Impactante, profunda e decisiva. Assim é a fase que marca o início do desenvolvimento humano. Com o cérebro em franca formação, a criança de 0 a 6 anos desponta para o mundo, reagindo a todos os estímulos que se apresentam. É na primeira infância que ela começa a se movimentar, a aprender e a socializar, experimenta sentimentos, desenvolve a linguagem, nutre um forte vínculo afetivo com seus cuidadores e está mais vulnerável à violência. As experiências, negativas e positivas, terão impacto por toda a vida.
Dada a importância e complexidade desta etapa, são necessárias, obviamente, leis e políticas específicas que garantam um crescimento saudável a essa parcela da população. E o Brasil já as possui. Além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do artigo 227 da Constituição Federal, que considera a criança uma prioridade absoluta e determina como dever do Estado, da família e da sociedade a sua proteção, foi aprovado em 2016 o Marco Legal da Primeira Infância. E o Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI), lançado em 2010, foi revisado e atualizado em 2020. O documento deixa clara a necessidade de uma política nacional que integre diferentes setores e seja articulada com estados e municípios, que, por sua vez, têm a responsabilidade de elaborar os respectivos planos pela primeira infância, segundo as realidades locais, mas com base no plano nacional. Em junho de 2024, um decreto do governo federal estabeleceu as diretrizes para a elaboração da política nacional.
E o estado do Rio?
Antes de falar sobre o plano, é preciso contextualizar o cenário da criança pequena no estado. Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a primeira infância compõe 7,93% (1,2 milhão) da população fluminense. Cerca de 267,3 mil crianças de 0 a 3 anos estão matriculadas em creches, enquanto 370,8 mil com 4 e 5 anos cursam a pré-escola.
O número de crianças de 0 a 6 anos no Cadastro Único e beneficiárias do Bolsa Família denota que, pelo menos, 817,5 mil vivem em situação de pobreza. A taxa de mortalidade infantil é de 13,16 para cada mil nascidos vivos, sendo 69,29% destas mortes por causas evitáveis, segundo o Datasus.
Em relação à violência, as estatísticas também preocupam. Em 2022, foram realizados 6.213 atendimentos médicos decorrentes de agressões contra crianças de 0 a 4 anos. Vale ressaltar que os registros do Sistema Único de Assistência Social (Suas) representam a ponta do iceberg, já que muitos atos violentos não chegam a exigir atendimento médico.
De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP) e a Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) do Rio, no primeiro semestre de 2024, os três principais delitos contra crianças na primeira infância foram: estupro (496 casos), lesão corporal dolosa (315) e maus-tratos (223). É importante lembrar que há subnotificação nestes casos.
Diante deste contexto, o Plano Estadual pela Primeira Infância (Pepi) no estado do Rio ainda é um sonho de um grupo de ativistas e atores do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes. A notícia animadora é que já foi dado o pontapé inicial para se tornar realidade.
Na última terça-feira (17), durante a Oficina "Criança e Direitos: como prevenir violências a partir do Plano Nacional pela Primeira Infância", realizada pela Rede Não Bata, Eduque, pelo Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip) e pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca-RJ), a Comissão da Primeira Infância do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (Cedca-RJ) se reuniu para definir um cronograma e traçar metas de trabalho. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, com o envolvimento e comprometimento de outras partes competentes.
Na ocasião, a Rede divulgou um diagnóstico inédito sobre os planos pela primeira infância em âmbito estadual e municipal. Na cidade do Rio, a caminhada está mais adiantada, visto que existe, desde 2013, um Plano Municipal pela Primeira Infância (PMPI), aprovado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA-Rio). No entanto, o documento nunca foi atualizado e não conta com um plano de ação para implementação, com objetivos, metas e indicadores específicos, além de não prever um fluxo de monitoramento e avaliação. Também foi aprovado antes da promulgação da Lei Menino Bernardo, do Marco Legal da Primeira Infância e de outras legislações que representam importantes avanços na perspectiva da prevenção de violências contra crianças.
Ao longo do evento foi apresentada uma pesquisa que revela desafios e potencialidades para a realização de ações intersetoriais com foco na primeira infância, condição básica para a implementação dos planos.
Afinal, educação, saúde, moradia digna, alimentação de qualidade, segurança, lazer, o brincar, cultura, integridade física e psicológica são direitos básicos de toda criança.
Segundo a percepção dos participantes da pesquisa, as principais dificuldades, tanto a nível municipal quanto estadual, são a atuação em rede; o estabelecimento de planos de ação conjunta da saúde, assistência social, educação e de órgãos de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente; a ausência ou insuficiência de financiamento; a integração dos órgãos do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com os conselhos tutelares, de direitos e organizações da sociedade civil; entre outros.
Sobre as potencialidades, foram destacados o estabelecimento de um Plano de Ação pela Primeira Infância pelas secretarias municipais e de Estado; articulações com a Frente Parlamentar pela Primeira Infância e com a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj); promoção de processos de formação interdisciplinares e continuados dos profissionais de diferentes setores.
Neste contexto, é urgente que as diversas áreas competentes se mobilizem para fazer acontecer, aperfeiçoando a comunicação e o trabalho integrado e coletivo. Que as autoridades, quando forem destinar o orçamento, se lembrem das ações que materializam as leis e políticas vigentes e, de fato, garantam uma primeira infância saudável e protegida. Lugar de criança é na política pública, no orçamento e onde mais for preciso para que seus direitos sejam assegurados e respeitados.
*Ana Leticia Ribeiro é jornalista do projeto Criança e Direitos/Rede Não Bata, Eduque
**Daniela Tafuri é jornalista e consultora do projeto Criança e Direitos/Cecip.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato RJ.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Jaqueline Deister