SEM AVANÇO

Campo deve estar no centro do projeto de país para que a reforma agrária avance, diz Stedile

Para liderança do MST, pauta está parada apesar das promessas feitas durante a campanha eleitoral

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Em 2023, o governo Lula criou apenas 10 assentamentos, número considerado insuficiente pelo movimento - Lia Bianchini / Divulgação MST
Nós temos faltas latentes para potencializar [...] e para reativar a reforma agrária no Brasil

A reforma agrária, um dos temas fundamental para o desenvolvimento social e econômico do Brasil, voltou ao centro dos debates nas últimas semanas, após críticas contundentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) à gestão do ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), Paulo Teixeira e ao governo federal de maneira geral.

Dados recentes sobre os assentamentos realizados nos últimos governos expõem a desaceleração das políticas públicas voltadas ao campo. Enquanto o governo promete avanços para janeiro de 2025, movimentos populares cobram ações mais firmes para enfrentar os entraves estruturais e orçamentários que impedem a transformação do cenário.

Durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre 2003 e 2006, foram criados 1.705 assentamentos. No segundo mandato (2007 a 2010), foram 979. Já no primeiro governo de Dilma Rousseff, de 2011 a 2014, foram realizados 455 assentamentos. A continuidade da política foi afetada pelo impeachment: foram 70 assentamentos nos anos de 2015 e 2016.

Sob Michel Temer (2016 a 2018), foram 66 assentamentos, e no governo de Jair Bolsonaro, entre 2019 e 2022, apenas 18. Em 2023, o governo Lula criou apenas 10 assentamentos, número considerado insuficiente pelo movimento.

"Mesmo esses 10 assentamentos são irreais e não resultaram de desapropriações. São áreas que já estavam ocupadas havia 10 ou 15 anos. Não houve nenhuma novidade. Só houve uma legalização, que é boa, mas faz parte do modus operandi do Incra", critica João Pedro Stedile, liderança do MST.

Nesta segunda-feira (23), Lula recebeu o ministro Paulo Teixeira no Palácio da Alvorada. Segundo informações da pasta, o ministro foi tratar com o presidente sobre a Política Nacional de Economia Solidária, aprovada no Congresso Nacional em 27 de novembro e sancionada também nesta segunda. Além da pressão do MST para destravar avanços na pauta da reforma agrária, o encontro ocorreu às vésperas de uma possível reforma ministerial no governo petista.

Em entrevista ao episódio 57 do podcast Três Por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato e apresentado pelos jornalistas Nara Lacerda e Igor Carvalho, Stedile não poupou críticas a atuação governo, classificando a atuação do MDA e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), como "vergonhosa" e "incompetente".

"Nós temos 72 mil famílias acampadas do MST e outras 30 mil de outros movimentos da Contag, de movimentos localizados, e para esses acampados o governo não fez nada", destaca.

Para Stedile, o governo Lula ainda não conseguiu implementar avanços significativos na área, apesar das promessas feitas durante a campanha eleitoral. "Nós temos faltas latentes para potencializar a reforma agrária e para reativar a reforma agrária no Brasil, porque de fato nós estamos vendo é um congelamento e a retirada absoluta dela da pauta", afirma.

O ministro Paulo Teixeira minimizou as críticas em entrevista concedida na última quarta-feira (18), na qual afirmou que há empenho no avanço da pauta. "Toda reconstrução é demorada, porque você tem que retirar aquele entulho que impedia esses programas de avançarem. Construíram uma montanha para impedir que o MDA voltasse, e a gente teve que terraplanar [...] para agora fazermos essa grande entrega, que deveria ter sido feita antes", defendeu o ministro.

Lula, por sua vez, promete avanços, incluindo um pacote de ações para janeiro. Entre elas, a aquisição de R$700 milhões em terras para reforma agrária, adjudicação de propriedades de devedores da União e R$1 bilhão em linhas de crédito para assentados e quilombolas.

Estruturas públicas precarizadas

Diante deste contexto, o professor José Sobreiro Filho, geógrafo, docente da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Centro Brasil-China para Agricultura Familiar, convidado do episódio 57 do Três Por Quatro, destaca a importância de se ter um orçamento que represente as necessidades da população, em contraposição aos interesses do agronegócio.

"Não adianta a gente reestruturar o estado, a gente recriar o MDA, a gente dizer que estamos atribuindo uma atenção especial ao Incra, que estamos criando políticas públicas, se de fato as pessoas não conseguem ser representadas dentro do orçamento", argumenta Sobreiro Filho.

"O agronegócio, por exemplo, ele não brinca em serviço. Em qualquer ameaça significativa de perda de orçamento ou ameaça às suas margens de lucro, ele se comporta como um animal ferido, que agride a qualquer um que vai chegar em torno dele", complementa o geógrafo.

Stedile ressalta que é necessário enfrentar o problema do orçamento com mais firmeza. "O orçamento público é luta de classes. Quem disputa recursos disputa poder. E hoje, os pobres, especialmente os do campo, não estão no orçamento, como prometido."

Sobreiro também destaca a precarização das instituições responsáveis pela reforma agrária. “As estruturas do Incra estão degradadas. Faltam equipamento, funcionários, e, em muitos casos, até mesmo antropólogos para análise de laudos. Isso compromete qualquer tentativa de avanço", lamenta.

O papel do Estado na soberania alimentar

A falta de investimento em políticas públicas para a agricultura familiar e a priorização do agronegócio, segundo o professor da UnB, representam um perigo para a soberania alimentar e econômica do país

"A diferença entre a agricultura familiar e o agronegócio é brutal, absolutamente inaceitável. Precisamos afinar este ponto porque este é um ponto que nos ajuda, que nos dá suporte para resolver vários outros problemas, ou pelo menos para começar a estabelecer um conjunto de políticas que nos dão caminhos aí", argumenta Sobreiro Filho.

Com o futuro da reforma agrária em disputa, especialistas, movimentos populares e governo precisam alinhar interesses para enfrentar os desafios estruturais que persistem. De acordo com a liderança do MST, a promessa de avanços depende, sobretudo, da construção de "um projeto de país que coloque o campo no centro das soluções".

"Nós temos defendido sistematicamente nos espaços de debate, que um projeto de país hoje, para enfrentar as mazelas do capitalismo no Brasil, precisa ter um programa de renda e um programa de apoio fundamental na produção de alimentos. Onde entra agricultura familiar e a reforma agrária para você combater o latifúndio", destaca Stedile.

Máquinas chinesas e o impacto na agricultura familiar

É importante lembrar que grandes potências econômicas, como China e Estados Unidos, realizaram reformas agrárias profundas há décadas, impulsionando de maneira significativa seu desenvolvimento econômico e social.  O MST protagonizou, em parceria com a Universidade de Brasília e a Universidade da Agricultura da China, a importação de maquinário chinês para a agricultura familiar brasileira.

O projeto surgiu da necessidade de superar os desafios da produção agroecológica, como a produção de sementes, fertilizantes orgânicos e máquinas específicas para os camponeses, e já recebeu 55 máquinas para testes no Cerrado e 33 no Nordeste. 

Além disso, Stedile explica que um laboratório de microbiologia foi instalado na UnB para analisar o solo e desenvolver fertilizantes orgânicos. Para ele, é preciso importar a tecnologia e desenvolvê-la em território nacional. "Não é só copiar, tu tem que adequar a realidade brasileira". 

A iniciativa representa um avanço significativo para a agricultura familiar brasileira, buscando alternativas para a produção de alimentos saudáveis e sustentáveis, e "desafiando o modelo de agronegócio que predomina no país", diz a liderança do MST. 

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país.

Edição: Thalita Pires