Comunidade é representativa do processo de piora significativa das condições de vida no país
Por Dennis Gonçalves*
A Comunidade Paulo Freire (re)existe na periferia de Goiânia (GO) desde a pandemia. É lá que 104 famílias vivem em barracas de madeira e lona, em ruas de terra. É lá que dormem, cozinham, recebem parentes nos finais de semana, organizam cultos e festejam aniversários. É lá que brincam as crianças, quando voltam da escola.
Batizada em homenagem ao patrono da educação brasileira, a comunidade vive em uma área de ocupação urbana, propriedade de uma empresa que, sabe-se, estava há anos sem pagar o devido imposto pelo terreno, de cerca de 32 mil m². A homenagem é apropriada, já que Paulo Freire apostava justamente nesse tipo de processo, no qual as pessoas se organizam para acessar coletivamente um direito cuja garantia ainda é muito limitada no Brasil. E, ao fazê-lo, constroem entre si novas relações de solidariedade, de exercício da cidadania e de prevalência de valores democráticos.
A comunidade também é exemplo de outro processo contemporâneo. A área onde vivem as famílias foi ocupada numa conjuntura de piora significativa das condições de vida da maior parte da população brasileira. Sem perspectivas de renda e com o custo de vida em alta, milhares de famílias em todo o Brasil se viram obrigadas a mudar para acampamentos em áreas de ocupação, com as mesmas condições precárias que testemunhamos ainda hoje na Paulo Freire.
Dados publicados pela campanha Despejo Zero, atualizados até julho de 2024, contabilizam um milhão e meio de pessoas sob ameaças de despejo e remoções forçadas, no campo e na cidade, em todas as unidades federativas.
Neste contexto, uma parcela do Poder Judiciário mostrou-se sensível ao acolher, em junho de 2021, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, deferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso e depois referendada no pleno do STF. A medida suspendia os processos de reintegração de posse enquanto durassem os efeitos da crise sanitária e esteve vigente até 31 de outubro de 2022. Após esse período, o próprio STF indicou um regime de transição para os processos suspensos, materializado na composição de Comissões de Soluções Fundiárias (CSF) junto aos tribunais, com participação de Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Executivo e outros atores interessados.
As famílias da Paulo Freire vivenciaram esse processo de perto. Escreveram cartas ao ministro Barroso e festejaram juntas todas as vezes em que a ADPF 828 foi prorrogada. Depois, entraram na CSF do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Acolheram em seu território a visita de juízes, promotores e defensores públicos. Participaram diversas vezes de reuniões de mediação com o poder público e a representação da proprietária do terreno. Por fim, choraram juntas quando, em agosto de 2024, a comissão devolveu o processo por impossibilidade de construção de uma solução. Ato contínuo, o juiz natural reiterou a ordem de despejo que estava suspensa.
Neste caso, a solução não pôde ser encontrada pela CSF, pois, segundo consta em seu relatório, a prefeitura de Goiânia se omitiu de apresentar um conjunto de medidas que dessem tratamento humanizado às famílias da Paulo Freire. "Quedou-se inerte", nas palavras do documento citado.
O que a história da comunidade evidencia é que, apesar da importância do rito estabelecido pelo Judiciário, ele só pode chegar até certo ponto. Esse limite não pode ser superado enquanto os poderes Legislativo e Executivo não forem capazes de produzir uma política pública abrangente para a situação das ocupações urbanas, que envolva regularização fundiária, habitação popular e urbanização do território.
Existem avanços, em nível federal, com a retomada do programa Minha Casa, Minha Vida e os lançamentos dos programas Periferia Viva e de democratização de imóveis da União. Contudo, ainda insuficientes, do ponto de vista orçamentário, diante da magnitude do problema fundiário nas cidades brasileiras. E, em muitos pontos, tais programas ainda carecem de um olhar específico para as famílias vivendo esta situação de enorme vulnerabilidade. Sobre isso, o governo federal não foi capaz, ainda, de implementar uma ouvidoria para conflitos fundiários urbanos, que teria como missão trazer a atenção de agentes públicos para as situações mais emergenciais.
Os estados e municípios precisam contribuir muito mais. O que se verifica aqui é um cenário desolador. O programa Para Ter Onde Morar, do estado de Goiás, trabalha com as modalidades de aluguel social, no valor de R$ 350, e de produção habitacional que, curiosamente, não contempla seus dois maiores municípios.
Enquanto isso, e felizmente, as famílias da Comunidade Paulo Freire podem festejar mais um Natal juntas. No dia 3 de dezembro, a juíza Mariuccia Benício Soares Miguel, do TJGO, deferiu o pedido liminar apresentado pela Defensoria Pública de Goiás, suspendendo, novamente, o despejo. De acordo com sua decisão, até que o município de Goiânia ou o estado de Goiás apresentem um plano de ação que contemplem os protocolos e normativos do Judiciário.
*Dennis Gonçalves é sociólogo, educador popular e militante do MTD em Goiás.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires