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Em 2024, Tarcísio colocou São Paulo à venda; o que as privatizações implicam para o futuro?

Neste ano, o governo paulista realizou o maior número de leilões nos últimos 25 anos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) durante o leilão que privatizou a gestão de 17 escolas em São Paulo - Pablo Jacob/Divulgação/Governo do Estado

O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) concretizou e encaminhou uma série de concessões de empresas e serviços públicos à iniciativa privada em 2024, o segundo ano de mandato do ex-ministro de Jair Bolsonaro (PL). Neste ano, foi realizado o maior número de leilões nos últimos 25 anos. No total, foram nove pregões para a contratação de projeto no Programa de Parcerias em Investimentos de São Paulo (PPI-SP). As promessas são de melhorias na qualidade dos serviços prestados e alívio nas contas públicas para o Estado.  

No geral, Pedro Faria, economista e doutor em história pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, explica que o argumento favorável à privatização se baseia na ideia de que os interesses das empresas podem se alinhar aos interesses coletivos por meio da regulação.  

O estudioso, no entanto, alerta para o tamanho do poder econômico das empresas, o que pode solapar a capacidade do Estado em fazer valer as regulações. “A visão neoliberal parte do princípio de que se pode privatizar a empresa e regular o setor. Então basta ter uma agência reguladora que regule essa atividade e faça com que o interesse do agente privado se alinhe ao interesse da coletividade. Essa é a teoria por trás do argumento em favor da privatização”, explica. 

O problema, porém, é que “só a regulação não é suficiente, porque é necessário ter poder econômico. Não basta a caneta, tem que ter a máquina. Na realidade brasileira, as agências reguladoras acabam sendo capturadas pelas empresas privadas que elas deveriam regular, porque o Estado passa a ter só a caneta. Ele passa a ser capaz de legislar, mas não tem capacidade de impor a implementação da sua legislação”, afirma. Dessa correlação de forças desigual pode surgir o cenário de deterioração dos serviços prestado e aumento dos custos para os consumidores finais.

Entre as concessões, o governo de São Paulo bateu o martelo para conceder a Rota Sorocabana, a Nova Raposo, os serviços lotéricos e a construção e manutenção de escolas. Também foi concluída a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae). 

Algumas privatizações geraram mais repercussão do que outras. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o presidente da Sabesp, Carlos Piani, afirmou que a companhia não fará mais política pública. "A Sabesp tem 51 anos, ao longo desse período, por sua própria conta, ela dava desconto para alguns clientes. Fazia política pública, não era uma questão regulatória", disse. "A Sabesp não é mais controlada pelo Estado. Quem tem que fazer essa política pública é o Estado". 

No caso das escolas, o temor se repete quanto à possível deterioração do serviço prestado. O governo Tarcísio leiloou dois lotes para a privatização da construção e manutenção de 33 escolas. As empresas vencedoras ficarão responsáveis, durante 23 anos, pela manutenção da infraestrutura, gestão de limpeza, alimentação, vigilância e jardinagem e pela contratação de funcionários para essas áreas. 

A parte pedagógica, que envolve a definição do material didático, bem como o planejamento escolar, continua sob o guarda-chuva da Secretaria de Educação (Seduc), bem como a contratação de professores, que se dá por meio de concurso público. Críticos ao modelo, no entanto, defendem que não se pode fazer uma indissociabilidade entre gestão pedagógica e não pedagógica. 

Neste caso, Pedro Faria afirma que “o que se alega é que se está fazendo a concessão da administração, dos serviços ao redor da educação, e não propriamente do trabalho docente. Mas a gente sabe que o poder do concessionário vai entrando em searas que eram originalmente previstas. Esse é o risco”, diz.  

Confira a entrevista na íntegra com o economista: 

Quais são os impactos da privatização de empresas como a Sabesp em São Paulo, que presta um serviço essencial? 

Saneamento e educação são os setores em que ter atuação direta do Estado é muito importante. A entidade estatal de saneamento normalmente faz o que a gente chama de financiamento cruzado. No caso da Sabesp, operar o serviço de saneamento numa grande cidade que nem São Paulo é lucrativo. Mas operar o serviço de saneamento numa cidade de 5 mil habitantes normalmente não vai ser lucrativo porque a infraestrutura é muito cara, instalar uma estação de tratamento, instalar o sistema de coleta de esgoto, levar água tratada até aquela cidade para atender só 5 mil habitantes é muito caro. 

Então, o que a empresa estatal faz é usar o excesso de recursos que recebe no local onde é lucrativo para financiar o local onde não é lucrativo, porque o objetivo da estatal é, pelo menos em teoria, o bem-estar da coletividade em todos os municípios. 

Fica pior ainda quando tem uma situação em que cada município vai contratar a empresa que foi privatizada isoladamente, porque esses pequenos municípios vão ter que oferecer um contrato mais atrativo para Sabesp.  

Então vai acontecer o contrário do financiamento cruzado. Um município onde não é rentável ter uma operação privada de saneamento vai ter que pagar mais caro para tornar aquela atividade rentável. Por consequência, outra coisa que pode acontecer é limitar a capacidade de universalização, que não ocorre por falta de capacidade de investimento, que é o que se alega para privatizar empresas como Sabesp. Ocorre normalmente por falta de interesses e limites fiscais. No caso da empresa privatizada, o governo vai ter que fazer uma política de incentivos para ajudar a empresa a implementar de fato a universalização, como prometido.  

O que acaba acontecendo é que os compradores da empresa sabem que no futuro vão conseguir capturar a agência reguladora, ter um político aliado no Executivo que vai lhes permitir não universalizar o serviço, etc. Então a privatização ocorre com promessas muito ambiciosas, mas que lá na frente não acontecem.  

Estamos falando de setores em que há um monopólio natural. Então ao privatizar, esse controle é passado para uma entidade privada, para um grupo de empresários. Normalmente o que acontece, é um aumento do custo e uma piora de qualidade. Então quem sai lucrando é quem comprou, porque sabe que vai ter um cenário favorável depois para não cumprir o que prometeu.  

E como isso afeta a população diretamente? 

Afeta a população porque passa a ter um conflito entre o interesse da coletividade, como a universalização dos serviços, baixas tarifas, um serviço de qualidade, e os interesses das empresas.  

É claro que também não pode achar que a estatal é mil maravilhas. Por isso que eu falei que supostamente o interesse da estatal é o interesse da coletividade. Mas a gente sabe que as estatais também são utilizadas para interesses políticos e econômicos que não são os interesses da coletividade.  

Na realidade que a gente tem hoje, da maioria de estatais, principalmente as menores, é que elas não estão atendendo ao interesse da coletividade. E aí se privatiza com a promessa de que elas vão atender o interesse da coletividade, porque supostamente vai estar lá no contrato e vai ter uma agência reguladora, e o que você faz é só confirmar que a falta de qualidade do serviço que já que já existia antes, se confirma, se mantém e às vezes até piora, que é o que a gente está vendo em São Paulo com o caso da Enel. 

A gente vê, por exemplo, que não tem uma diferença significativa entre as operadoras privadas do Paraná, de Goiás e São Paulo de energia elétrica e comparadas com a Cemig, que é a operadora de Minas Gerais.  

A estatal muitas vezes não atende plenamente o interesse da coletividade, porque há outros interesses privados e individuais sendo atendidos ao invés da prioridade da coletividade. O que a privatização faz é confirmar essa realidade.  

Existe algum caso que exemplifica isso? 

Acho que o setor elétrico é o maior exemplo. O Brasil hoje vive um caos elétrico, porque quase todas as concessionárias estaduais são privatizadas, operam monopólio natural, não atendem o interesse público, não são bem regulares. As agências reguladoras estaduais e nacionais são fracas, capturadas. Os reguladores normalmente saem e vão trabalhar nas empresas que eles regulam. 

E pior, o Brasil privatizou Eletrobrás numa privatização que foi um roubo, porque o Estado continuou sendo o maior acionista, mas não consegue ter direito a voto proporcional ao que investe na empresa. 

Nós perdemos a capacidade que a Eletrobras tinha de organizar o sistema. Outros agentes privados, por mais que tivessem lucro e tudo, eles eram obrigados a obter esse lucro dentro de uma lógica ditada pela Eletrobrás. Hoje a gente não tem. O setor elétrico brasileiro é uma bagunça e está dificultando a transição energética. Os serviços estão péssimos para o consumidor. E quem comprou está lucrando bastante, que são os banqueiros, que são pessoas que não produzem muita coisa, estão só extraindo rendas.

E com as escolas? 

Com as escolas é mesma coisa. Pode ter um conflito entre o interesse do concessionário e o interesse dos usuários e da sociedade como um todo, que esperam um serviço educacional. 

Supostamente, o que vai acontecer é uma regulação do processo, que vai passar a ser gerido pela entidade privada. Mas como eu disse, a gente sabe que a tendência, especialmente com um governo de direita, mas mesmo em outros governos, na medida em que se estabelece um grupo empresarial que opera esse serviço, é que esses grupos empresariais vão passar a exercer pressão sobre deputados estaduais e o próprio Executivo, mantendo relações com o Poder Judiciário. E a tendência é que seja favorecido ao interesse do grupo concessionário e não da coletividade ou das pessoas diretamente envolvidas, como trabalhadores e alunos.  

É a mesma coisa do saneamento, ou seja, parte-se de uma deficiência presente do sistema gerido pelo Estado, atribui-se essa ineficiência ao fato de ser gerido pelo Estado e aí passa para a concessão. Eu acho que o caso da educação é ainda mais problemático, porque nós não estamos falando só da prestação de um serviço, como é o caso do saneamento básico ou de uma rodovia.  

No caso da educação, tem toda uma dimensão política de quem controla o processo, quem controla a forma de organização das escolas, quem controla o conteúdo. O que se alega é que se está fazendo a concessão da administração, dos serviços ao redor da educação, e não propriamente do trabalho docente. Mas a gente sabe que o poder do concessionário vai entrando em searas que eram originalmente previstas. Esse é o risco.  

Dado esse cenário, existe alguma área em que a privatização ou a estatização é recomendada? 

A gente vive numa economia capitalista de mercado. Então, por regra, as empresas são privadas. Quase tudo que a gente usa no dia a dia e os serviços são privados. Não tem um cabeleireiro estatal. Não tem uma padaria estatal, justamente porque pequenas produções não têm a necessidade de serem estatais, não tem nenhum valor do ponto de vista coletivo para ter um agente estatal. 

A questão é que modelo de sociedade se quer. A operação por agentes privados tende a ser melhor e mais favorável justamente quando tem muita questão de atender muita diferenciação de produtos, com vários formatos diferentes, que não tem grande escala. Não tem nenhum ganho estratégico em ter um agente do estado operando aqueles serviços. 

Acho que a pergunta mais relevante quando é recomendado que seja mantido em operação estatal? São setores onde há um monopólio natural, ou seja, setores em que só tem como ter uma empresa. Por exemplo, o fornecimento de água e o saneamento básico. Não tem como toda empresa que quiser fornecer a entrega de água até a residência das pessoas construir vários canos e dutos para transportar a água. Não faz sentido. Então, nesse setor, tem uma propensão a ter uma operação por um ente estatal.  

Ou um setor estratégico, por exemplo, o petróleo, que hoje é a base do nosso sistema energético, ou as grandes hidrelétricas, no caso do Brasil que tem mais energia renovável. Ter um operador estatal é importante, justamente para que com esse operador a estatal tenha condição de fazer com que o bem-estar do público, da coletividade, seja buscado ao invés de ter uma busca por interesses individuais dos proprietários das empresas privadas. 

O estado supostamente representa os interesses da coletividade, e a empresa privada representa o interesse dos seus proprietários. Sempre que a operação de um serviço ou a produção de um bem causar algum dano à coletividade, ou busca pelo interesse privado dos proprietários da empresa for danosa para a coletividade, o estado tem um interesse em atuar naquele setor. Quais são os modos de atuação do Estado? Ele pode regular o setor ou atuar diretamente, ou seja, ter uma empresa estatal que produz o bem ou presta aquele serviço. 

E por que se opta por um ou outro? 

O modelo que a gente chama de neoliberal, que é o que vem lá do governo FHC [Fernando Henrique Cardoso] no Brasil, parte do princípio de que o interesse da coletividade, que é supostamente perseguido pelo Estado, pode ser alcançado por meio da regulação. Então não precisa ter uma empresa estatal atuando diretamente no segmento.  

Vamos pegar o exemplo da empresa que foi privatizada na década de 1990, a Vale. O entendimento anterior é de que o Estado tinha que atuar diretamente no setor para garantir que os interesses do país fossem atendidos fossem atendidos pela Vale estatal, antes da privatização. Por exemplo, garantir que o setor de aço tenha acesso a minério de ferro, independente da produção em outros lugares do mundo, de crises, etc. 

A visão neoliberal parte do princípio de que se pode privatizar a empresa e regular o setor. Então basta que você tenha uma agência que regule essa atividade e faça com que o interesse do agente privado, o proprietário da empresa que foi privatizada, se alinhe ao interesse da coletividade. Essa é a teoria por trás do argumento em favor da privatização.  

O argumento de manter por manter as atividades estatais diz justamente que só a regulação não é suficiente, porque é necessário ter poder econômico. Não basta a caneta, tem que ter a máquina. Na realidade brasileira, as agências reguladoras acabam sendo capturadas pelas empresas privadas que elas deveriam regular, porque o Estado só passa a ter a caneta. Ele passa a ser capaz de legislar, mas não tem capacidade de impor a implementação da sua legislação. 

No caso, por exemplo, do setor de petróleo e gás, a Petrobras cumpre um papel no preço de combustíveis. O governo não precisa fazer muita regulação sobre isso. Ele regula a tributação, etc., mas é a Petrobras, sendo uma empresa estatal, que determina ali pelo seu tamanho como vai funcionar o mercado de combustíveis no Brasil, que tem agentes privados. O peso da Petrobras faz com que o Estado tenha mais do que a caneta, mas também tem uma capacidade de direcionar ao setor diretamente. É para isso que se mantém uma estatal. 

E justamente por isso que no inverso se avalia que não tem nenhum motivo para ter uma estatal. Por exemplo, setores que têm agentes produtivos muito pequenos. Nenhuma padaria tem condição de enfrentar uma regulação do governo, por exemplo, sobre o que que pode ou não ter no pãozinho francês, porque eles não são grandes. Se tivesse uma empresa que controlasse 60% das padarias do Brasil, talvez o Estado tivesse interesse em ter uma padaria estatal. Como são empresas, no geral, muito pequenas, a caneta do Estado é mais poderosa.  

Edição: Nathallia Fonseca