O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) deverá recorrer da liminar que suspendeu a resolução aprovada pelo órgão na última segunda-feira (23) a respeito do atendimento de crianças e adolescentes em casos de aborto legal. A informação é da presidenta do órgão, Marina de Pol Poniwas, que integra o conselho como representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP). A norma foi questionada pela senadora bolsonarista Damares Alves (Republicanos-DF), que obteve uma decisão temporária expedida pelo juiz Leonardo Tocchetto Pauperio, da 20ª Vara Federal Cível do Distrito Federal. A resolução gerou discórdia também entre o governo federal e representantes da sociedade civil no Conanda.
"O Conanda vai recorrer. Quem representa o Conanda em ações como essa é a AGU [Advocacia-Geral da União], mas a gente está também se organizando como entidades da sociedade civil para recorrer dessa decisão", afirma Pol Poniwas. Criado por meio de lei na década de 1990, o Conanda é um órgão colegiado que tem o objetivo de zelar pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A gestão se dá de forma compartilhada entre governo e sociedade civil. O órgão é vinculado à estrutura do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Questionada se a posição contrária do governo à resolução não poderia afetar o assessoramento da AGU ao Conanda no caso, Marina de Pol Poniwas diz que os membros do órgão não sabem o que vai se delinear no horizonte a partir de agora. "Nós não sabemos o que vai acontecer de verdade. A gente também está com essa dúvida, mas a gente espera que isso não afete e que a AGU cumpra o seu papel."
Cisão
Representantes civis e interlocutores da gestão Lula viveram uma cisão durante a votação da resolução, cuja votação terminou com 15 votos favoráveis contra 13 rejeições, sendo todos estes de representantes do governo. Ambos possuem 15 interlocutores no órgão, mas não participaram dessa votação os representantes dos Ministérios da Justiça (MJ) e dos Povos Indígenas (MPI). No caso deste último, a presidenta do Conanda conta que a ausência na votação se deu pelo fato de que a pessoa indicada para representar a pasta ainda não tinha ato oficial de designação para a função, conforme determinam as regras.
Logo após a votação, o MDHC publicou uma nota alegando que o rito do processo de análise e votação do documento teria sido desrespeitado. "Durante a discussão da proposta, o governo questionou insistentemente os termos da resolução e o MDHC fez um pedido de vistas, conforme previsto pelo regimento interno do colegiado", diz o documento, afirmando que a consultoria jurídica da pasta teria apontado "necessidade de aperfeiçoamento e revisão de texto".
"Nesse sentido e fundamentado no parecer jurídico, na reunião de segunda-feira, foi feito novo pedido de vistas por representante do governo. Embora seja direito de qualquer conselheiro previsto regimentalmente, o pedido foi colocado em votação e negado pelo pleno do Conanda, e a resolução foi posta em votação e aprovada", continua o MDHC, ao se queixar da decisão.
Em conversa com o Brasil de Fato, a presidenta do Conanda rebate os argumentos da pasta. Ela afirma que "todo o rito foi legítimo". Ela conta ainda que o processo foi alvo de um primeiro pedido de vistas em 2 de dezembro, por parte da representante da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. "O pedido foi concedido e, quando ela pede vistas, a gente automaticamente interrompe a discussão do mérito para que ela possa ter o seu direito previsto regimentalmente de forma garantida", afirma Marina de Pol Poniwa, destacando que o regimento prevê 20 dias de prazo para situações do tipo.
"Uma nova assembleia extraordinária foi marcada para 23 de dezembro e, então, nessa data a gente iniciou o processo de deliberação com a apresentação do relatório e o voto dessa conselheira. Ela fez isso e solicitou um adiamento da matéria para que a gente pudesse tratar desse assunto apenas no ano que vem. E aí, mais uma vez, coloquei isso em votação, entendendo que a assembleia é soberana, e o plenário do Conanda negou o pedido", relata a presidenta do órgão.
"Como o governo ficou insatisfeito com a negativa, novamente ele lançou mão de um instrumento e de uma estratégia para atrasar o processo de votação, pedindo novamente vistas da matéria. E o que foi sinalizado no momento é que o próprio regimento interno do Conanda diz que o prazo de vistas é de no mínimo 20 dias e que, havendo mais de um pedido de vistas, o prazo será comum. Ou seja, o que houve na assembleia foram interpretações diferentes a respeito do regimento. Tinha um grupo, do governo, que entendia que é possível pedir vistas a qualquer momento e um outro grupo que entendia que não é possível pedir para vistas sucessivas do processo", continua Marina de Pol Poniwa.
Ela ressalta que, durante o debate, um dos membros do colegiado apontou que seria inviável conceder mais de um prazo seguido de vistas. "Nós somos 30 membros e ele destacou que, se cada um fosse pedir vistas de forma sucessiva, as matérias demorariam mais de 600 dias para serem votadas, ou seja, terminaria o mandato de todos os conselheiros antes disso, o que seria inviável. E, considerando também que a gente está falando de prioridade absoluta por serem crianças e adolescentes, automaticamente essa matéria deveria ser vista como urgente por todas as pastas do governo e pela sociedade civil."
Pol Poniwa reforça que o rito do processo de votação teria ocorrido dentro das normas que regem o colegiado. "A gente está muito seguro do processo democrático e participativo que foi garantido no decorrer do trabalho. O governo participou de todo o processo de construção. É importante destacar que não é a primeira vez que o Conanda se manifesta a respeito dessa temática. Inclusive, recentemente, o conselho fez uma nota de posicionamento a respeito do projeto de lei 1904/2024 [que criminaliza o aborto após 22 semanas de gestação mesmo nos casos já permitidos no país]. A gente já se posicionou também em outros momentos, em outros contextos, como em casos específicos envolvendo gravidez de crianças, como foi o caso do Espírito Santo. Então, não é um assunto novo no conselho", argumenta.
A presidenta do órgão afirma que ainda está "tentando entender" a postura dos representantes da gestão Lula diante do caso. "Essa resolução vinha sendo construída desde setembro e o governo participou ativamente da construção da minuta, fez propostas de alteração do texto, dialogou nas reuniões que foram realizadas. Então, a gente tem certeza de que o processo de construção foi legítimo e também de que a resolução é mais que necessária diante do contexto alarmante de violência sexual contra crianças e adolescentes no nosso país."
Extrema direita
Questionada sobre como interpreta o fato de o governo e representantes da extrema direita terem ficado do mesmo lado diante da questão, Marina de Pol Poniwa diz que está "tentando entender essas semelhanças". "É algo que nos chama muito a atenção porque, afinal de contas, a gente [do Conanda], em nossa grande maioria, apoia, votou, colabora e constrói junto com o governo todas as políticas destinadas a crianças e adolescentes. Nos chama muito a atenção o fato de eles terem se unido neste momento. Bom, não sei se se uniram de verdade, mas o fato é que essa semelhança nos chama a atenção."
Assim como apontaram outros representantes civis nos últimos dias, a presidenta do Conanda afirma também que a divergência entre governo e sociedade civil diante da resolução é algo inédito e, portanto, foge da rotina política do órgão. "Obviamente que em vários momentos, por exemplo, a gente divergiu em determinadas situações, mas a gente sempre buscou a conciliação. Essa foi uma postura do meu mandato, inclusive, que a gente pudesse construir consensos progressivos e pudesse ir avançando na medida do possível em todas as pautas. Isso foi feito em várias situações."
A resolução
A norma aprovada pelos conselheiros na última segunda tem 22 páginas, ao longo das quais o Conanda fixa diretrizes para o atendimento a crianças e adolescentes em casos de violência sexual; destaca os direitos desse público-alvo; estipula normas para a "escuta especializada" e ainda os deveres dos órgãos do Estado no que se refere à prevenção desse tipo de violência e da gestação na infância, entre outros pontos. O documento também aborda as medidas de proteção que devem ser adotadas, aponta de que forma deve ser dar a participação dos conselhos tutelares em casos do tipo e traz definições gerais relacionadas ao assunto.
Entre os conceitos registrados na resolução está o de "objeção de consciência", que o documento define como o "direito individual de negativa de cumprimento de dever profissional com base em convicções morais". Também consta no documento, por exemplo, o entendimento de que "violência sexual contra crianças e adolescentes é qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoas, conforme dispõe a lei nº 13.431/2017".
"É uma resolução muito importante e que não inova no assunto. Ela traz um passo a passo, um fluxo que orienta o sistema de garantia de direitos para que ele assegure o que já está previsto em lei desde 1940 porque alguém precisa explicar o passo a passo. O Conanda não faz leis, não faz a política. Ele tem o papel de implementar o ECA na sociedade, traduzindo a política em detalhes, e foi isso que ele fez nessa resolução. Com ela, nós não iremos, obviamente, acabar com o estupro, mas temos o dever de orientar todos os serviços para que as crianças e os adolescentes que estejam em risco devido a uma situação de violência possam ser protegidos e que tenham seus direitos de fato garantidos."
Edição: Thalita Pires