Ficou para 2025 a análise, por parte do Senado, da proposta que prevê ampliação do tempo de internação compulsóri de réus inimputáveis em razão de a pessoa ter doença mental ou desenvolvimento mental incompleto quando cometeu o crime. De interesse da bancada da bala, a medida foi aprovada pelo plenário da Câmara dos Deputados no último dia 12, em meio a uma articulação conjunta com o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), e tende a ser alvo de uma nova onda de pressão para evitar a aprovação do texto pelos senadores. É o que afirma o presidente da Frente Parlamentar Mista para a Promoção da Saúde Mental (FPSM), deputado Pedro Campos (PSB-PE), para quem a Câmara votou o texto de forma irrefletida.
A medida aprovada é o Projeto de Lei (PL) 1637/2019, de autoria do ex-deputado bolsonarista Delegado Waldir (União-GO), relatado por Delegado Palumbo (MDB-SP). O projeto impõe um prazo mínimo que varie de três a 20 anos para o tempo de internação compulsória de réus considerados inimputáveis – pelas regras atuais, o Poder Judiciário pode estipular pena que varie de um a três anos. O emedebista defendeu a aprovação da proposta alegando que o objetivo seria “fortalecer a segurança pública e garantir a proteção da sociedade contra agentes inimputáveis considerados perigosos”. O PL recebeu sinal verde do plenário por um placar de 238 votos favoráveis, 111 contrários e duas abstenções, em meio à ausência de mais de 160 dos 513 parlamentares da Casa.
“O plenário não teve a oportunidade de aprofundar a discussão em relação a isso. Estava meio esvaziado no dia e pautaram uma matéria que nem todo mundo conhecia direito. Não é razoável permitir que pessoas com transtornos mentais tenham penas superiores às de pessoas sem transtornos que cometem o mesmo delito. A nossa frente parlamentar é mista, por isso vamos trabalhar uma ponte com os senadores para aprofundar essa discussão e tentar barrar esse texto lá. Eu acredito na possibilidade de a gente conter esse retrocesso”, disse Campos ao Brasil de Fato.
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O texto do PL 1637 amplia de um para três anos o tempo durante o qual o réu internado deverá ser submetido a avaliações cujo objetivo seja deliberar sobre a necessidade de manutenção, substituição ou suspensão da medida. Também prevê as seguintes penalidades: sete anos de internação compulsória para crimes praticados com violência ou grave ameaça e 15 anos de internação para casos de condutas criminosas que resultem em morte.
"Veja que, para casos de violência doméstica, por exemplo, a previsão de pena hoje vai de dois a cinco anos [de reclusão]. Se um filho com autismo no grau três tem um surto e bate na mãe, por exemplo, ele teria que passar no mínimo sete anos internado, pelo que está proposto no projeto. Isso é algo completamente desequilibrado do ponto de vista de justiça", argumenta Pedro Campos, para quem os parlamentares aprovaram o texto no impulso e sem muita noção das consequências desse tipo de medida.
“A expectativa de alguns deputados com os quais conversei era a de endurecer penas, por exemplo, para psicopatas ou pessoas com algum tipo de patologia social. Só que essas pessoas não são consideradas inimputáveis nos termos da lei”, emenda Campos.
O projeto fixa ainda que o juiz poderá determinar a internação do réu em qualquer fase do tratamento ambulatorial “para fins curativos ou como garantia da ordem pública”. “Esse PL atualiza uma perspectiva manicomial da política que faz o acompanhamento das pessoas com transtorno mental que cumprem medida de segurança. Só que agora ganhou um reforço absolutamente perverso de criminalização com a previsão de aumento de pena”, afirma o consultor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), Filipe Asth, que também atua como secretário-executivo da FPSM.
Debate
Em seu parecer, o relator do projeto afirma que o texto “respeita integralmente os princípios fundamentais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal”. Também diz que o relatório garante que as medidas de segurança aplicadas a pessoas inimputáveis estejam “alinhadas com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, em especial no que tange aos direitos fundamentais das pessoas com transtornos mentais”. Para os especialistas no assunto, a argumentação contida no parecer é uma espécie de armadilha discursiva.
“Não dá pra afirmar que um PL que restringe direitos humanos das pessoas com deficiência psicossocial esteja alinhado com os limites constitucionais e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A Lei nº 10.216/01 (Lei da Reforma Psiquiátrica), que garante a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foram avanços fundamentais na direção da construção de uma linha de cuidado em saúde capaz de garantir direitos desse segmento e que estão sendo atacados por essa [proposta de] legislação, que diz em seu argumento corrigir eventuais ambiguidades”, argumenta Filipe Asth.
O consultor aponta que diferentes trechos do projeto representam uma ponte para o passado em termos de tratamento dado pelo Estado a réus inimputáveis que entram em conflito com a lei. “O texto do PL 1637 apresenta, por exemplo, incisos que buscam garantir a internação compulsória, a criação de alas exclusivas nos equipamentos de saúde, promovendo, dessa forma, o isolamento e a manutenção da exclusão social sob o argumento retrógrado da periculosidade de usuárias e usuários de saúde mental. A orientação do cuidado promovido pela rede de atenção psicossocial se dá em liberdade, e é assim que deveríamos seguir”, defende.
“Demagogia”
Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Leonardo Pinho diz que a aprovação do PL 1637 coloca o Congresso Nacional na contramão dos avanços que haviam sido conquistados na área na história recente. “É um projeto demagógico e mentiroso, porque, primeiro, é uma reação a uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que orientou o cumprimento da legislação nacional, a Lei nº 10.216, para as pessoas que estão nos chamados ‘manicômios judiciários’”, ressalta o dirigente.
“O PL surge no contexto de impedir o cumprimento da Lei nº 10.216 no sistema penitenciário brasileiro. E por que eu digo que é mentiroso? Porque ele diz que o CNJ estaria legislando e que os parlamentares precisariam reagir a isso, o que é uma mentira. O CNJ apenas cobrou os Poderes Executivos, tanto o federal quanto o estadual, que cumprissem a lei para fazerem um processo de desinstitucionalização no Brasil. Os parlamentares votaram uma mentira. É um projeto que visa mais fazer demagogia, fazer proselitismo político com o sofrimento e a violação de direitos humanos. Então, é um desastre”, avalia Pinho.
Ecos
Pesquisadora com experiência na interface entre saúde mental e Justiça, a professora Alyne Alvarez, do curso de Psicologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), busca nos ecos do passado o que considera como pano de fundo da decisão tomada pelos deputados. “O caráter punitivista acompanha a política de segurança pública desde que o Brasil é Brasil. Os Códigos Penais são todos nessa linha. Nós temos um modo de pensar a política penal muito voltado pra um determinado recorte populacional e, claro, a gente pode entender que essa política se faz exatamente para o controle dos corpos tidos como indesejáveis, que são aqueles entendidos como improdutivos, que desviam das normas. São corpos tidos como abjetos, para os quais essa política se volta predominantemente”, traduz.
Ela soma esse aspecto ao clamor social fundado na cultura do pânico. “Há uma imagem equivocada dessas questões. Se a gente pegar os números e observar as proporções, a gente vê que as pessoas com transtornos mentais não cometem mais crimes do que aquelas que não têm esse tipo de diagnóstico. Esse punitivismo é colado ao clamor social, e aí tem quem ache que, ‘se nada for feito, essas coisas vão ficar livres do controle do Estado’, mas, na verdade, essa é uma imagem equivocada. Tem pesquisas que mostram o contrário”.
A professora cita como exemplo os resultados do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), adotado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) em 2001. Dados oficiais do TJMG mostram que a iniciativa tem índice de reincidência criminal de apenas 2% para as pessoas atendidas, com essa estatística tendo sido registrada somente em crimes de menor gravidade.
“É um percentual interessante para se pensar a imagem equivocada que se tem sobre quem é a pessoa com transtorno mental. Esse programa acompanha muitas pessoas em medidas de segurança em liberdade porque é algo atravessado pelos princípios da reforma psiquiátrica, da luta antimanicomial, que é exatamente a ideia de prezar pelo tratamento em liberdade para preservar os vínculos familiares e comunitários e, de fato, reconectar essa pessoa ao mundo a partir dessa premissa de que é preciso estar em liberdade para se restabelecer na relação com o mundo e consigo. E veja que índice de reincidência é muito baixo se comparado com o das pessoas que cumprem pena nas unidades prisionais comuns”, argumenta.
Pesquisa feita pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) identificou que o índice de reincidência criminal no Brasil é, em geral, de 37,6% para novo cumprimento de pena em até cinco anos, chegando a 42,5% se for considerada qualquer tipo de entrada no sistema prisional. Já um estudo divulgado em 2022 pelo Instituto Igarapé chegou a um índice médio de 32% de reincidência criminal no país. O levantamento foi feito com base em 111 pesquisas empíricas.
Estatísticas como a que foi produzida pelo TJMG por meio do PAI-PJ se repetem em outros pontos do país. Alyne Alvarez menciona o caso de Goiás, estado onde o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), também a cargo do Poder Judiciário, contabiliza 5% de reincidência. “Por isso é um equívoco achar que a pessoa com sofrimento psíquico grave é exatamente perigosa. Isso não existe, e o projeto de lei aprovado na Câmara é um verdadeiro retrocesso, por isso espero que não avance.”
Edição: Geisa Marques