. Esse tempo, felizmente, passou. Mesmo assim, os esportes ainda são percebidos e recebidos como diferentes em hierarquia para homens e mulheres. Por exemplo, o skate ainda perdura como um espaço esportivo no qual debates sobre as habilidades dos atletas, como o refinamento técnico ou a velocidade da manobra, são sistematicamente generificados.

Por outro lado, no skate também já vislumbramos uma aceitação de que atributos emocionais, qualidades que antes eram reconhecidas como apenas masculinas – como a possibilidade de ser “gelada” e performar bem sob intensa pressão – hoje são aspectos que também marcam a trajetória e o legado de uma esportista mulher. Essa mudança, especialmente quando aparece na representação celebrada de uma adolescente de 16 anos, é muito emblemática das atualizações nos imaginários e papeis de gênero.

Ao mesmo tempo que começamos a enaltecer a capacidade de ser “clutch”, em uma menina decisiva nos mais diversos cenários de competição internacional, passamos a reconhecer que o skate é um ambiente receptivo para mobilizar novas gramáticas sobre torcer e competir em alto rendimento. Essas mudanças na maneira de se engajar com a disputa esportiva podem ser percebidas pela solidariedade de Rayssa com a australiana Chloe Covell, que se machucou quando tentava buscar a primeira colocação em sua última volta no Super Crown, indo cumprimentá-la antes mesmo de comemorar sua vitória.

Ou até mesmo quando o público ficou apreensivo e preocupado com o skatista colombiano Jhancarlos Gonzalez, que caiu durante uma manobra, na final masculina, e foi levado para ser atendido em um hospital da cidade. Nas redes sociais do evento, ninguém parava de perguntar sobre o estado de saúde do atleta. Em sua própria conta, Rayssa resume esse momento: “Passando pra lembrar todo mundo, a gente não torce pra alguém cair, pra alguém se machucar, sei que na hora da competição a gente acha que tá ali todo mundo competindo só para o primeiro lugar, mas é bem maior que isso. É a questão da gente ser uma família e tá todo mundo torcendo pra galera acertar. Vocês viram a competição feminina, quem viu, quem assistiu tudo entendeu que ali é um apoio que a gente dá uma para a outra e é isso”.

Sensibilidade que sobra, não é? O skate ensina sobre cuidado, coletividade e diversão. Rayssa aprende e ensina de volta, ela é gelada, mas também sabe perder. Ela vence no limite do possível, sem momentos para vacilos, mas também já arriscou e não teve o resultado esperado. Ela transmite a palavra do pertencimento e da amizade através do esporte. Esse amadurecimento de uma atleta jovem, em formação, passando por vitórias inquestionáveis e perdas disputadas, faz de Rayssa um legado complexo.

Sua celebração atualiza atributos de gênero no esporte e também materializa o esforço coletivo – de muitas meninas e mulheres no esporte – para transformarem suas realidades de brincar, de competir e de vencer em alto nível em novas narrativas sobre as possibilidades de termos outros heróis. O que já acontece nas pistas, nos pátios e nas quadras de Imperatriz, no Maranhão, se traduzindo como um modelo inevitável de representação nacional nas competições e nos imaginários do que podemos ser esportivamente. Viva Rayssa! Que seja um longo reinado.

*Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Martina Medina