Uma paciente do hospital psiquiátrico São Vicente de Paulo, localizado em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal, foi encontrada morta na noite do dia 25 de dezembro. Raquel Franca de Andrade, de 24 anos, era paciente e residia no hospital, conforme informações obtidas pela reportagem.
O prontuário médico, ao qual o Brasil de Fato DF teve acesso, aponta que no dia 25 de dezembro, às 19h29, Raquel Franca de Andrade, apresentou uma "crise convulsiva, simulando??”. A suposta simulação foi avaliada pela plantonista do hospital, que informou no documento, que aplicou medicação de acordo com a prescrição médica da paciente.
O documento foi atualizado novamente às 19h34 informando medicação e novamente depois, às 23h21 mencionando o óbito da paciente, às 20h41.
“Raquel tinha histórico de crises convulsivas, tomava medicação controlada para essas crises. Porém a equipe achava que era crise conversiva, tipo simulação. Que ela estava inventando as crises pra chamar atenção. Por isso às vezes ignoravam”, informa trecho de uma mensagem de whatsapp a qual o BdF DF teve acesso.
Ainda conforme as informações, Raquel apresentou crise convulsiva na noite do dia 24 de dezembro e foi contida mecanicamente (amarrada à maca). Conforme a denúncia, a paciente também teria sofrido uma queda, mas não recebeu o tratamento adequado.
“No prontuário tá falando que ela tava agitada dia 24 aí fizeram contenção física dela, deixaram amarrada até dia 25 de manhã. O que pode ter piorado o quadro dela também. Aí ela teve convulsão dia 25, deram remédio e não monitoraram. Tinham que ter levado ela pro hospital ou deixado na sala de observação junto com a equipe”, diz outro trecho da mensagem.
Na avaliação da presidenta do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP-DF), Thessa Guimarães, que também integra o movimento da luta antimanicomial do DF, a morte de Raquel na madrugada do Natal é reveladora da natureza do Hospital São Vicente de Paulo.
“Enquanto o planeta inteiro estava confraternizando, compartilhando a ceia ou descansando da festa, Raquel morreu sozinha, amarrada a uma maca, dentro de um manicômio que funciona ilegalmente no DF há 29 anos. Ela passou a madrugada de Natal amarrada a uma maca e foi deixada à morte”, destaca.
Suposta falha de assistência
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o deputado distrital Fábio Félix (Psol-DF) oficiou a Secretaria de Saúde nesta sexta-feira (27) pedindo mais informações sobre as causas que provocaram o óbito de Raquel Franca de Andrade.
“Solicitamos informações sobre as circunstâncias que ocasionaram o óbito da paciente. Reforçamos ainda a importância de garantir a transparência no acompanhamento do caso, com o fornecimento de informações à família e a esta Comissão, sobre as medidas adotadas”, destaca trecho do documento, também obtido pelo BdF DF.
O deputado distrital Gabriel Magno (PT-DF) também oficiou a Secretaria de Saúde do DF com pedido de informações, considerando a “suposta falha assistencial relativa a problemas de saúde pregressos”.
“Considerando-se a característica asilar do estabelecimento, que passa – inclusive – por discussão atual para desmobilização de seus leitos e consequente adequação à Política Nacional de Saúde Mental, torna-se ainda mais alarmante a situação, dado que seus pacientes estão sob tutela cotidiana do Estado e não são capazes de buscar assistência por meios próprios”, diz trecho do ofício.
Hospital funciona ilegalmente
Em agosto deste ano, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), lançou na Câmara dos Deputados, em Brasília, um relatório de inspeção realizada no Hospital São Vicente de Paulo no qual avalia a necessidade de fechamento do local.
“Enquanto o hospital estiver aberto, os serviços de saúde mental continuam funcionando dentro de uma lógica manicomial e com a centralidade de um hospital psiquiátrico”, explicou a perita do MNPCT, Carolina Lemos, durante o lançamento do relatório.
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O relatório apontou que o hospital opera ilegalmente há quase 30 anos, utilizando práticas manicomiais baseadas na medicalização e no uso de contenções mecânicas como método disciplinar, isto é, a imobilização através da força física. Método utilizado em Raquel Franca de Andrade, conforme relato da denúncia.
O documento recomendou a desativação definitiva do Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, substituindo-o por serviços comunitários de saúde mental que respeitem a dignidade e os direitos dos pacientes, conforme previsto na legislação brasileira.
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Entre as recomendações do relatório, também está a identificação de usuários “que atualmente estão internados há mais de 12 meses em leitos psiquiátricos em hospitais gerais e implementação de medidas para sua desinstitucionalização”. A denúncia sobre a morte de Raquel Franca de Andrade, também aponta que ela residia no hospital.
Fechamento do Hospital
Esta não é a primeira vez que o hospital foi alvo de inspeção. Em 2018, o HSVP também foi inspecionado pelo Mecanismo, com relatório publicado no mesmo ano. Em ambos os casos foram encontradas inúmeras irregularidades e ilegalidades. Em novembro de 2023, cinco pacientes fugiram do Hospital São Vicente de Paulo.
"As denúncias contra o Hospital não são de hoje; não são novas. Até por isso, o fechamento do hospital é mais do que uma necessidade; é uma urgência. O Distrito Federal tem que se envergonhar de possuir uma instituição manicomial como essa”, ressalta o professor da Universidade de Brasília e coordenador do Grupo Saúde Mental e Militância no DF, Pedro Costa.
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De acordo com o professor, o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus serviços públicos e não manicomiais requer que instituições como o HSVP parem de ser financiadas - com verba pública - pelo Governo do Distrito Federal (GDF) e pelo Estado brasileiro, e, também, que sejam fechadas, assim como quaisquer outros manicômios.
“Existe toda uma ideia de que com o fechamento dos manicômios, as pessoas podem ficar desassistidas e até morrerem, só que a verdade é que é o manicômio que mata”, ressaltou.
GT que discute fechamento está paralisado
Em uma coluna publicada no dia 13 de dezembro no Brasil de Fato DF, o Grupo Saúde Mental e Militância apresentou um panorama das discussões sobre o fechamento do Hospital.
No artigo, o coletivo aponta que o Grupo de Trabalho constituído para a desmobilização dos leitos psiquiátricos no hospital está paralisado e sem plano de trabalho. E também observou que desde o lançamento do relatório do MNPCT “nenhuma providência foi tomada sobre as recomendações do relatório para o HSVP”.
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“Fica explícita a natureza necropolítica, colonial e animalesca do Hospital São Vicente de Paulo. É preciso fechar o HSVP imediatamente”, destaca a presidenta do CRP-DF, Thessa Guimarães.
O que diz a Secretaria de Saúde?
Em resposta ao pedido de informações do Brasil de Fato DF, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal enviou uma nota em que informa que Raquel Franca de Andrade estava internada no Hospital desde 2020 e que a causa da morte está sendo investigada pelo Instituto Médico Legal (IML).
A pasta também informou que, de acordo com o Relatório do Atendimento de Emergência, após a paciente ser encontrada sem pulso, "foi realizada a monitorização com o desfibrilador seguido de aspiração com saída de grande quantidade de conteúdo gástrico e intubação orotraqueal. Foi seguido também o protocolo de reanimação". Ainda conforme a Secretaria, o relatório médico informa que a paciente "possuía histórico de crises epilépticas convulsivas atípicas".
Questionada sobre a quantidade de pacientes que estão internados no Hospital há mais de 1 ano, a Secretaria informou que "ao todo, o HSVP possui 59 pacientes internos, sendo que oito deles estão há mais de um ano na unidade".
*Matéria atualizada às 10h10, do dia 29 de dezembro de 2024, para inserir a nota da Secretaria de Saúde do DF.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino